Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 29/03/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

Quem cola sai da escola?

Gustavo Bernardo

A “cola” na escola é a prática de furtar ideias e respostas alheias nas situações de avaliação. Trata-se de um fenômeno tão recorrente que gera a palavra de ordem dos corredores: “quem não cola não sai da escola”.

A recorrência do fenômeno sugere que a prática da cola seria ou um problema menor ou um problema insolúvel. Aqueles que a veem como problema menor defendem que muitas vezes a cola pode até estimular a criatividade dos alunos, tantos são os meios inventados para burlar a vigilância de professores e inspetores. Aqueles que a veem como problema insolúvel defendem que a essência do ser humano é ruim, logo, se faz necessário aumentar o controle para que os alunos, pelo menos, colem menos.

De fato, trata-se de um problema. Defendo, no entanto, que esse problema não é nem menor nem insolúvel.

Por que a cola não é um problema menor? Porque através da sua prática o futuro cidadão “aprende” a desonestidade intelectual, exatamente a matriz de todo tipo de corrupção que assola o país. Através da prática da cola o futuro cidadão aprende a subornar, a aceitar suborno e a avançar o sinal vermelho. Minimizar a importância da cola implica minimizar suas graves consequências para toda a sociedade.

Por que a cola não é um problema insolúvel? Porque ela é fabricada pela própria escola, que dela precisa para estruturar e justificar seu complexo sistema de controle e poder. Na verdade, a cola é a sombra da própria escola. Se percebermos como isso acontece, podemos mudar as práticas escolares que instituem e promovem a cola.

Na escola são tantas as disciplinas que o conhecimento fica todo esfacelado. Nenhum professor pode dar conta de toda a matéria que se ensina aos alunos em todas as disciplinas, mas todos os professores exigem que seus alunos deem conta do que eles mesmos não conseguem. Tanta divisão provoca fragmentação do conhecimento e alienação dos professores. Os alunos não veem mais no professor a figura do Mestre e não transferem o que aprendem de uma disciplina para a outra – por exemplo, escrevem “certo” apenas na aula de português. Os professores não sabem o que os colegas ensinam, mas obrigam seus alunos a aprender sua matéria como se fosse a única.

Para ocultar a fragmentação e a alienação, é preciso reforçar o controle sobre os alunos através de sucessivos exames das múltiplas disciplinas. O aluno, pressionado por tanto exame de tanta matéria, e ao mesmo tempo percebendo que seus professores não sabem tudo o que eles teriam de saber, tenta escapar pela cola. A escola então se vê obrigada a criar mecanismos de repressão à cola.

No entanto, como quem passou pela escola sabe bem, esses mecanismos são em geral ineficientes. Um número muito pequeno de alunos é “pego” colando, o suficiente apenas para manter a impressão de repressão. Punem-se somente aqueles que colam muito mal. Isso significa que professores e inspetores são bobos?

Não. Na verdade, o controle deficiente da cola revela-se um procedimento eficiente de promovê-la. Promove-se assim a desonestidade e, ao mesmo tempo, a dependência intelectual. Quando consegue colar o aluno comemora sua vitória sobre o professor, sem perceber que introjeta tanto a desonestidade quanto a insegurança. Sua vitória é uma derrota. Quem cola, na verdade, não sai da escola, porque fica preso dentro do seu sistema viciado e viciante.

Apesar da institucionalização da cola, o professor se indigna quando consegue pegar um aluno colando. A indignação oculta a seus próprios olhos o constrangimento de reconhecer que faz parte de um logro, que ele mesmo é peça de um jogo cujas regras não são claras.

A escola estimula a cola quando a reprime propositalmente mal; quando submete o aluno a tantas disciplinas fragmentadas, cada uma delas com exigências cumulativas e conflitivas entre si; quando testa e examina o aluno toda semana, às vezes todos os dias de uma única semana; quando junta todos os alunos dentro de uma sala apertada, com os colegas do lado a menos de um metro; enfim, quando seus testes são de múltipla escolha.

A tal da múltipla escolha pode ser resolvida sem esforço pelo chamado “rabo de olho”. A própria expressão “múltipla escolha” revela contradição flagrante: o aluno precisa encontrar a única resposta certa, ou seja, ele não tem escolha nenhuma. Ao contrário, ele tem muito mais chance de errar do que de acertar. A múltipla escolha é irmã gêmea da cola.

Meu leitor sempre inteligente se espanta: você escreve contra a múltipla escolha dentro da revista do vestibular que recorre anualmente a testes de múltipla escolha!

Explico: a situação de testes de massa que envolvem milhares de pessoas é muito diferente da sala de aula. Normalmente os candidatos não facilitam a cola, se disputam poucas vagas entre si. Ao mesmo tempo a repressão à cola se torna eficiente, para não pôr sob suspeita o exame. Ainda assim defendo, nesta democrática Revista Eletrônica do Vestibular da UERJ, que mesmo os exames vestibulares sejam exclusivamente discursivos, justo para não darem à escola a desculpa para usarem testes de múltipla escolha – na verdade, testes de falsa escolha.

Não acho que a cola torne ninguém mais esperto. A prática da cola fabrica antes pessoas simultaneamente desonestas e inseguras. Logo, sou contra a cola. Mas também sou contra a repressão à cola, porque ela na verdade estimula essa prática. O que fazer? Como sempre, a solução se encontra na raiz do problema. Essa raiz deve ser arrancada. Para fazê-lo, devemos modificar as condições escolares que criam e promovem a cola.

Algumas mudanças necessárias, como mexer no sistema de disciplinas fragmentadas da escola, são muito difíceis (nem por isso menos necessárias). Mas há uma mudança que todos podemos realizar agora.

Primeiro, rebatize-se a cola com o nome de “consulta”. Em seguida, torne-se a consulta obrigatória. Como? Decrete-se que todas as avaliações sejam discursivas. Depois, permita-se e estimule-se a consulta ampla, geral e irrestrita em todas as avaliações. A seguir, determine-se que toda resposta do aluno deva ser justificada, não só com os cálculos mas principalmente com uma explicação discursiva e extensiva dos passos do seu raciocínio.

O aluno também poderia consultar o trabalho do colega ao lado? Sem dúvida. Preservando-se um certo ambiente e clima de silêncio, a consulta ao colega simula a situação usual de trabalho coletivo em laboratórios, empresas, redações, escritórios e hospitais. Trocar ideias e mesmo respostas com o vizinho não exime o aluno de construir com as próprias palavras a sua justificativa. Se ele consegue defender com argumentos sua resposta, tanto faz se com muita ou pouca ajuda alheia, isso significa que ele aprendeu. Ora, algum mestre deseja outra coisa?

Transformar a cola em consulta assume o conhecimento como uma construção permanente. Provas com consulta exigem menos questões, portanto exigem que se abandone a pretensão de testar a matéria toda. Já se sabe há muito que o aluno não precisa decorar a matéria toda, mas sim saber procurar o conhecimento quando precisa dele. Ou seja, o aluno precisa aprender a pesquisar, vale dizer, a fazer consultas. Logo, provas com consulta são o meio lógico para ensiná-lo a pesquisar e a pensar. Na verdade, provas com consulta tendem a ser mais difíceis, qualquer aluno sabe — mas sente que tem a sua inteligência respeitada e estimulada.

Em resumo: no meu entender, quem cola é que não sai mesmo da escola – porque fica preso numa postura infantil e subalterna, sempre dependente do conhecimento alheio. Logo, precisamos acabar com a cola. Todavia, como procurei demonstrar, a repressão à cola apenas provoca mais cola. Logo, precisamos transformar a cola em outra coisa, a saber: em consulta ampla, geral e irrestrita. Para fazê-lo, precisamos modificar o instrumento básico de avaliação da escola, exigindo que todos e não menos do que todos os testes e exames sejam discursivos.

 

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