Revista do Vestibular da Uerj
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Rio de Janeiro, 24/04/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Artigos

Série Carreiras: Medicina, por Paulo Roberto Chaves Pavão

Ano 9, n. 25, 2016

Autor: Paulo Roberto Chaves Pavão

Sobre o autor: Paulo Roberto Chaves Pavão é professor associado da Faculdade de Ciências Médicas e chefe da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, além de médico do Ministério da Saúde.

Publicado em: 07/11/2016

Revista do Vestibular: O senhor atualmente é coordenador das disciplinas de psicopatologia e de psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – FCM/UERJ. Conte-nos um pouco sobre sua escolha e trajetória profissional.

Paulo Roberto Chaves Pavão: Desde 1997, venho sendo eleito coordenador dessas disciplinas e chefe da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto – UDA/HUPE. O serviço prestado na UDA é vinculado às disciplinas. As aulas são dadas no serviço, aulas práticas e teóricas. A medicina surge na minha vida quase como uma vocação; eu não me entendo, nunca me entendi, desde criança, querendo ser outra coisa que não médico. É a minha primeira escolha, definitiva e única, embora eu tenha tido, ao longo da minha formação, uma preocupação intelectual, uma fantasia de escrever, mas sempre ligado à medicina. Estranho é que na minha família, antes de mim, não havia médico, o pessoal era mais ligado à área de educação. Então, desde que me entendo por gente, eu sempre quis ser médico. Eu entrei na Faculdade de Ciências Médicas da antiga Universidade do Estado da Guanabara (UEG) em 1966 e me formei em 1971. Minha turma, desde o início, já escolheu um nome que causou certa espécie: Sigmund Freud. Agora, nem por isso, ela rendeu muitos psiquiatras, talvez dois, porque na época a cadeira de psiquiatria era muito complicada, assustava as pessoas. Eu fui fazer psiquiatria por mero acaso. Eu estava indo para o segundo ano muito desiludido com o que eu havia visto no primeiro. As cadeiras básicas não estavam me atendendo. Eu nasci e vivi muitos anos na rua que dava acesso ao Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro, hoje, Instituto Nise da Silveira, e uma tarde eu fui lá visitar um amigo que estava chefiando um plantão no recém-inaugurado pronto socorro psiquiátrico. Ele me convidou para retornar. Assim eu fiz - e fiquei. Lá trabalhei desde o quarto ano com o professor Washington Loyelo, que foi para mim talvez o maior psiquiatra brasileiro do século XX, um homem com certo reconhecimento internacional, um intelectual que tinha uma visão da psiquiatria muito aberta, uma visão da psiquiatria com compromissos sociais importantes. Trabalhei com ele, assisti a alguns seminários e passei rapidamente pelos serviços da doutora Nise da Silveira. Lá também fui médico, bolsista, residente, chefiei a enfermaria depois de formado, fui chefe de plantão, depois saí em 1975 e entrei para a UERJ em 1977, como auxiliar de ensino. Ironicamente, em 1985, eu vim a ser diretor do Centro Psiquiátrico Pedro II, atendendo a um abaixo-assinado dos funcionários e médicos, no fim do regime militar. Acabei me tornando diretor-geral. Nunca esperei por isso, pois, quando eu saí de lá, em 1975, o contexto político era muito complicado, fim da ditadura, quando se passou um pente fino para retirar os esquerdistas e comunistas da área. Nessa ocasião, comecei minha carreira aqui na UERJ, depois fiz livre-docência, ascendi a adjunto e chefiei a enfermaria, onde organizei um serviço com base na experiência lá no Engenho de Dentro. Tudo o que a reforma psiquiátrica propunha nós já fazíamos: o fim do manicômio. Aliás, no dia 18 de maio, comemorou-se o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Alguns professores da medicina social trabalharam comigo lá, comigo e com o professor Loyelo. Implantamos esse serviço na UERJ e estamos até hoje. Devo dizer que eu gosto muito do meu trabalho, tanto da parte assistencial quanto da relação com os alunos. Eu ainda sou daqueles professores que dão muita importância à graduação. Eu não abro mão de dar aula e costumo brincar que, dentre os poucos títulos que tenho, o de que eu mais gosto é, já há mais de vinte anos, todos os anos, ser homenageado como paraninfo, patrono, pelas turmas que se formam. Isso para mim é um reconhecimento muito grande.

Revista do Vestibular: Como é o trabalho que o senhor e sua equipe desenvolvem na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto – UDA/HUPE?

Paulo Roberto Chaves Pavão: A UDA funciona com uma enfermaria e um ambulatório. O serviço de psiquiatria teve a felicidade e a sorte, quando a Faculdade de Ciências Médicas foi transferida de São Cristóvão para Vila Isabel, em 1966, e o Hospital Universitário, o Pedro Ernesto, foi transformado em hospital de clínica, de ter sido colocado numa área específica: uma vila com oito casas em torno de um jardim e dois sobrados. Era uma vila residencial de operários das fábricas do Andaraí, que a Universidade desapropriou. Quando eu era aluno, já havia ali um serviço de psiquiatria, naquelas mesmas casas, com poucos pacientes que eram levados para as aulas naquele velho estilo, como se fossem manequins para serem exibidos. A proposta começa a mudar por volta de 1975/1976, coincidindo com a minha chegada. Assim, já havia, de saída, uma estrutura arquitetônica muito boa, que não se vê em outros serviços, que geralmente são verticais. Ali não, a organização é horizontal, são oito casas, cada casa com dois quartos, sala, um banheiro e uma área, onde ficam os pacientes. São 15 leitos para pacientes psiquiátricos, 4 a 5 leitos para alcoolistas. Por que nós abrimos estes leitos? Pela dificuldade que os alcoolistas têm de serem atendidos nos hospitais gerais, e também porque nós vimos essa necessidade dentro da população da própria UERJ. Nós temos um projeto diferenciado que atende aos servidores da UERJ, com hora marcada, com 5 psicólogos, 3 psiquiatras e 1 assistente social. Esses leitos são praticamente dirigidos para essa demanda. É um serviço misto, para homens e mulheres, aberto, sem grades, os muros são baixos, as famílias frequentam o serviço, e o índice de evasão é baixíssimo – em 2010 e 2011, não tivemos evasão. Trabalhamos com pacientes em crise. Todas as equipes têm um médico residente, além de residentes da enfermagem, da psicologia e do serviço social. Trata-se de uma área de estágio para os profissionais de saúde da UERJ, com ótimos resultados, pois as internações são poucas, as evasões são praticamente zero, e, o que também é um diferencial, trata-se de um serviço de psiquiatria num hospital geral. Nós não estamos isolados, nós não só atendemos aos pacientes do hospital geral com intercorrências psiquiátricas, assim como nossos pacientes também têm acesso a todas as especialidades. Esse é um dos polos do serviço. O outro polo é o ambulatório. Nós atendemos aos pacientes internados quando têm alta, além da população que procura o serviço por demanda espontânea, ou daqueles que são encaminhados por outras clínicas do hospital e de outros serviços de saúde da cidade. É uma média de 850 a 1000 consultas por mês. A gente faz tratamento psicoterápico, medicamentoso, há setor de família, de psiquiatria infantil, que atende crianças com autismo, e de funcionários com dificuldade no relacionamento com chefias ou com algum tipo de sofrimento, pedindo licença. Os prontuários de funcionários ficam em arquivo fechado, ao qual ninguém, chefia nenhuma, tem acesso, só a equipe médica. Muitas vezes fazemos até visitas domiciliares.

Revista do Vestibular: Medicina é um dos cursos mais concorridos nos vestibulares. Qual sua opinião sobre a formação na área oferecida hoje aos estudantes e sobre a importância dos hospitais universitários para a sociedade?

Paulo Roberto Chaves Pavão: Além da parte assistencial, nós atuamos também na parte acadêmica – 4º ano de medicina, 6º ano de residência e em todas as áreas da especialização. Trata-se de uma formação teórica e prática; a assistência é um meio, não é um fim, o fim é a formação do profissional. E a formação, de maneira geral, anda muito ruim. Não aprovo cursos de medicina em universidades que não possuem hospital universitário. Como formar médicos ou qualquer profissional da área de saúde sem hospital universitário? O hospital universitário é um espaço público voltado para a assistência, mas direcionado para o ensino, que deve ter recursos de toda ordem, materiais e laboratoriais. É preciso que o hospital universitário seja independente. Ele não pode estar ligado a secretarias de saúde. A gente sabe que boa parte dos secretários de saúde não entende de saúde, porque são cargos políticos, e o hospital universitário não pode ficar subordinado ao humor de quem está no governo, ou mesmo na reitoria da universidade. É necessário que o hospital, apesar da autonomia, preste contas das suas práticas à população. O alcance social do hospital universitário é muito grande, pois se trata de um espaço a que a população de menor poder aquisitivo tem acesso, com medicina de qualidade e muitas vezes procedimentos de alta complexidade que fora dos hospitais universitários são muito caros. Se nós olharmos o Hospital Pedro Ernesto, na história da medicina brasileira, veremos que ele tem um peso muito grande, um corpo clínico muito bom, e ele sobrevive e luta apesar de todas as dificuldades que tem tido ao longo dos anos. Infelizmente, o ensino da medicina está um pouco comprometido, porque a medicina que se ensina hoje é a medicina do capital, a medicina voltada para o lucro, em que a doença é uma mercadoria. É uma medicina equivocada na medida em que ela privilegia a tecnologia em detrimento do encontro entre médico e paciente. Apesar de tudo isso, a universidade pública ainda oferece uma boa formação.

Revista do Vestibular: Quais as maiores dificuldades que o jovem graduado em Medicina vai enfrentar na vida profissional? E quais as maiores alegrias?

Paulo Roberto Chaves Pavão: A maior alegria de quem faz medicina é que, desde sua origem, ela é uma profissão ética. O instrumento específico da medicina é a relação entre duas pessoas, um profissional dotado de um suposto saber que lhe permite ajudar a alguém que, em um momento, teve a sua história de vida quebrada pelo sofrimento. Como os gregos chamavam os médicos? Eles não consideravam médicos deuses nem heróis, eles os consideravam como aqueles que são semelhantes aos deuses. Ao longo da história, a medicina é a única profissão em que todos os códigos, sejam eles jurídicos ou religiosos, permitem que um profissional toque o outro. Até mesmo nas guerras, os profissionais da área de saúde sempre foram respeitados. Portanto, a medicina traz realmente grandes satisfações, porque você lida com a possibilidade de diminuir a dor do outro, o sofrimento do outro. Isso, claro, a medicina centrada na pessoa, não a medicina do capital, a medicina do capital é perversa em todos os sentidos, se alguém tem dúvida disso, basta olhar os planos de saúde. O jovem que faz medicina deve ter este conhecimento: ele vai ser sempre respeitado, honrado, dependendo de como ele se coloca na profissão. Ainda que não conscientemente, o médico irá se deparar com o conflito entre o desejo de ajudar e o sentimento de medo que a doença e o sofrimento provocam. O bom médico consegue resolver isso, o mau médico fica preso nessa contradição e pode responder a ela das mais variadas maneiras. Agora, as dificuldades que o médico encontra hoje, na sociedade capitalista avançada, em um país periférico, são muitas. Primeiro, qual é o papel da medicina na sociedade contemporânea? Até alguns anos, a medicina deveria recuperar a força de trabalho. Como o trabalho humano mudou, essa questão já não tem tanto peso. O médico se vê colocado diante de sérias contradições: há uma medicina para quem tem dinheiro. No Brasil, existem centros de excelência, como o Hospital Sírio-Libanês, mas quem pode se tratar no Sírio-Libanês? O que aconteceu com a saúde pública no Brasil? Nas décadas de 1950 e 1960, o Brasil tinha um dos mais respeitados sistemas de saúde pública, tanto do ponto de vista das endemias quanto do da assistência, basta lembrar, por exemplo, que o Hospital dos Servidores do Estado, que hoje está sendo sucateado, ficava de prontidão para atender a chefes de Estado pela excelência de seus serviços. A privatização da educação e da saúde teve consequências. A classe média assistiu passivamente ao desmonte da educação pública, assim como ao da saúde. Hoje, tanto quem tem quanto quem não tem plano de saúde passam grande aperto, são mal-atendidos. Então, os médicos que se formam, apesar da alegria que mencionei, vão encontrar grandes dificuldades. O Brasil teve um capitalismo de inserção, ninguém acredita que o Brasil resolveu suas grandes questões. Como é que funciona o nosso imaginário? De fora para dentro. A indústria farmacêutica tem determinado o que um médico vai receitar. Quantos produtos circulam aqui e não podem circular lá fora? Um exemplo é a sibutramina, utilizada para emagrecimento, proibida nos países centrais, pois ela mata. A medicina ainda não é uma profissão de Estado no nosso país.

Revista do Vestibular: Gostaríamos que o senhor deixasse uma mensagem para os candidatos do Vestibular Estadual que desejam cursar Medicina.

Paulo Roberto Chaves Pavão: A medicina faz bem, por mais que seja uma profissão de grandes conflitos. É preciso entender que a medicina é ética: todo médico tem de compreender que a medicina é uma relação entre duas pessoas, uma profissão em que se usa o conhecimento científico para ajudar aos outros. Ela é também, como tudo na vida, uma prática política, não política partidária. Quando o médico passa uma receita, ele mexe com a vida de muitas pessoas, por isso que a medicina é uma prática política. Então, o médico tem de gostar primeiro do outro, tem de gostar de estudar, tem de ser uma pessoa culta, não pode ser um técnico. Se ele for sério, trabalhar bem e tiver compromisso político, ele viverá bem, talvez não fique rico, mas viverá bem. Eu estimulo quem tem vocação a fazer medicina.

 

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