Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 29/03/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

Há Deus na ficção?

Gustavo Bernardo

Os ateus diriam que Deus sempre foi uma ficção.

Aliás, ateu que se preza não gosta muito de ser chamado de ateu, preferindo a expressão “não crente”. O termo “ateu” sugere a descrença apenas em um deus, enquanto o termo “não crente” engloba a descrença em deuses, super-heróis, fadas do dente, duendes de jardim, amigos imaginários e, naturalmente, no Papai Noel. Para o não crente, Deus é apenas um super-hiper-amigo-imaginário. Dentre os não crentes, alguns concedem que esse super-hiper-amigo-imaginário seja uma ficção necessária para a maioria, enquanto outros o entendem como uma ficção não só desnecessária como também perniciosa.

Entre os não crentes que consideram a ficção de Deus uma ficção negativa, encontramos o cientista Richard Dawkins, autor de Deus, um delírio, o filósofo A. C. Grayling, autor de Against all Gods (ainda sem tradução no Brasil), e os romancistas José Saramago, autor de O Evangelho segundo Jesus Cristo, e Philip Pullman, autor de O bom Jesus e o infame Cristo.

Entre os não crentes que consideram a ficção de Deus uma ficção necessária, ou ao menos a religião como uma necessidade humana intransponível, encontramos o crítico marxista Terry Eagleton, autor de O debate sobre Deus, o filósofo Alain de Bottom, autor de Religião para ateus, e o filósofo André Comte-Sponville, autor de O espírito do ateísmo.

A discussão entre esses dois grandes grupos, dos quais apresentei apenas poucos exemplos relevantes, contempla talvez a principal aporia da modernidade, e ainda deve ser balizada pelos importantes pensadores e escritores que defendem a própria existência de Deus, sustentando que Ele não é e não pode ser de modo algum uma ficção. Entre esses pensadores, destacam-se a teóloga Karen Armstrong, autora de Em defesa de Deus, o filósofo G. K. Chesterton, autor de Ortodoxia, e os romancistas C. S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia, e Graham Greene, autor de Fim de caso.

Nas obras dos romancistas acima, crentes ou não crentes, Deus comparece de variadas maneiras. Ainda que eu me defina como não crente, gosto mais do Deus do católico Graham Greene, no romance Fim de caso.

A história toda é narrada pelo personagem Maurice Bendrix, que não acredita em Deus, mas acaba convencido de sua existência por conta de algumas intervenções e alguns milagres. Essas intervenções divinas são bem irônicas, tornando o conflito entre Maurice e Deus especialmente rico. Em 1999, o romance de Greene foi levado ao cinema por Neil Jordan, com Ralph Fiennes no papel de Maurice.

Em outros romancistas, que não se definem tão claramente como crentes ou não crentes, a presença do personagem Deus é mais complexa. É o caso de João Guimarães Rosa: apesar de se apresentar como uma pessoa profundamente religiosa, no seu romance Grande Sertão: Veredas a grande questão para o protagonista não se encontra na existência ou na bondade de Deus, mas sim se o narrador, Riobaldo Tatarana, fez ou não fez o pacto com o Diabo. O Diabo é na verdade o grande personagem de Guimarães Rosa.

Deus também está fortemente presente na ficção do judeu Franz Kafka, ora como um pai agigantado e aterrorizante, ora como o próprio sistema, profundamente impessoal e cruel. O Deus de Kafka suscita tantas interpretações que muitos consideram o escritor um profeta, enquanto outros tantos o veem como o príncipe dos hereges.

Deus não é propriamente um personagem para Machado de Assis, a não ser no conto “A igreja do diabo”, ultra-irônico desde o título. Mas é citado muitas vezes em todos os seus romances, junto com referências à Bíblia. Essas citações também são fortemente irônicas, até porque Machado altera sutilmente os versículos bíblicos que traz para a sua narrativa.

O escritor brasileiro nunca se declarou ateu, não crente ou agnóstico, mas a sua ironia demolidora, voltada com frequência contra a igreja do seu tempo, associada às suas últimas palavras, nos autorizam a vê-lo como não crente. Aos 69 anos, à beira da morte, uma amiga lhe pergunta se pode chamar o padre para ministrar a extrema-unção. Machado de Assis lhe responde, com dificuldade mas com coerência: “melhor não; seria hipocrisia”.

Para encerrar esse brevíssimo levantamento de Deus como personagem, lembro primeiro que o diretor Kevin Smith recorreu à cantora Alanis Morrisset para representar o próprio Deus em Dogma, seu filme de 1999. Deus se apresentava como uma jovem travessa e sorridente que, quando abria a boca para falar, destruía tudo em volta, mostrando que a voz de Deus, ou da Deus, é poderosíssima!

Depois, lembro que o cartunista Laerte, um cordialíssimo não crente, produziu uma longa série de tiras com Deus como personagem. Seu Deus é desenhado do modo como o catecismo católico nos acostumou a ver desde criança: como homem, velho e branco – ou seja, tudo o que domina. Entretanto, seu Deus é tudo menos onipotente, onipresente, onisciente, arrogante e prepotente. Ao contrário, o Deus de Laerte é divertido, gentil e cheio de dúvidas. Vejamos apenas dois exemplos.


Nessa tira, um homem chama por Deus com um ponto de exclamação, olhando para cima. Como não é atendido, chama por Deus em cima de uma escada, já com 2 pontos de exclamação. Como continua sem ser atendido, chama por Deus em cima de uma escada em cima de outra escada, já com 3 pontos de exclamação. No quarto quadrinho da tira, o homem está em cima de 3 escadas, uma sobre a outra, para tentar falar com Deus ou alcançá-lo, já desapareceu até da vista do leitor, quando o próprio Deus aparece lá embaixo, perguntando apenas “quê?”, mas sem gritar, isto é, sem ponto de exclamação nenhum.

Graças ao uso metalinguístico da borda dos quadrinhos e ao efeito cômico, produzido quando o personagem chama aos berros alguém que deveria estar “lá em cima” mas que na verdade se encontra muito próximo e às suas costas, lá embaixo mesmo, o desenho permite uma interpretação religiosa bem interessante: Deus não está “lá em cima”, mas sim conosco, onde estamos; não é necessário gritar por Deus, assim como Deus não precisa gritar para se fazer ouvir.

Essa interpretação se reforça na segunda tira de Laerte. Essa tira não é propriamente engraçada, mas comovente – na minha leitura, muito comovente.


Uma mulher pergunta para Deus, mas de costas para Ele: “por que isso aconteceu?”.

“Isso” pode ser qualquer tragédia ou perda pessoal, daquelas que, quando acontecem, perguntamos “por que logo conosco”, ou pior: onde estava Deus que “deixou” que o mal acontecesse? A mulher da tira explicita essa sensação ao perguntar diretamente a Deus: “não dava pro Senhor ter impedido?”.

A resposta de Deus é sucinta: “não”.

O Deus de Laerte resolve o velho dilema teológico: ou bem Deus é onipotente, ou bem Deus é benevolente. Ele não pode ser ambas as coisas, caso contrário o mal não existiria. O Deus de Laerte definitivamente não é onipotente, justamente para poder ser benevolente. O Deus de Laerte não sabe por que o mal aconteceu e nem pode impedi-lo, mas oferece seu ombro divino como consolo.

No meu entender, não é pouca coisa.

 

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