Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 08/05/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

Por que tanto ceticismo?

Gustavo Bernardo

Parto do princípio de que o ceticismo é condição “sine qua non” da literatura e da reflexão teórica sobre ela. Esse princípio, no entanto, assusta quem vê no cético apenas aquele que não acredita em nada. O susto se baseia numa compreensão comum, mas equivocada, do ceticismo.

O cético não é aquele que não crê, mas aquele que duvida sistematicamente de tudo, inclusive daquilo em que acredita. A filosofia, lá nos primórdios gregos, começa com o pensamento cético, isto é, com o pensamento dubitativo. O termo “ceticismo” deriva da palavra grega “skepsis”, que significa “procura”. Um cético, então, é aquele que procura sempre a verdade, mas não se conforma com o que acha e continua a procurar e a perguntar. Ele precisa continuar a procurar e a perguntar para poder continuar a pensar.

O lema do cético se encontra em “La recherche de la vérité” – “A procura da verdade” – um romance de René Descartes publicado apenas após a sua morte: “dubito ergo sum, vel quod item est, cogito ergo sum” – ou seja, “duvido logo existo, ou, o que é o mesmo, penso logo existo”.

Faz sentido que o filósofo não tenha divulgado esse lema em vida, na época da Santa Inquisição, mas apenas a parte final que todos conhecemos: “cogito ergo sum”. Recuperando-o, vemos que ele entendia que pensar é igual a duvidar. Quando se para de duvidar, não se pensa mais, tão somente se repetem dogmas.

O eixo do ceticismo é outra palavra grega: “epoché”. A epoché implica a suspensão do juízo. Justamente para não interromper o pensamento, um cético tenta suspender, ou pelo menos adiar o máximo possível, todo juízo e todo julgamento sobre o que investiga. Desse modo, ele continua investigando, ele continua perguntando, para ampliar e refinar seu saber sobre as coisas sem interromper o seu movimento de querer saber, isto é, sem cristalizar e coisificar este saber.

Vejamos um poema concreto de Vaclav Havel. O poema se chama “o filósofo” e nos mostra um solitário ponto de interrogação cercado por dezenas de pontos de exclamação. O poema ilustra bem a necessidade do ceticismo: é preciso plantar um ponto de interrogação no meio dos arrogantes e dogmáticos pontos de exclamação.

O ceticismo pode ser encarado como uma espécie de “terapia da razão ensandecida”. Sim, a razão pode enlouquecer, o que costuma acontecer quando ela é afetada pelo vírus do dogmatismo e das certezas absolutas. A razão que deseja chegar à verdade e acha possível fazê-lo em breve constrói monumentos à loucura humana, como Auschwitz e Hiroshima, mais recentemente, ou a Inquisição e a escravidão, um pouco mais antigamente.

Segundo o físico Carl Sagan, os dois pilares da ciência moderna são o ceticismo e o entusiasmo. É preciso associar o entusiasmo de tentar saber o que ainda não se sabe com o questionamento permanente do que de fato se sabe. Toda a ciência funciona a partir de hipóteses básicas, que outra coisa não são do que suposições a serem testadas através de ensaio e erro para gerarem sempre novas suposições mais refinadas, isto é, novas hipóteses – em última análise, novas ficções reguladoras e necessárias.

Mas qual é a relação da ficção, no seu sentido estrito, com o ceticismo?

Penso que a ficção é estruturalmente cética, mesmo quando o seu autor não se imagine como um cético. A ficção olha para a realidade e pergunta: “hum, por que tem de ser assim e não pode ser assado?”. Daí, a ficção “assa” (ou frita, como preferirem) a realidade, transformando-a em outra coisa, a saber: transformando-a em metáfora.

A ficção implica sempre uma grande pergunta sobre a realidade, levando autor e leitor a entrarem confortavelmente em estado de “epoché”, ou seja, em estado de dúvida e suspensão do juízo e das certezas. A literatura “perspectiviza” a realidade, porque ela nos força a olharmos a realidade pela perspectiva do narrador ou do protagonista, portanto por uma perspectiva diferente da nossa.

A leitura de ficção implica, então, uma escola de tolerância. Temos aqui, de repente, uma ótima resposta para aquela pergunta recorrente: por que preciso aprender literatura?

Resposta: para aprender a tolerância.

Para aprender a ver o outro e os outros por dentro, através dos olhos e das palavras de um personagem.

 

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