Revista do Vestibular da Uerj
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Rio de Janeiro, 19/04/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Artigos

Primeiras estórias, de João Guimarães Rosa, por Eliane Maria Diniz Campos

Ano 11, n. 30, 2018

Autor: Eliane Maria Diniz Campos

Sobre o autor: Eliane Maria Diniz Campos é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da UERJ e professora de Língua e Literatura na Escola Sesc de Ensino Médio, no Rio de Janeiro. Formou-se em Letras em 2007 pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Fez iniciação científica com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP), com estudo relacionado às áreas de Teoria e História Literária bem como Literatura Comparada. Terminou, no mês de junho de 2010, o mestrado Erasmus Mundus, especialidade em Culturas Literárias Europeias, com permanência de um ano (2008/2009) na Université de Haute-Alsace, Mulhouse (França) e de um ano (2009/2010) na Università di Bologna, Bologna (Italia). Desenvolveu seu projeto de mestrado sobre o pragmatismo na utopia wellsiana, A modern utopia (1905), de Herbert George Wells. Foi professora de português, por concurso temporário, no Colégio Pedro II, UESC III, de 2011 até dezembro de 2013. Em julho de 2014 terminou a especialização em Ensino de Línguas Mediado por Computador pela Universidade Federal de Minas Gerais. Além disso, tem experiência profissional como livreira da Livraria da Travessa e da Estação das Letras (lugares em que aprendeu a amar sobremaneira a literatura).

Publicado em: 15/03/2018

As travessias surgem das experiências. Das minúcias às amplitudes, tudo é regido pelo saborear dos momentos, pelo encantamento principiante, pela percepção de primeira viagem. A vista para o mar, o céu azul, o mergulho inesperado, o toque singelo, o longo estrelar. Experienciar pela primeira vez é inesquecível e essas experiências fazem singulares os momentos, a ponto de nos atravessarem, nos desestabilizarem. 

Fazer de um momento já percebido ou outrora vivenciado um ato primeiro, uma estória primeira, não é chance de todos. E em tempos de transparência, em que tudo se mostra e até o essencial vira aparente - e por isso dilui-se - provocarmos situações de transcendência, como normalmente acontece num embarque inédito, é ainda mais difícil porque a experiência não foi só contada, mas sim mostrada e escancarada. 

Jácques Prévert (1900-1977), poeta francês contemporâneo da geração OuLIPo (grupo experimental que revolucionou a estética da escrita com suas propostas de estilo), escreveu um poema que se chama “Page d’écriture”. O poema trata de uma criança que está em uma sala de aula. Aparentemente, ela se encontra muito entediada, pois o professor diz algumas somas e pede para que os alunos as repitam. A criança, muito esperta, em um ato libertador, começa a observar a janela da sala e nota um pássaro. Então, ela se distrai e pede para o pássaro descer e brincar com ela. O pássaro obedece ao pedido e se põe embaixo da carteira do menino. Nesse momento, a classe percebe uma música. O professor grita com o aluno. No entanto, já é tarde:

Mais tous les autres enfants

écoutent la musique

et les murs de la classe

s’écroulent tranquillement.

Et les vitres redeviennent sable

l’encre redevient eau

les pupitres redeviennent arbres

la craie redevient falaise

le porte-plume redevient oiseau. (1979: p. 66)

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Mas todas as outras crianças

Escutam a música

E os muros da classe

Se desfazem tranquilamente.

E os vidros voltam a ser areia

A tinta volta a ser água

As carteiras voltam a ser árvores

O giz volta a ser falésia

O porta-pena volta a ser pássaro. (tradução própria)

Esse poema, de simplicidade ímpar, abarca plenamente a dimensão semântica de um olhar iniciante, desprovido de amarras sociais ou impedimentos outros. A criança, sinônimo de pureza e espontaneidade, observa, para além dos muros da escola, uma experiência insubstituível. Ao chamar o pássaro para participar de sua rotina, é como se, num passe de mágica, o mundo se transformasse no que de fato deveria ser: “os vidros voltam a ser areia/ a tinta volta a ser água/ as carteiras voltam a ser árvores / o giz volta a ser falésia / o porta-pena volta a ser pássaro.” O momento experienciado pelo Ser ganhou sentido pleno a ponto das coisas e objetos também se tornarem “ser”, para além de qualquer utilidade. 

Do mesmo modo, o livro Primeiras Estórias, antologia de contos do escritor mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967), é um convite para que as personagens voltem a ser, e para que a experiência ganhe sentido. 

Essa recolha de contos não é uma escolha aleatória. Pelo contrário, há muito a ser percebido nessa ordenação. As narrativas propostas no livro são divididas propositalmente em 21 contos, sendo 10 espelhados em 10, através do conto do meio, “O espelho”, em intertextualidade clara com o notório conto de Machado de Assis. Desta maneira, os contos que compõem a obra foram detalhadamente arquitetados e projetados para ali estarem.

Essas estórias giram em torno de aspectos como a infância, a loucura, a morte, a curiosidade, os animais, a magia, o milagre, a velhice, viagens, existência ou não-existência, entre outros. Em geral, são reflexões sobre as passagens da vida, travessias no sentido mais amplo do termo. Em todos os contos, como bem lembrou o professor Flávio Carneiro (UERJ), no ciclo de palestras do Vestibular Estadual 2018, há uma tentativa de resgatar alguma experiência de “primeiridade”, conceito elaborado pelo teórico da semiótica Charles Sanders Peirce (1839-1914). A primeiridade, explica o professor, seria quando a percepção do fenômeno, ou do acontecimento, passa pela sensação, pela intuição. Há um espanto, já que é uma primeira vivência. Contudo, essa experiência é fugaz e, talvez por isso, tão única. 

O conto “Luas-de-Mel”, 15º na apresentação da seleção, é um exemplo poderoso de primeiridade, ainda que não seja um ocorrido de primeira-idade. A enunciação é feita pelo fazendeiro Joaquim Noberto. Já de início ele diz: “No mais, mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade”. (2001: p. 156) O enredo se desenvolve com um rapaz e uma moça pedindo proteção ao fazendeiro narrador e à sua esposa, Sá-Maria Andreza. O rapaz raptara a moça, já que o pai dela, Major Dioclécio, era contra o casamento. Decide-se preparar a festança, com todos devidamente armados para qualquer precisão. Esse casamento desperta no fazendeiro e na sua esposa o amor adormecido e o desejo encoberto pelos anos. Na manhã seguinte, o irmão da donzela vem em missão de paz e diz que o pai estava oferecendo uma festa pelo casamento. Tudo então termina bem. Com duas luas-de-mel: a dos noivos e a do fazendeiro. Esse conto é muito interessante, visto que trata de uma situação de encantamento e plenitude vivenciadas não somente na tenra juventude. Houve, por parte das personagens mais velhas, um reviver da experiência de enamorados em concomitância com a primeira vivência dos mais jovens. Confessa o narrador: “amanheci fora de horas, me nascendo dos conchegos. A postos, todos. Aquele dia, a terça-feira. Era o dia?” (2001: p.163). 

Além dessa estória, o conto “Famigerado”, um hino ao poder da linguagem, traduz bem a curiosidade de um homem durão que, ao se deparar com a descoberta do significado de uma palavra, também se sentirá satisfeito e em estado de alívio e contemplação: “saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro”. (2001: p. 61)

Por último, “Tarantão, meu patrão...” é um conto belíssimo a revelar mais uma vez um Rosa viajante, que aprecia, através das viagens e estradas, transformar seus personagens. Tal qual o “Recado do Morro”, “Sorôco, sua mãe e sua filha”, e o romance Grande sertão: veredas, entre outros, aqui temos Vagalume, um camarada muito fiel ao seu patrão, narrando suas peripécias – “já sem o escasso juízo na cabeça”. A ideia é que esse velho, com uma faca de mesa enferrujada, iria andar léguas atrás de um médico, seu sobrinho, para dar cabo na vida dele, por ele ter lhe mandado dar algumas injeções. A questão é que, nesse caminho, muitas coisas irão se passar e o velho caduco vai se mostrar um “esmarte Patrão”. A beleza talvez se encontre nas peculiaridades do conto, numa relação meio Sancho Pança e Dom Quixote, em que todos os personagens aos poucos vão se inebriando pela “loucura” de Tarantão e, dessa forma, talvez todos encontrem nele o espanto da primeiridade. 

Além disso, uma análise semiótica minuciosa desses contos se faz necessária visto que, por exemplo, é recorrente a presença da cor branca (Luas-de-Mel, Moço muito branco, Substância etc), o índice-ilustração está repleto de signos do zodíaco, como câncer, libra, touro, além de mensagens em hebraico e o signo do infinito por toda a parte. Nesse sentido, cabe ao leitor uma observação apurada sobre esses detalhes, pois nessas quinas também habitam sentidos.

Desta forma, essa reunião de contos é uma grande homenagem ao saber não-científico, puro, ainda em elaboração. Um vagalume, um tucano, uma palavra desconhecida, uma cantoria, o desejo de morte, a viagem, a improvisação, a curiosidade, a irracionalidade. Vários propulsores de espantos foram reunidos para nos encantar, fazer-nos voltar a ser, desestabilizar a nós todos que, nos achando tão sapientes, nos esquecemos da sensação essencial à criação e à criatividade: maravilhar-se. 

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Inspirações:

CARNEIRO, Flávio. Primeiras estórias. Ciclo de palestras do vestibular UERJ. 2017.

HAN, Byung-Chul . Sociedade da transparência. Petrópolis : Vozes. 2016.

PRÉVERT, Jacques. Poésie. Paris : Éditions Gallimard. 1979.

QUENEAU, Raymond. Exercices de style. Paris : Éditions Gallimard. 1947.

ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2001.

TEIXEIRA, Renato & Almir Sater. A primeira vez. Álbum Ar. 2016.

“Terra roxa e outras terras” – Revista de Estudos Literários Volume 7 (2006) – 55-60. ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/cch/pos/letras/terraroxa

 

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