Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 29/03/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

Discurso, discurso, discurso!

Gustavo Bernardo

Agora não me fazem uma pergunta, mas me pedem um discurso: as turmas 2009 de Inglês, Alemão e Italiano do Instituto de Letras da UERJ, que me guindaram à honrosa condição de paraninfo na sua formatura, me pedem esse discurso. Discursemos, pois.

“Senhoras e senhores, meninas e meninos. Em 1973 – crianças, vocês nem sonhavam em nascer – eu dava a primeira aula da minha vida. Esse acontecimento, de que as minhas fatigadas retinas nunca se esquecerão, se deu numa turma do antigo Mobral, Movimento Brasileiro de Alfabetização de Adultos, na favela do Boréu, na Tijuca. Na formatura dessa turma, os alunos se cotizaram e deram dois presentes ao jovem professor: uma camisa social da Casa José Silva, alguém na plateia se lembra dessa loja?, e uma garrafa de vinho do Porto.

Tomei o vinho, é claro, mas não cheguei a usar a camisa, se, como sabem, visto no máximo camiseta hering bem amassada. Entretanto, o carinho daqueles senhores e daquelas senhoras, todos mais velhos do que eu, foi tão forte que prorrompi, como diria Nelson Rodrigues, em verdadeiras lágrimas de esguicho.

Naquele instante descobri 3 coisas sobre a minha vida: primeiro, que eu era um professor; segundo, que eu gostava de ser professor; terceiro, que eu também era um chorão da melhor qualidade.

Esse primeiro momento, pela circunstância, ficou sendo o mais emocionante da minha carreira pelo menos até hoje, quando, 37 anos depois – 37 anos, alguém sabe como se conta isso em termos de vida e profissão? –, vocês me fazem essa homenagem e me colocam nesse lugar – para um professor, o lugar mais nobre de todos.

O que posso lhes dizer nessa hora, além de: obrigado, muito obrigado?

Talvez eu possa acrescentar que, pela minha experiência, a experiência de quem desistiu de ser engenheiro civil para virar professor de português e literatura, a opção que fizeram, consagrada hoje, vale todo o sofrimento e todo o esforço de vocês, assim como vale todo o sonho e todo o investimento da família de vocês.

E vale tudo isso apesar da desvalorização do lugar do professor na sociedade brasileira, vale tudo isso apesar dos riscos de enfrentar os efeitos dessa desvalorização na forma do salário apertado, das condições insuficientes de trabalho, do desrespeito dos alunos e da violência nas escolas.

No entanto, para valer a pena pelos próximos 37 anos e além, é preciso que mantenham o que sentem dentro de vocês nesta noite. Hoje, todos vocês estão com a cabeça erguida, felizes e orgulhosos de terem chegado até aqui. Para que valha a pena, eu lhes peço apenas, por favor, please, bitte, per favore: não abaixem a cabeça.

Não abaixem a cabeça para as circunstâncias; não abaixem a cabeça para a roda-viva da sobrevivência; não abaixem a cabeça em nome da família recém-constituída, filhos & fraldas & contas & etc; não abaixem a cabeça para as mudanças ciclotímicas das supostas autoridades educacionais; não abaixem a cabeça para pedagógicas entidades abstratas como “o programa” ou “o aluno que queremos formar”.

Enfim, não sejam realistas, termo empolado que disfarça o cinismo ou a acomodação. Como dizia o nosso Machado de Assis, “a realidade é boa, o realismo é que não presta pra nada”.

Porque, como diria Sigmund Freud, por sua vez, educar é uma das 3 profissões impossíveis – as outras são governar e psicanalisar. O que é impossível na educação é controlar os seus efeitos. Se abandonamos a pretensão tecnicista e arrogante de controlar os efeitos do que fazemos em sala de aula, nos encontramos livres para experimentar, nos encontramos livres para fazer o melhor que pudermos fazer, nos encontramos livres para olhar no rosto do aluno real e não no desenho de um modelo abstrato.

Essa liberdade toda nos permite seguir o único método de educação que presta: o método do exemplo.

Se querem ensinar a ler, vocês devem dar o exemplo e ler todo dia e de tudo um pouco, mas principalmente a ficção que nos faz ver o mundo sob outras perspectivas e que nos torna outros. Se querem ensinar a ler, vocês devem dar o exemplo e ler sempre e mostrar sempre para o aluno o que estão lendo, deixando muito claro que não são coitados acorrentados àquele maldito livro didático.

Se querem ensinar a escrever, vocês devem dar o exemplo e escrever todo dia e de tudo um pouco, se possível recuperando os rascunhos dos poemas, dos contos e dos romances que os deixavam tão angustiados e tão felizes antes de fazerem Letras. Se querem ensinar a escrever, vocês devem dar o exemplo e escrever sempre e mostrar sempre para o aluno o que estão escrevendo, deixando muito claro que nunca se aprende a escrever de uma vez para sempre, assim como nunca se aprende a ser ou a viver – a gente apenas vai sendo, a gente apenas vai vivendo e vai levando.

Para terminar nessa linha e assim frustrar aqueles que contavam com um loooongo discurso, eu lhes daria um lema latino para a vida de trabalho e letras que ora formalmente começa: “scribere necesse est, vivere non est”.

Ou, em língua romance: escrever é preciso, viver não é preciso; ler é preciso, saber não é preciso; ensinar é preciso, controlar a quem se ensina não é preciso; sonhar é absolutamente preciso, enquanto realizar o sonho às vezes acontece, às vezes não, mas não é o que mais importa.

Meninas, meninos: boa sorte e muito obrigado!”

 

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