Revista do Vestibular da Uerj
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Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Artigos

Onde se encontra a força de um texto?, por Décio Rocha

Ano 5, n. 15, 2012

Autor: Décio Rocha

Sobre o autor: Décio Rocha é mestre em Letras pela PUC-RJ e doutor em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC-SP. Professor associado do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira e do Instituto de Letras, ambos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAp-UERJ e IL-UERJ), desenvolve pesquisas com ênfase nos seguintes temas: análise do discurso, relação linguagem e trabalho, produção de subjetividade.

Publicado em: 10/07/2013

“De onde vem a força de um texto? Da autoridade de quem faz uso da palavra? Ou será que quem tem força é a própria palavra?”. Eis aqui a reprodução mais literal possível – tanto quanto me permite minha memória – da pergunta que me chamou a atenção, certa vez, em uma aula de língua portuguesa no ensino médio. A pergunta se dirigia a uma aluna que havia feito uma exposição oral sobre tema constante do programa e era formulada em um tom benevolente pelo professor – algo do tipo “sei que esta é uma pergunta difícil, mas não me importarei se você não tiver no momento uma resposta definitiva e preferir continuar pensando nela...”. Contrariamente à expectativa do professor, a aluna optou por responder imediatamente, escolhendo uma das duas opções que lhe eram oferecidas. Talvez houvesse pressentido que, fosse qual fosse sua resposta, esta seria aceita por seu arguidor. Uma sábia solução, portanto: acolhendo como era preciso uma pergunta no mínimo equivocada, abreviou um debate que talvez exigisse muito mais tempo de reflexão.

Na verdade, a pergunta soava bastante infantil. “Quem tem a força?” é algo que me faz imediatamente pensar em um personagem de desenho animado da televisão dos anos 1980 que, na hora de deixar sua identidade mundana e transformar-se em super-herói, dizia, empunhando sua espada mágica, em tom destemido: “Eu tenho a força!”. Sim, é ele mesmo: He-Man! Que as novas gerações me perdoem o anacronismo do exemplo, mas, se o mantenho, é porque hoje, em tempos de YouTube, nada está definitivamente fora do alcance dos (mais) jovens! De fato, um rápido passeio pela internet permitirá que se conheçam os efeitos prodigiosos dessa força que se manifesta com o protagonista da série, o príncipe Adam, capaz, dentre outras coisas, de executar todo tipo de acrobacias, destruindo um diamante com apenas uma das mãos ou transformando o tímido Pacato – felino de sua propriedade – no terrível Gato Guerreiro.

Se não me falha a memória, a aluna disse que a força estava na palavra. Bem, tanto faz a resposta dada: quer tenha escolhido uma ou outra opção, na realidade nada ainda terá sido dito que esclareça esse tipo de mistério. Ou, pelo menos, nada de verdadeiramente importante, posto que ambas as respostas são extremamente simplistas e, por isso, inadequadas. Porque a força não pertence nem ao sujeito, nem à palavra. Porque a força não é propriedade de nada, nem de ninguém...

A escolha feita pela aluna na ocasião talvez tenha sido motivada pela ilusão de que a “resposta certa” estaria numa das opções apresentadas, e somente numa delas. Nesse caso, considerando que só mesmo um super-herói como He-Man poderia ter incondicionalmente a força – nós, simples mortais, não seríamos capazes de tanto! –, não lhe restava outra saída senão localizar a força na própria palavra.

A hipótese que faço tenta justificar a resposta dada, mas que ela não convence, isso certamente não! Talvez mais sensato fosse lembrar que a palavra, em situações como as vivenciadas no texto do He-Man, anuncia uma transformação no mundo que certamente não decorre de quaisquer “poderes inerentes” ao enunciado proferido, ou de pretensas “qualidades excepcionais” daquele que o emite, mas da simultaneidade de uma série de fatores: somente aquele personagem, em situações reais de perigo, empunhando aquela exata espada mágica, poderia produzir um novo mundo no qual ele seria o herói capaz de interromper a tempo as ardilosas investidas de um inimigo, etc. Fosse qualquer outro personagem fazer o mesmo e talvez nada acontecesse; ou então, caso o personagem tivesse vontade de proferir o refrão “Eu tenho a força!” na ausência de um perigo iminente, seguramente nada aconteceria. Qualquer criança conhecedora dos mistérios do Castelo de Grayskull – objeto dos cuidados de nosso herói – saberia disso. Saberia que o poder não pertence ao He-Man, uma vez que o próprio He-Man já é um dos efeitos do que se costuma chamar de dimensão performativa da palavra: falo e, por força do que digo, estando reunidas determinadas condições, algo se modifica no mundo à minha volta. E eis que, desse modo, Adam se transforma em He-Man!

Isso que estou chamando de dimensão performativa da palavra pode parecer complicado, mas, na realidade, é até bastante simples: trata-se de ações que se realizam pelo simples fato de serem formuladas verbalmente. Um exemplo: como é que você se desculpa com alguém por alguma falha cometida? Simplesmente dizendo “Me desculpe”. Eis aí um performativo: ao enunciar a ação, você já a está praticando. Ou, se preferir, ao dizer “me desculpe”, você já está se desculpando. É exatamente o mesmo caso das sentenças proferidas pelos juízes, quando dizem “Eu o declaro inocente” ou “Eu o declaro culpado”. Esses enunciados produzem uma verdadeira revolução no mundo daquele que se transformará, dependendo do veredito, em homem livre ou em prisioneiro sentenciado à reclusão. Tal situação parece sugerir que o poder de produção de “realidades” estaria guardado na palavra, mas temos outra compreensão sobre esse ponto, que vamos abordar no próximo artigo.

 

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