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Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Artigos

Reflexão Filosófica sobre a Bioética e a Técnica, por Ana Rosa Luz

Ano 11, n. 30, 2018

Autor: Ana Rosa Luz

Sobre o autor: Ana Rosa Luz é Professora Assistente da UERJ, Coordenadora de Filosofia do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, e doutoranda em Filosofia da Arte pela UERJ.

Publicado em: 13/04/2018

Para dar conta do tema a ser trabalhado, percorreremos caminho histórico-filosófico. No primeiro momento, definiremos o sentido etimológico de ética, de modo a formar o nosso embasamento teórico. Em segundo lugar, explicitaremos certos preceitos filosóficos e históricos, para que seja possível, então, compreender como a noção de bioética e seus desdobramentos emergiram na cultura ocidental. 

Em seu sentido etimológico, o termo ética (ethike) é tudo aquilo o que se refere ao hábito (ethos), ou seja, ao modo de ser e agir do homem (BAILLY, 1950, 247). Logo, por definição terminológica, a ética é a investigação sobre as ações humanas. Trata-se do campo de reflexão que investiga a intencionalidade das ações, as escolhas práticas e deliberadas referentes aos propósitos que levam o homem a agir. Em segundo lugar, trata-se do campo epistemológico que estuda as escolhas, o hábito e a formação do caráter individuais. O vocábulo ética (ethike) para os gregos tinha, portanto, dois sentidos complementares: a interioridade do ato humano, ou seja, aquilo que gera uma ação genuinamente humana, que nos remete para o âmago do agir, ou ainda, para a intencionalidade da ação; a ethike significava também os hábitos, os costumes (usos e regras) e aquilo que se materializa na assimilação social dos valores.

A teoria da ética, enquanto foco de problematização filosófica, foi desenvolvida inicialmente entre os séculos IV e III a.C., sobretudo por Platão – não consideraremos, aqui, Sócrates, por ele não nos ter legado nenhum escrito e por só o conhecermos enquanto personagem dos diálogos platônicos – e por Aristóteles, que se preocupava com a conduta prática, com a interioridade do ato humano (ethos, com eta inicial) e com a formação dos hábitos (ethos, com épsilon inicial) em prol do bem comum, a partir da busca pelo conhecimento verdadeiro (sob perspectiva ontológico-metafísica).

Na filosofia grega, então, a reflexão ética se preocupou principalmente em investigar a formação dos hábitos práticos, a partir de concepção teleológica (da finalidade das ações) do bem comum. Tal como teorizado por Aristóteles, a ética é “uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir com respeito às coisas que são boas ou más para o homem” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1140b). A ética trata essencialmente da ação humana, ou seja, trata dos atos ou ações próprias de cada homem, preocupando-se com o cuidado humano em tomar boas decisões e, por conta disso, realizar boas ações. Sendo assim, a ética investiga o bem humano enquanto tal, e mais, tal como explicita Aristóteles: no âmbito da ética o homem não tenta ser apenas bom, ele tenta ser excelente ou virtuoso a partir da prática de suas ações.

Já na modernidade, sob grande influência da tradição clássica, os filósofos analíticos fundaram uma teoria ética sob o ponto de vista deontológico (da intencionalidade das ações) por um lado, tal como é o caso de Kant, e uma teoria ética do ponto de vista consequencialista e utilitarista, no caso de Bentham e Mill, por outro. A filosofia analítica tem por pressuposto o domínio total da natureza, em prol do bem humano.

Visto isto, adentremos na questão técnica e sua relação com a bioética, de modo a explicitar seus intentos reflexivos.

A ética se dedica essencialmente às ações humanas, considerando tanto as intenções quanto as consequências práticas. O termo Bioética, em seu sentido original, significa a ação ou o hábito (ethos) referente à vida em geral (bios). Em contrapartida, é necessário sublinhar a ambiguidade do termo vida para os gregos. De acordo com o que defende Agamben (2007), na Grécia antiga havia dois termos que designavam a palavra vida, e que comportavam noções distintas: o termo zoe, que significa uma simples vida natural, e o termo bios, que significa um modo particular de vida, um modo de vida qualificado próprio do homem, imerso em um corpo político. Em outras palavras, segundo Agamben (2007), o termo bios tem a ver, para além de sua noção geral (de vida), com a consideração da vida humana inserida em uma esfera social. Logo, falar de bioética é falar do homem, seu modo de agir e suas relações sociais. Cabe ressaltar, entretanto, que não teremos a pretensão, neste texto, de desenvolver esta questão terminológica. Para tanto, seria necessário fazer uma reestruturação histórica de utilização do próprio termo. O que queremos ressaltar é que, a partir da filosofia de Agamben (2007), o termo bios, ou ainda, a palavra vida derivada dele, compõe uma esfera social e política, cujo foco reside na interioridade das ações humanas, tal como a própria significação do termo sugere.

Isto posto, sigamos à definição corrente de bioética, partindo dos pressupostos estabelecidos por Agamben (2007). Apesar de completamente inserida no corpo social e político, hoje a bioética não comporta mais a dualidade etimológica entre os termos gregos referentes à vida. Falar em bioética é falar nas estruturas comportamentais referentes à vida como um todo. A bioética, tal como a entendemos hoje, engloba as significações referentes tanto ao termo zoe quanto ao termo bios.  

A bioética é, enquanto desdobramento da ética na contemporaneidade, o estudo transdisciplinar que investiga as condições necessárias para uma administração responsável da vida humana, animal e ambiental. Discute questões em que não há o consenso moral, tais como: fertilização em vitro, aborto, clonagem, eutanásia, transgênicos, pesquisa com células tronco. Logo, discute também a responsabilidade ética e moral das pesquisas científicas e suas aplicações. Portanto, a bioética é um campo disciplinar que trabalha o conflito moral entre o desenvolvimento humano e o desenvolvimento tecnológico. Na verdade, a bioética procura, enquanto campo de problematização filosófica, fundar novos paradigmas ligados à transformação da consciência humana, frente ao desenvolvimento biotecnológico. 

Heidegger, ao teorizar sobre a técnica e o mundo ocidental, já afirmava que a fome desenfreada pelo avanço tecnológico acaba por “ameaçar as bases da própria vida” (in ANTISERI; REALE, 2016, 210), sem impedir que o homem avance e queira avançar cada vez mais. O único objetivo da técnica seria, para além de qualquer princípio ético e moral, a transformação da realidade, para que o homem possa dominá-la e desfrutá-la por completo. Em sua obra A Questão da Técnica (1954), Heidegger afirma, na análise crítica da sociedade industrial contemporânea, que a ciência e a técnica se limitariam à resolução dos problemas práticos e refletiriam “os interesses determinados da sociedade industrial” (HEIDEGGER, 1954, apud MARCONDES, 2004, 267). Por isso, o filósofo afirmara que “a ciência não pensa”, pois “a ciência e sua aplicação técnica seriam incapazes de pensar o Ser, de pensá-lo fora da problemática do conhecimento e da consideração instrumental e operacional da realidade típicos do mundo técnico” (MARCONDES, 2004, 267). 

Apesar da reflexão filosófica de Heidegger, ocorrida na década de 50, a bioética teve o seu desenvolvimento mais efetivo nos anos 1970, quando a discussão foi redirecionada de modo a acompanhar de modo concreto os problemas do desenvolvimento tecnológico, seguindo um caminho mais humanista face ao viés tecnicista em ascensão. A partir de então, criou-se um código ético para o desenvolvimento científico referente à manipulação da vida, tentando se estabelecer que a ciência não pode ser mais importante do que a vida. O objetivo maior era o de controlar o progresso científico, por lidar com práticas que podem ter efeitos irreversíveis sobre os fenômenos vitais, com grande influência sobre a transformação da consciência humana.

A bioética, então, visa à promoção de um quadro ético normativo e reflexivo, para que o humanismo se sobreponha à experimentação científica. A bioética é composta por uma tripla função: descritiva, pela análise e descrição dos conflitos morais; normativa, pela elaboração de um código de conduta para o desenvolvimento científico; protetora, pelo amparo dos interesses e valores dos envolvidos em situações morais conflitivas.

A bioética é composta por seis áreas principais de estudo: biológica, pedagógica, social, pessoal, ecológica e legislativa. Na área biológica, a bioética tem por objeto toda prática relacionada à manipulação da vida, trabalhando com temas como pré-natal, reanimação, aborto, genética, clonagem, transplante, eutanásia. Na área pedagógica, o objeto de estudo são as alternativas para a melhoria do binômio ensino-aprendizagem, do ponto de vista do desenvolvimento humano. Na área social, econômica e política, a bioética investiga os critérios de distribuição dos recursos, na tentativa de redução das desigualdades. No campo pessoal, a bioética assume um papel de defesa da liberdade dos indivíduos, considerando-a princípio norteador de qualquer estrutura social. 

Na área ecológica, por sua vez, a reflexão é voltada para a proteção do meio ambiente, em todas as esferas. A ética ambiental trata, principalmente, da forma de agir do homem e sua interferência ao meio ambiente, postulando a conservação de todo tipo de vida. Na dimensão ambiental da bioética, então, o homem não é compreendido de maneira isolada e antropocêntrica. Ao contrário, ele deve ser entendido como um ser da natureza, do todo ambiental, e nunca fora dele. 

Por fim, na área legislativa, a bioética tem por objeto a análise jurídica dos avanços tecnológicos da medicina e da biotecnologia, tendo por base a preservação da dignidade humana. O biodireito é um campo de investigação da bioética, com a função de garantir e defender legalmente o código de conduta da aplicação do desenvolvimento científico. A aplicação do direito nas relações bioéticas não se mostra a partir de uma perspectiva fechada, ou completamente utilitária, já que, como vimos, a bioética trata de impasses ético-morais que dependem, para se tornarem legítimos, da construção contínua e variável de um código de conduta moral, cujos valores são mutáveis.

Para concluir o presente texto, é possível afirmar que a questão da técnica e suas relações com o campo bioético é muito rica, na medida em que oferece preceitos existenciais acerca não só da manipulação da vida como um todo, como também da sua manutenção. Como ciência que trabalha as práticas humanas inseridas em um corpo social, práticas estas que se referem tanto à bios quanto à zoe, tal como descreve Agamben (2007), a bioética se faz presente em todas as discussões morais, problematizando seus diagnósticos, suas soluções e seus impasses.

Referências 

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer I – O poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.

ANTISERI, D.; REALE, G. História da Filosofia 6 – De Nietzsche à Escola de Frankfurt. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2016.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornhein. Coleção Os Pensadores. 1ª ed. São Paulo: Abril S.A. Cultural, 1984.

BAILLY, A. Dctionnaire Grec-Français. 16eme. Édition. Paris: Library Hachette, 1950.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia – Dos pré-socráticos a Wittgenstein. 8ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

 

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