Inicial » Colunas » A última aula
O último professor se prepara para a última aula. Este foi o
seu último desejo, não tiveram como recusar. Depois da sua última palavra nessa
aula, ele será imediatamente vaporizado.
Como reza a propaganda oficial, a vaporização é o processo
de execução “mais humano de todos os tempos”. Segundo contam, o processo não é
doloroso e ainda seria muito prazeroso, provocando tal sensação de êxtase que o
condenado entende, no último segundo, que sobe aos céus para finalmente cair no
colo de Deus.
É verdade que nenhum dos condenados executados até hoje por
esse processo (ou qualquer outro) voltou para contar essa história (ou qualquer
outra), mas a propaganda oficial só pode estar certa, se não não seria oficial
nem propaganda.
Como relatou o cronista americano, primeiro se queimaram os
livros para logo depois se queimarem os leitores remanescentes, embora com a
legítima preocupação ecológica de se reciclarem as cinzas. Houve respeito à história
da civilização humana: as instituições sempre zelaram por queimar primeiro os livros
para só depois incinerar as pessoas, crianças e mulheres à frente.
O passo seguinte foi o de destituir os professores de sua
função, observada a nobre preocupação de reempregá-los nas fábricas de aparelhos
telefônicos celulares. Na maioria dos casos, os antigos professores lucraram
com a troca profissional, auferindo salários maiores e não precisando mais
levar trabalho para casa.
Alguns poucos professores, no entanto, resistiram à mudança.
Eles foram considerados recalcitrantes. Os professores recalcitrantes
continuaram a dar aulas ou em suas próprias casas ou em parques públicos. O
número de alunos reduziu-se bastante, mas ainda havia aqueles que desejavam
assistir às suas aulas.
Reconstruíram-se as antigas escolas, tornando-as modernas e informatizadas
delegacias de polícia. As salas de aula transformaram-se em celas de prisão que
acomodam com conforto dezenas de infratores menores.
Infratores maiores como os professores recalcitrantes, no
entanto, não voltaram à sala de aula sequer como detentos: por um lado,
configurar-se-ia uma humilhação desnecessária e desumana, por outro, tornou-se
mais prático alojá-los, assim que detidos, no corredor da morte.
A ação das forças de segurança foi bastante eficiente,
apreendendo em poucos meses todos os recalcitrantes. Para inibir os demais e
implantar as mudanças sociais necessárias sem qualquer protelação, todos os
apreendidos foram julgados, condenados e executados sumariamente, garantindo-se
porém o processo mais humano de execução, a saber, o da vaporização. Ainda se
incineram pessoas, mas apenas nos justiçamentos não oficiais, conduzidos por
cidadãos zelosos.
O último professor a ser preso era também o mais insidioso e
o mais perigoso. Suas aulas, ministradas no interior de parques nacionais
distantes das grandes cidades, foram infelizmente as mais procuradas. Pessoas perturbadas
buscavam-nas de carro, de motocicleta, de bicicleta ou mesmo em demoradas caminhadas
a pé que logo se compararam a peregrinações religiosas antigas.
A fina articulação, porém, entre as forças internacionais de
segurança permitiu a prisão do último professor no meio de uma aula no recesso
do parque da Serra dos Órgãos, no país outrora conhecido como Brasil. Os
agentes da lei garantiram tão somente a integridade física do professor,
deixando os alunos a cargo daqueles cidadãos zelosos que os acompanhavam espontaneamente
na diligência.
O julgamento do último professor também foi sumário, mas ao
final o réu confesso surpreendeu o jovem juiz que o condenou. Ele invocou o
direito milenar dos condenados à morte a um último pedido. Impressionado com os
argumentos históricos, o juiz lhe concedeu o direito ao último pedido. Que foi
o de ministrar uma última aula, para surpresa e desagrado do juiz e da
audiência.
Mas quem irá assisti-lo?, perguntou o magistrado. Nunca
escolhi alunos, respondeu o último professor. Vossa Excelência tem a honra de determinar
quem serão os últimos alunos do mundo. O juiz, honrado mas confuso, designou
então a si mesmo, aos agentes que prenderam o professor e aos funcionários que
executariam a sua sentença para constituirem a última de todas as turmas do
mundo.
O juiz decretou ainda que sob nenhuma hipótese esta aula
seria gravada ou transmitida, de modo a anular qualquer perturbação da ordem
vigente. O professor concordou com a decisão, dizendo que uma verdadeira aula
se dá sem o uso de aparatos e apenas entre os corações e as mentes dos alunos.
A sala de aula é preparada no ambiente mesmo das execuções. O
juiz, os policiais e os funcionários sentam-se nas carteiras escolares. O último
professor se prepara para a última aula, folheando mentalmente as suas
anotações. Ele fica em pé sobre o tablado que o vaporizará ao final da aula.
O local é conveniente, quer porque o tablado o deixa mais alto do que os alunos, facilitando que o vejam e o escutem, quer porque não precisará se deslocar depois para nenhum outro lugar. Quando bate o sinal para começar, como antigamente, o professor fecha o seu caderno mental e se dirige aos alunos:
“Meus queridos. Peço perdão pela intimidade, mas
começo assim todas as minhas aulas, não deve ser diferente na última aula.
“Meus queridos: no final de um antigo romance que
decerto não leram, a personagem diz que não suspeitou da verdade sobre o homem que
matara a sua irmã. Que o vilão havia sido antes a vítima de uma educação que o
enlouquecera.
“Não se preocupe, jovem meritíssimo, entendi o seu
sorriso: não pretendo estabelecer comparações fáceis. Não os considero nem
vilões nem vítimas, porque os vejo agora tão somente como meus alunos.
“Como meus alunos, vocês não são mais nem juízes nem
policiais nem meus próprios carrascos. Como meus alunos, vocês podem ser tudo o
que quiserem, até mesmo meus amigos.
“Sim, meus queridos: na minha hora final, sinto-me
rodeado de amigos, porque me sinto rodeado de alunos. Considero-me um homem de
sorte, se me permitem morrer como vivi.
“Nessa vida de
professor, nunca tive controle sobre as pessoas que meus alunos se tornariam no
futuro. Logo, não tenho controle sobre o que os presentes entenderão dessas minhas
palavras e o que farão com elas. A partir do instante em que as pronuncio, as
minhas palavras passam a ser as palavras de vocês.
“Falava eu da personagem que não suspeitou da verdade
sobre o vilão do romance. Com essa lembrança quero chamar a atenção dos
senhores sobre o verbo suspeitar. A ficção banida da nossa sociedade exercia
uma função muito importante, hoje restrita aos investigadores policiais: a
função da suspeita.
“A ficção suspeitava da realidade, perguntando sempre
aos leitores: por que tem de ser assim como nos dizem e não de outro modo? A
suspeita da ficção dirigia-se ainda às certezas dos leitores sobre o bem e o
mal e sobre quem eles eram e quem eram os outros.
“Ambas as certezas se relacionam intimamente. Não temos
como saber quem somos ou o que faremos a não ser depois de praticarmos alguma
ação. Da mesma maneira, não temos como saber o que é certo ou errado a não ser
depois dos acontecimentos.
“Sim, sempre ouvimos dizer que é errado matar, mas ao
mesmo tempo nos ensinaram que é certo matar na guerra bem como matar aqueles
que um juiz manda que os carrascos matem. Logo, se mostra muito difícil saber o
que está certo.
“Por isso, há um truque milenar que todos usamos. Primeiro,
olho para o outro homem. Depois, decido que ele é Mau. Daí, levanto as suas
características físicas e morais para determinar as características do Mal. Pronto.
Ele é Mau. Eu não sou ele. Logo, eu sou Bom.
“Claro!, dizem vocês e eu escuto. Escuto muito bem. Só
não posso aplicar a mesma lógica, dizendo que eu sou bom e vocês são Maus,
porque não seria verdade. Eu é que sou Mau, razão pela qual desaparecerei daqui
a alguns minutos.
“Para zelar pelo Bem que passam a representar, os que agora
sabem que são Bons precisam tirar o Mal do caminho. Assim, precisam impedir que
os Maus contaminem outras pessoas, encarcerando-os ou mesmo executando-os,
embora de maneira humanitária.
“Percebo que se reconhecem nesse retrato. Até se
surpreendem que eu, um dos Maus, talvez o último representante vivo do Mal,
lhes compreenda tão de perto. Fico contente. No final da minha carreira de
professor, por acaso também o final da minha vida, percebo que compreendo
alguém.
“Na verdade esse instante de compreensão deriva de uma
longa prática de suspeição. Os melhores professores, entre os quais me incluo
sem modéstia, aprenderam com a ficção a suspeitar diuturnamente da realidade,
dos personagens, das pessoas e principalmente de si mesmos.
“O digníssimo juiz me pergunta, como assim? Se todos
suspeitamos, qual é a diferença? A diferença, meritíssimo, é que os senhores
suspeitam para parar de suspeitar, enquanto nós suspeitamos para nunca parar de
suspeitar. Os senhores usam a dúvida para acabar com todas as dúvidas, enquanto
nós usamos a dúvida para proteger todas as demais dúvidas.
“Se interpretamos um romance como o que abriu a minha
aula, lutamos até o fim para proteger o enigma que constitui o romance, sem
jamais resolvê-lo. Se avaliamos um aluno como bom ou mau aluno em determinado
momento, a partir de determinado trabalho, nós nos empenhamos para mostrar a
esse mesmo aluno que duvidamos da nossa própria avaliação. Nós tentamos
desafiar os alunos a nos mostrar que estamos errados.
“Entendemos que a prática da dúvida permanente,
inclusive sobre as suas próprias dúvidas, deve ser a prática cotidiana do
professor. Queremos com isso dar um exemplo, mais do que ensinar alguma coisa
ou passar alguma certeza.
“Gostaríamos que esse exemplo se multiplicasse e
afetasse a prática dos cientistas, dos médicos, dos políticos, dos policiais e
quiçá dos juízes. Mas, felizmente, reitero, felizmente, não tenho qualquer
controle sobre o que os meus queridos alunos fazem ou farão com as minhas
palavras e com o meu exemplo.
“Na verdade, nem mesmo a minha execução, daqui a
alguns instantes, me parece propriamente má, se me sinto bem. Por causa do
exercício da dúvida, sei que o bem é mal e que o mal é bem, basta olharmos por
outra perspectiva – por exemplo, a perspectiva do personagem de um romance.
“Morrer, sempre se morre. Sinto lhes dizer, talvez
lhes tire um prazer, mas não são os senhores que estão me matando. A vida me
mata, para que vocês me vejam morrer assim e se perguntem, nervosos: e quando
chegar a minha vez?
“Duvidar, meus amigos, é aprender a morrer. Outro professor
escreveu isto, em outra época. Eu morro da maneira que sempre quis viver.
Espero sinceramente que possam dizer o mesmo quando chegar a vossa hora.
“Sim, está na hora. A minha hora. A hora de terminar a
aula. Faltam dois segundos para tocar o sinal... não faltam mais.
“Encerro a última aula da minha vida como sempre quis
fazê-lo: agradecendo.
“Eu lhes agradeço pela atenção dispensada em toda a
minha carreira.
“Eu lhes agradeço por me ouvirem hoje com atenção.
“Eu lhes agradeço por me concederem essa última aula.”
Nesse momento, o último professor baixa os braços, fecha os
olhos e sorri.
O carrasco é tão jovem quanto o juiz. Ele reza breve e
silenciosamente, para que ninguém perceba como suas mãos tremem. O rapaz aperta
o botão.
O resto é silêncio e vapor.