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Ano 12, n. 32, 2019
Autor: Gustavo Bernardo
Sobre o autor: Gustavo Bernardo é professor de Teoria da Literatura no Instituto de Letras da UERJ e também escritor, autor de ensaios como A ficção cética (São Paulo: Annablume, 2004) e romances como A filha do escritor (Rio de Janeiro: Agir/Petrobras, 2008). Atual Diretor do Departamento de Seleção Acadêmica da UERJ.
Publicado em: 09/01/2020
Este artigo expõe a concepção pedagógica, epistemológica e política que embasa a Redação da UERJ, desde a proposta que aparece para os candidatos até o processo de correção das redações.
O artigo é construído a partir de duas palestras ministradas em 2019: a primeira, em outubro, para cerca de 200 candidatos ao Vestibular Estadual 2020, no Auditório 11 no Campus Maracanã da universidade; a segunda, em dezembro, para os 130 professores da equipe de correção da prova de Redação do exame discursivo do mesmo vestibular, no mesmo Auditório.
As propostas e as práticas de correção definem a concepção de redação com que trabalhamos, até porque há pelo menos duas concepções bem diferentes, competindo entre si pelo coração dos candidatos e dos professores de português: a do vestibular da UERJ e a do Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM. Exploro essa diferença fazendo algumas perguntas para o leitor.
O artigo é dedicado a todos os
professores que participam e que já participaram da correção das redações no exame discursivo do Vestibular da UERJ, o que significa centenas de profissionais da melhor qualidade.
Escrever é fácil?
Escrever
é estar no extremo
de
si mesmo, e quem está
assim
se exercendo nessa
nudez,
a mais nua que há,
tem
pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de
tiques, de gestos falhos,
de
pouco espetacular
na
torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.
Quem conhece o meu velho livrinho, Redação
inquieta, publicado no século passado, em 1985, sabe que os versos acima,
de João Cabral de Melo Neto, compõem a sua epígrafe. Os versos ajudam a explicar
por que os alunos correm para pôr a sua redação debaixo da pilha de redações,
na mesa do professor, pedindo para não lermos na frente deles. Eles têm medo,
não tanto da nota, mas principalmente do olhar e da opinião do professor —
porque, ao escreverem, de algum modo sentem que chegaram perto do extremo de si
mesmos.
Escrever não é fácil. Se acharmos que
é fácil, desanimamos rápido. Escrever é difícil tanto para o iniciante quanto para
o romancista consagrado. A rigor, ninguém aprende a escrever, porque todo mundo
está sempre aprendendo, a cada texto e a cada momento. Não são apenas os
candidatos ao vestibular e os nossos alunos que sofrem para escrever — nós
também. Se não nos lembramos disso, não avaliamos bem as redações deles.
A dificuldade de escrever, que é
natural, que é normal, deriva da dificuldade de ter opiniões próprias. Do mesmo
jeito que escrever não é fácil, não é fácil ter uma opinião sobre qualquer que
seja o assunto. Defendemos mal as nossas opiniões porque, comumente, elas não
são de fato nossas — apenas as repetimos sem pensar, ou pensando muito pouco a
respeito. Por isso, quando contestados ou ridicularizados, mudamos tão
rapidamente de opinião.
A construção de uma opinião pessoal ou
de uma ideia própria é muito difícil, demandando pesquisa, reflexão, paciência,
silêncio, introspecção e elaboração. É preciso reconhecer essa dificuldade para
poder valorizar tanto as opiniões alheias quanto as nossas poucas boas ideias. Uma
boa opinião é fruto de reflexão, maturação, paciência e tempo. Por isso, se o
aluno ou candidato ainda não tem uma opinião bem formada sobre o tema, ele deve
mostrar seu esforço de construir essa opinião.
Como? Levantando possibilidades de
abordagem, elaborando hipóteses alternativas, e fazendo perguntas tanto ao tema
quanto ao leitor quanto, ainda, a si mesmo. Usando, com economia, indicadores
de que está pensando. Ora, qual é a palavrinha que indica bem que estamos
pensando? A palavrinha “talvez”. Mostrar a sua dúvida mostra que você está
pensando, porque pensar é simplesmente igual a duvidar.
Todos conhecem a frase de René
Descartes, “cogito ergo sum”, ou seja: penso, logo, existo. Em geral
conhecem, porém, apenas a metade da frase. A frase completa é: “cogito ergo
sum vel quod item est dubito ergo sum” — ou, em português: “penso, logo,
existo, ou, o que é o mesmo, duvido, logo, existo”. Esta sentença nos permite
concluir que quem não duvida, não pensa; quem só tem certezas, as quais repete
sem parar, já não pensa mais. O que nos leva à segunda pergunta.
Como definir a redação argumentativa?
A redação argumentativa, também
conhecida como dissertação, pode ser definida como a ação de defender uma
opinião própria por meio de argumentos articulados entre si. Os argumentos
sustentam a defesa da opinião. O que constitui um argumento é um conjunto de evidências
articuladas entre si. Os argumentos precisam ser tanto suficientes e
pertinentes quanto válidos e verdadeiros.
Na redação, pode-se defender qualquer opinião,
mas se e somente se ela estiver sustentada em argumentos, argumentos estes que
devem ser apoiados em fatos. Temos direito à nossa própria opinião, mas não a
nossos próprios fatos.
Se eu defendo que a Terra é plana,
contra todas as evidências científicas, apenas porque alguns imbecis me mandam
repetir isto, a minha opinião não é de modo algum válida. Se eu defendo que não
há aquecimento global, eu preciso ter dados que sustentem a contestação da
teoria vigente, bem como a elaboração de novas hipóteses nesta questão.
A primeira opinião é indefensável,
porque não há qualquer evidência que a sustente. A segunda opinião é muito
difícil de defender, mas não impossível, porque os piores efeitos do
aquecimento global ainda não se fizeram sentir. Eu posso ler uma redação que
defenda essa posição e discordar de todos os seus argumentos, mas, ainda assim,
lhe dar a nota máxima, porque ela tem argumentos e eles estão bem articulados
entre si.
Essa é uma regra das nossas correções
de redação: nós avaliamos apenas e tão somente a qualidade da argumentação,
porque não importa se concordamos ou não com a opinião ali expressa. Essa também
já é uma diferença capital entre as propostas de redação da UERJ e do ENEM.
Como se avalia redação num concurso
vestibular?
Avaliar alguém ou o trabalho de alguém
é extremamente difícil, senão impossível, porque quem avalia nunca sabe tudo o
que precisa saber sobre a pessoa que avalia, ou sobre as condições em que ela
fez este ou aquele trabalho. Não à toa a própria Bíblia já nos dizia, em Mateus
7: “não julgueis, para que não sejais julgados”. Por isso mesmo, é triste
quando vemos tantos com a Bíblia debaixo do braço, mas julgando os outros com o
rigor que não usam para julgar a si mesmos.
A despeito dessa regra de ouro, a
avaliação é necessária, em especial na educação. A avaliação justa, na vida ou
na escola, é um horizonte que devemos perseguir, mas sempre sabendo que todo
horizonte, por definição, se afasta de nós na mesma velocidade com que andamos
na direção dele.
Ora, se toda avaliação é muito
difícil, a avaliação de uma redação é duplamente difícil, porque não é possível
estabelecer para ela um gabarito fechado. Cada redação particular estabelece
seus próprios critérios. A correção de redações é sempre um processo subjetivo
e intersubjetivo que leva em conta muitos fatores, inclusive as outras redações
da pessoa avaliada e a relação entre quem avalia e quem é avaliado. Cada
professor precisa de estratégias para moderar a sua própria subjetividade,
tentando, em termos ideais, comparar a redação de um aluno não apenas com as
redações dos colegas ou com o seu modelo ideal de redação, mas, antes de tudo,
com as outras redações deste mesmo aluno.
Assim como não é fácil escrever,
também não é fácil dar aula de redação: envolve não somente muito trabalho, mas
também muito estudo, muita habilidade e, principalmente, muita empatia. Nos
concursos de massa, como o vestibular, a relação entre quem escreve e quem
avalia é ainda mais complicada e subjetiva, porque quem avalia não conhece quem
escreve, bem como vice-versa, o que gera uma impessoalidade perigosa, a qual,
paradoxalmente, amplia a subjetividade: como ter empatia com uma pessoa que eu
não conheço? Como escrever para alguém que vai me avaliar, mas que eu não sei
quem é?
Nos vestibulares, costuma-se moderar a
subjetividade através de dupla correção cega, pela qual dois professores
avaliam as mesmas redações, sem que um avaliador saiba o nome do outro, nem que
notas atribuiu. Se a diferença entre as notas é menor do que certo percentual,
tira-se a média das duas notas. Se a diferença entre as notas é maior do que este
percentual, configura-se uma discrepância. Convoca-se então um terceiro
avaliador, ou da equipe de supervisão ou da própria banca, para rever as duas
avaliações e atribuir a nota final. O processo de correção se torna uma
discussão coletiva, para benefício dos candidatos e do exame, que assim fica um
pouco mais justo.
Qual é a diferença entre a redação do
ENEM e a redação da UERJ?
Faço esta comparação porque os
candidatos passam mais tempo treinando para a redação do ENEM do que para a
redação da UERJ. Faço esta comparação, também, porque muitos professores não só
corrigem a redação do ENEM como preparam seus alunos para o ENEM.
Entretanto, as propostas de redação e
da correção da redação do ENEM e da UERJ são opostas entre si. Primeiro, a
proposta da redação do ENEM obriga os candidatos a defenderem a mesma opinião,
inviabilizando a defesa de qualquer opinião realmente própria. Ou o candidato
concorda com a opinião da banca, que fica clara na proposta da redação, ou
corre o risco de ter a redação zerada.
Na redação do ENEM, cada corretor
corrige em casa, com supervisão à distância – logo, o trabalho da correção é antes
individual do que em equipe. A correção é feita por 5 quadros estanques de
competências, atribuindo graus entre 0 e 2 a cada quadro.
Ora, a correção por quadros estanques
de competências fragmenta a percepção da redação, fazendo com que o avaliador
não enxergue a redação como um todo, mas apenas como um conjunto de aspectos
técnicos desconectados entre si. Além disso, a correção por quadros estanques de
competências empurra as notas para a média, porque os avaliadores tendem a não
atribuir nem a nota mínima nem a nota máxima a cada quadro.
A redação da UERJ, por sua vez, é
elaborada a partir da leitura de um romance previamente indicado – no
vestibular 2020, realizado em 2019, o romance indicado foi Vidas Secas,
de Graciliano Ramos; no vestibular 2021, a ser realizado em 2020, o romance indicado
será 1984, de George Orwell.
Na redação da UERJ, pede-se a
discussão de uma determinada questão polêmica levantada pelo romance, deixando
claro que se aceita qualquer opinião do candidato a respeito do tema, desde que
esta opinião esteja apoiada em argumentos válidos, verdadeiros, pertinentes e
suficientes. A leitura do romance e a sua discussão com colegas e professores
facultam a cada candidato a possibilidade de escrever uma redação com
argumentos previamente amadurecidos.
A correção da redação da UERJ é
presencial, em equipe, no campus da universidade. A correção assume a
subjetividade da tarefa e busca ser totalizante, atribuindo um grau geral a
toda a redação, de preferência par, correspondendo aos conceitos: EXCELENTE
(10); BOA (8); MÉDIA (6); FRACA (4); MUITO FRACA (2); e NULA (0). A cada ano, para
cada proposta de redação, construímos um quadro para caracterizar os perfis de
redação que justifiquem cada valor atribuído, bem como possibilidades de
combinação de critérios.
Os avaliadores devem valorizar
qualquer opinião, desde que ela conte com argumentos que a sustentem. Os
avaliadores sempre devem se lembrar de que, se a redação de determinado
candidato nos incomoda ou nos irrita, a releitura é imprescindível — porque há
forte probabilidade de que a redação confronte as nossas convicções e, nesse
sentido, ela tem efeito e pode estar tecnicamente boa, mesmo que defenda uma
opinião oposta à nossa. Como já foi dito, não nos cabe avaliar a qualidade da
opinião, mas sim a qualidade dos argumentos que sustentem a opinião.
O treinamento de redação ajuda a fazer
a redação do vestibular?
Sim e não.
Sim, porque esse treinamento ajuda os bem
iniciantes e os menos preparados a fazerem redações mais próximas da média
geral.
Também devo responder “não”, porém,
porque “treinar redação” é uma contradição nos próprios termos: se treino
alguém a escrever, isto é, a pensar, acabo ensinando-o a não pensar.
O treinamento da redação tende a
pasteurizar os textos dos candidatos, levando-os a usarem todos os mesmos
recursos e as mesmas palavras, o que transforma eventuais qualidades em
defeitos. Os corretores ficam cansados de ler as mesmas estruturas, os mesmos
conectivos e as mesmas citações, o que os leva, com razão, a penalizar as
redações que se repetem como se saíssem de uma máquina enguiçada, e não da
cabeça pensante de um candidato.
Dessa maneira, o treinamento tende a prejudicar
os candidatos medianos e, principalmente, os candidatos melhor qualificados,
trazendo-os também para próximo da média — no caso deles, trazendo-os para baixo,
logo, mediocrizando o seu trabalho e o seu valor.
Sugiro sempre aos candidatos que aproveitem
o que for possível dos treinamentos e das dicas, mas, ao mesmo tempo, recomendo
enfaticamente que protejam a sua própria opinião. Quando se defende uma opinião
diversa da nossa, cometemos muito mais erros de todo tipo, da argumentação à
gramática, simplesmente porque no fundo não concordamos com o que estamos
escrevendo.
As próximas perguntas questionam as armadilhas
desses treinamentos de redação.
Posso escrever na 1ª pessoa do
singular?
Essa é uma questão nevrálgica. Sempre
tenho vontade de responder: não só pode, como deve!
Uma das recomendações recorrentes é a
de de não falar jamais na 1ª pessoa do singular, de nunca escrever “eu acho
que”. Ao contrário, ensina-se o candidato a optar pelo plural de modéstia, “nós
pensamos isso ou aquilo”, ou pela indeterminação do sujeito, dizendo “pensa-se
isto ou aquilo”.
A primeira consequência dessa
recomendação é a de o candidato se convencer de que não pode expressar a
própria opinião, já que não pode falar em seu próprio nome. Essa recomendação, no
meu entender absolutamente equivocada, é corroborada pelos professores, infelizmente,
que orientam os alunos a esquecerem a própria opinião — o que gera contradição
absurda, já que a dissertação é a defesa de uma opinião pessoal.
Se não posso ter opiniões, então não
posso escrever uma dissertação, que é justamente a defesa de uma opinião.
Por isso, enfatizo que na verdade as três
opções — “eu penso”, “nós pensamos”,
“pensa-se” — são válidas, nenhuma delas está errada. O candidato pode muito bem
alternar as três pessoas, para deixar o texto mais dinâmico. Entretanto, a
insistência no plural de modéstia ou na indeterminação do sujeito, excluindo a alternativa
da 1ª pessoa do singular, tem como efeitos colaterais indesejados a
mediocrização da redação, primeiro, e a atrofia do pensamento, a seguir, como
se nos mandassem não pensar.
Eu — assumindo sempre que sou eu quem
fala — recomendo que o aprendiz de redação procure escrever na 1ª pessoa do
singular, porque: historicamente, os principais escritores dos séculos XX e XXI
escrevem na 1ª do singular; pedagogicamente, escrever na 1ª do singular ajuda a
pensar, portanto, a construir argumentos; politicamente, escrever na 1ª do
singular ajuda a pensar pela própria cabeça, portanto, a não se deixar
manipular pelo discurso alheio.
Evitar escrever “eu acho que” ou
“penso que” induz a pessoa a não achar ou pensar mais nada, levando-a a não
concordar com aquilo que ela mesma escreve — o que provoca erros graves de
concordância verbal. Ninguém escreve ou fala “nós vai” porque não sabe que o
certo é “nós vamos”, mas sim como sintoma do esmagamento da individualidade e
da dignidade por esse tipo de recomendação esquizofrênica.
O adjetivo “esquizofrênico”, aqui, não
é exagero: se mando escrever uma dissertação, que é a defesa de uma opinião, e
depois mando não expressar a própria opinião, então eu dou duas ordens
contraditórias — o que revela a minha esquizofrenia e, ao mesmo tempo, provoca
esquizofrenia no outro.
Devo, no entanto, fazer ressalva
óbvia: não basta escrever “eu acho que” — é preciso, primeiro, “achar” mesmo
alguma coisa, ou seja, expressar realmente alguma ideia ou opinião, e depois,
sustentar o que achou ou pensou com argumentos articulados e devidamente
apoiados em fatos e evidências. Também é contraindicado escrever “eu acho que”
ou “eu penso” repetidamente, por exemplo no início de cada parágrafo, porque
passa a impressão de que o autor do texto está “enrolando”, porque não sabe o
que dizer.
Citar opiniões de outras pessoas pode
ser válido?
Sim, porque constitui parte do “argumento
de autoridade”, quando citamos autoridades no assunto para apoiar o nosso
pensamento. Entretanto, é necessário, primeiro, que o autor citado seja de fato
uma autoridade no assunto (um político, por exemplo, não tem autoridade nenhuma
em relação a questões sociais, científicas ou estéticas — às vezes, nem em
questões políticas); segundo, é necessário que a citação se encaixe direitinho
na redação, para não ficar deslocada no argumento; terceiro, e mais importante,
é necessário que o candidato tenha de fato lido o autor citado ou a obra citada,
para conseguir estabelecer as relações e as comparações corretas.
A citação forçada e aleatória tira a
autoridade de qualquer argumento de autoridade. Os treinamentos de redação
costumam orientar para citar filósofos e pensadores em geral, mas o resultado
tende a ser muito ruim, porque os candidatos não leram os autores que citam e,
em consequência, acabam citando muito mal.
Friedrich Nietzsche e Zygmunt Bauman,
por exemplo, são autores muito citados, mas quase sempre de maneira inadequada
ou simplesmente errada. Como este é um recurso usado por um número muito grande
de candidatos, acaba cansando o avaliador e levando-o a desvalorizar as
redações que o usam.
Considerando que a redação da UERJ
parte das questões levantadas por um livro de literatura, recomendo
enfaticamente fazer citações, se for o caso, ou do livro trabalhado, ou
diretamente relacionada ao livro trabalhado — por exemplo, de comentários do
autor ou de críticas feitas à obra.
Claro, não é obrigatório fazer citações,
trata-se apenas de mais um recurso possível — entretanto, se o candidato fizer
uma citação, que ela seja pertinente e consequente. A orientação é a de não
penalizar quem não cita o livro, porque o candidato não precisa fazer uma
crítica literária. Entretanto, valoriza-se quem cita o livro, tanto
corretamente, porque o leu, quanto adequadamente, porque a citação reforça o
seu argumento, não está ali apenas de enfeite para impressionar o corretor.
Devo escrever difícil para
impressionar?
A resposta para o candidato é: por
favor, não faça isto.
Ensinam-se os iniciantes a usar
conectivos elaborados, mas não se ensina a fazer as conexões adequadas —
proliferam conectivos ligando nada a coisa nenhuma, além da tendência
desastrada de usar “onde” como conectivo coringa, mesmo sem estabelecer nenhuma
relação de lugar, ou então de usar “então” para começar cada frase, o que é
absurdo.
Ensinam-se os iniciantes, também, a
usar mesóclises — dir-se-ia, falar-se-ia, por exemplo — como se
estivéssemos no século retrasado, mas não se ensina a conjugar corretamente os
verbos. Mesóclise, no século XXI, é um pecado mortal do estilo, prejudicando seriamente
a clareza do texto e provocando, na melhor das hipóteses, algumas risadas.
Ensinam-se os iniciantes, por fim, a
usar um vocabulário empolado, burocrático e de cartório, recorrendo a palavras
como “destarte”, “decerto”, “supracitado” e “outrossim”, e não a escrever
claro.
O próprio Graciliano Ramos, a
propósito, teria proferido um veredito definitivo sobre o uso de “outrossim” e
outros preciosismos, num ofício que escreveu quando foi prefeito de uma cidade
do Nordeste. Ao receber um outro ofício, do Governador de Alagoas, Graciliano
lhe respondeu educadamente, contestando algumas determinações, mas acrescentou:
“em tempo: outrossim é a puta que o pariu!”.
Há quem diga, no entanto, que a
condenação acima foi proferida quando ele trabalhou como revisor de um jornal,
no Rio de Janeiro, ao se deparar com a barbaridade no texto de um repórter. O
que importa é que não nos esqueçamos dessa condenação definitiva a todos os
“outrossins” e pedantismos equivalentes.
Então, como impressionar a banca de
correção?
A regra é: não tentar impressionar
ninguém.
Apenas escrever, antes de tudo, com o
máximo de clareza. Sempre sugiro imaginar um leitor ideal que seja inteligente,
claro, mas que saiba menos do que quem escreve, para escrever explicando
para esse suposto leitor, com o máximo de clareza, tintim por tintim, os
principais aspectos da opinião de quem escreve e os principais pontos do seu raciocínio.
Recomendo, igualmente, que ninguém se
coloque numa posição subalterna ou inferior, ou seja: que ninguém tente “puxar
o saco” do avaliador, porque o efeito é muito ruim.
A postura contrária, porém, também não
é recomendada. Não se deve ser arrogante, dizendo “minha opinião é esta e
ninguém vai mudar”, escrevendo como se quem se atrevesse a discordar fosse um
idiota. É preciso defender o próprio pensamento, mas não tentar impor o seu
pensamento, nem escrever como se falasse apenas com os “iguais” nas redes
sociais. Quem redige precisa convencer o interlocutor do que pensa, mas com
elegância, discrição, educação, calma e, principalmente: bons argumentos.
Essas recomendações implicam avaliações
compatíveis com elas. A avaliação da redação não deve valorizar preciosismos
pedantes. O que se deve valorizar, ao contrário, é a clareza e, se for o caso,
o humor fino.
José Ortega Y Gasset dizia que a
gentileza do filósofo é a clareza. Eu prefiro dizer que a clareza é a obrigação
de todos os que escrevem — a gentileza é o humor.
Como a leitura do livro indicado ajuda
a fazer a redação?
Desde 2017, indicamos um livro de
literatura como leitura prévia da prova de Redação. Em 2017, trabalhamos com Dom
Casmurro, de Machado de Assis; em 2018, com O seminarista, de Rubem
Fonseca; em 2019, com Vidas secas, de Graciliano Ramos. Em 2020, o livro
indicado como leitura prévia da prova de Redação, no exame discursivo, será 1984,
de George Orwell.
A indicação dessa leitura prévia ajuda
os candidatos porque, antes de tudo, não se precisa mais adivinhar o tema: o
tema é uma das questões levantadas pelo livro previamente lido pelos candidatos.
Os candidatos podem discutir essas questões, ao longo do ano, com os colegas e
os professores, o que lhes permite elaborar aos poucos as suas próprias
opiniões a respeito, contando com o seu esforço consciente e com o trabalho, em
segundo plano, do inconsciente.
Os candidatos não precisam mais fazer
citações impertinentes, já que há um livro de onde tirar citações pertinentes, as
quais, claro, não precisam ser citadas de memória — ninguém precisa decorar o
livro, basta comentar uma passagem ou, se for o caso, uma fala.
É importante destacar que a ficção é
fonte privilegiada de argumentos e de reflexões para todas as questões da
humanidade. A literatura é uma escola de convivência, de civilização, de
tolerância e de desmascaramento de preconceitos, porque ela nos permite o que
de outra forma seria muito difícil: nos colocarmos no lugar e nas perspectivas
dos outros.
Quando lemos um romance, nós também
nos tornamos o narrador ou o protagonista, nós também pensamos como o narrador
ou o protagonista. Mesmo que o protagonista seja, por exemplo, um matador de
aluguel, como o ex-seminarista do livro de Rubem Fonseca que serviu à redação
do vestibular 2019, ou um jagunço que rouba, mata e violenta, como o insinuante
Riobaldo Tatarana, do romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa,
nós, os leitores, entramos na pele e na mente deles, e assim entendemos nossas
próprias zonas de sombra.
Quando lemos Vidas secas, de
Graciliano Ramos, para a redação do vestibular 2020, acompanhamos a mente e o
coração de personagens encurralados pela seca, esmagados pela miséria e
alienados pela falta de educação, de direitos e de oportunidades — tanto, que
mal conseguem articular seus desejos, suas angústias e suas esperanças.
Este livro em particular, a literatura
em geral, nos convidam sempre à empatia, à simpatia e à compaixão, sentimentos
cada vez mais necessários e urgentes
frente à estupidez, à grosseria e à boçalidade, espalhadas nas principais
instâncias de poder do país.
Qual conselho dar aos candidatos?
Aconselho os candidatos a lerem
primeiro, no dia do exame discursivo, a proposta da redação, mas deixando-a de
lado a seguir, para responder às demais questões do exame. A redação deve ser
escrita no final, quando o inconsciente de cada um já teria trabalhado, em
segundo plano, nos argumentos da redação.
Este conselho é reforçado pela própria
proposta de redação da UERJ, que parte de um livro de literatura conhecido
previamente. Ora, nada alimenta mais o inconsciente de uma pessoa do que a
leitura silenciosa e solitária — em especial, a leitura de ficção. Desse modo,
os candidatos podem deixar sua opinião e seus argumentos amadurecerem ao longo
do ano, redigindo-a ao final com muito mais segurança.
O que estamos dizendo aos candidatos é
que é preciso, antes de tudo, acreditar em si mesmos: no próprio estudo, na
própria leitura, na própria consciência, no próprio inconsciente, na própria
opinião. Muito mais do que aprender a fazer prova, cada um precisa aprender a
confiar, antes de tudo, em si mesmo.
É preciso chamar a atenção para o
forte efeito pedagógico do vestibular da UERJ nas escolas de ensino médio e
fundamental do Estado do Rio de Janeiro. As concepções de redação e,
consequentemente, de avaliação da redação que defendemos e que aperfeiçoamos já
há muitos anos, supõem que, para os alunos escreverem melhor, eles precisam
pensar melhor.
Ora, para eles pensarem melhor, é
preciso antes de tudo que pensem pela própria cabeça, que não se conformem com
a reprodução mecânica de modelos de redação, que não se conformem com a ordem
absurda de escreverem dissertações sem expressarem as suas próprias opiniões.
O cumprimento dessa ordem absurda os
leva a abdicar de construir o próprio pensamento, logo, a não duvidar e,
portanto, a não pensar. Daí ao desastre pedagógico, acadêmico, científico,
social e político, é apenas um passo — ou apenas um voto.
Como esses princípios afetam a
correção das redações?
Lembro que a correção por quadros
estanques de competências fragmenta a percepção da redação, fazendo com que o
avaliador não enxergue a redação como um todo, mas apenas como um conjunto de
aspectos técnicos desconectados entre si.
Ora, se entendemos que a redação do
Vestibular da UERJ deve valorizar a construção da opinião e do pensamento
próprios dos candidatos, então devemos entender também que a correção da
redação do Vestibular da UERJ deve valorizar a opinião, o pensamento e a
experiência dos professores que fazem este trabalho.
Por isso, propomos um processo de
correção em que não se tente denegar a subjetividade dos avaliadores, mas, ao
contrário, propomos um processo que assuma a subjetividade dos avaliadores — logo,
que valorize sobremaneira as suas próprias reflexões.
Há um método de educação que se
sobrepõe a todos os outros: o velho método do exemplo. Ensino a pensar, e
portanto a escrever, se também penso, isto é, se também cultivo as minhas
dúvidas, explorando todos os seus desdobramentos. A redação do Vestibular da
UERJ, desde a sua proposta até o seu processo de correção, quer ser um exemplo,
para o ensino médio e para a sociedade, de valorização do pensamento.