Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 29/03/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

Da liberdade de expressão à liberdade de redação

Gustavo Bernardo

Defende-se há alguns séculos o direito à liberdade de expressão. Com o tempo, a defesa desse direito se tornou quase consensual. O consenso se desfaz, no entanto, quando se discutem os limites da liberdade de expressão. Posso dizer ou escrever o que penso, mesmo que ofenda a determinadas pessoas ou grupos? Até que ponto a liberdade de expressão se confunde ou com a falta de educação, ou com o crime da calúnia? Tais perguntas são pertinentes tanto para artigos de jornal quanto para redações escolares, mas as respostas são as mesmas?

No caso dos artigos e de outros documentos públicos, algumas opiniões podem de fato configurar crime de calúnia, individual ou coletiva. O caso da redação escolar, nas escolas e nos exames vestibulares, entretanto, é diferente, porque se trata de um momento em que os alunos aprendem a pensar e a argumentar, e só podem fazê-lo através da prática, da discussão e da avaliação. Nessa situação específica, portanto, pergunto: alunos na sala e candidatos nos exames podem defender posições racistas, homofóbicas, machistas ou misóginas? Se religiosos, podem atacar os adeptos de outras religiões, ou os adeptos de nenhuma religião? Se ateus, podem condenar todos os religiosos? 

Nos tempos do Iluminismo, o filósofo François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, cunhou a frase que sintetiza o direito à liberdade de expressão: “não concordo com o que dizes, mas defendo até a morte o direito de o dizeres”. Para o filósofo iluminista, é preciso defender o direito de se expressar qualquer opinião, inclusive aquela que discorde de que todos tenham os mesmos direitos. Mas, e se a opinião sincera de Fulano é a de que todos os negros devem morrer? De que todos os homossexuais devem ser surrados desde criança? De que todas as mulheres devem se submeter a seus maridos? De que os adeptos das religiões afro-brasileiras devem ter seus templos destruídos? De que os religiosos de todos os matizes são ignorantes que não sabem pensar? Para Voltaire, o direito de expressar estas e outras opiniões deve ser respeitado sempre. Concordo com ele, em especial no caso da redação escolar. O que não deve ser respeitado, na verdade, o que deve ser reprimido, é que se passe da opinião à ação, assassinando negros, surrando homossexuais, violentando mulheres e destruindo templos. 

Mais tarde, Sigmund Freud formula tese semelhante. Para Freud, se proibimos uma pessoa de expressar um desejo ou uma opinião, não eliminamos o seu desejo ou a convencemos do contrário. Na pior das hipóteses, a repressão da expressão leva à violenta realização do ato. Na melhor das hipóteses, o desejo e a opinião são recalcados até que a pessoa não os reconheça mais como seus. O problema é que o desejo recalcado sempre retorna, ou como ressentimento ou como doença. Em termos filosóficos, pode-se dizer que a posição de Voltaire é essencialista e a de Freud, consequencialista. Voltaire estabelece princípio que deve ser seguido sempre, porque, se não o fizermos, não há mais princípio algum. Ou a liberdade é absoluta ou não é liberdade. Liberdade limitada é um caso clássico de contradição nos próprios termos. Freud, por sua vez, preocupa-se com as consequências da repressão ao desejo, entendendo que a repressão “sai pela culatra”, ou seja, produz monstruosidades piores do que aquelas que pretende coibir. Uma pessoa deve ter o direito de dizer, ao menos na terapia, que quer matar o pai, como o teria feito o coitado do Édipo; o que ela não pode é matar o pai de verdade. Se ela não pode manifestar o desejo, acaba recalcando-o e voltando-o, ou contra si mesmo, ou contra qualquer figura que simbolize o poder paterno. Por isso, quando chamaram Freud para tratar de um parricida, ele se recusou: o assassino do pai, ou de quem quer que seja, deve ser simplesmente preso.

A polêmica secular afeta diretamente o ensino e a avaliação da redação. Há quem defenda o direito à liberdade plena de expressão, assim como há quem defenda a liberdade limitada de expressão. Os adeptos da liberdade limitada de expressão encontram-se representados na conhecida redação do Exame Nacional de Ensino Médio, o ENEM. A redação do ENEM mostra louvável preocupação com o respeito aos direitos humanos básicos, por parte dos candidatos. A preocupação é louvável, nestes tempos de ódio e preconceito. Como ela se replica nas salas de aula, ajudaria a educar melhor os jovens. Reconheço, portanto, que a intenção subjacente à proposta de redação do ENEM é progressista. Entretanto, há consequências retrógradas.

Como na maioria dos vestibulares, exige-se do candidato que redija uma dissertação, ou seja, que ele defenda a sua opinião – com a condição, porém, de que não discorde da opinião da banca. Desse modo, configura-se um duplo vínculo típico, quando se emitem duas ordens contraditórias entre si: “defenda a sua opinião, desde que não seja exatamente a sua opinião”. Atualiza-se antiga recomendação dos professores: a de não escrever na primeira pessoa do singular, jamais dizendo “eu” ou “eu acho que”. A recomendação sugeria aos alunos que eles não deviam emitir opiniões pessoais. Mas como não fazê-lo, se o gênero de escrita predominante na escola é o dissertativo e a dissertação se define como a defesa de uma opinião? O que os alunos e toda a gente têm de aprender é a defender bem as próprias opiniões. Ora, inibir o uso da primeira pessoa antes atrapalha do que ajuda a escrever. A recomendação “não diga eu” não apenas não ensina a escrever e argumentar melhor, como ainda bloqueia a formação de opiniões próprias que sejam bem pensadas e bem articuladas.

O problema retorna, amplificado, na preparação para a redação do ENEM. Os professores de escolas e cursinhos recomendam com frequência que os candidatos “esqueçam” as próprias opiniões e “sigam” os direitos humanos. Os verbos usados são emblemáticos: ao recomendar esquecer as próprias opiniões, o que se ordena é não pensar pela própria cabeça; ao recomendar seguir os direitos humanos, o que se ordena é adesão incondicional ao rebanho “correto”. Quando os alunos aprendem que precisam esquecer as próprias opiniões para escrever, eles desaprendem a escrever, isto é: desaprendem a defender as próprias opiniões.

Quando o ENEM diz hoje que o aluno não deve defender uma opinião racista, misógina ou homofóbica, por exemplo, ele toma uma postura progressista, sim, mas através de metodologia retrógrada: não aceita que o aluno pense “errado” antes mesmo de tentar convencê-lo, por exemplos e argumentos, a pensar “certo”. Se diversos políticos, cientistas e até professores defendem posições racistas, misóginas e homofóbicas, como vemos nas redes e nos jornais o tempo todo, por que o adolescente não pode fazê-lo? Se o adolescente não pode escrever uma redação com a sua opinião verdadeira, quando ele poderá elaborar melhor o seu pensamento através do confronto com pensamentos e argumentos diferentes do seu?

A experiência mostra que o aluno escreve muito melhor quando escreve o que de fato pensa e o que ele quer mesmo escrever. Se, ao contrário, o aluno escreve o que acha que o professor e o avaliador querem ler, multiplicam-se os problemas de escrita, principalmente os de concordância, simplesmente porque o aluno não concorda com o que está dizendo. Se o aluno tem uma posição racista, a melhor forma de combatê-la é defendendo que a expresse e que a sustente, para que enfrente as críticas e os contra-argumentos. O próprio aluno pode perceber a fraqueza da sua posição ao escrever, assim como pode passar a defendê-la melhor. De toda maneira, estimula-se o diálogo e a discussão entre os diferentes e as diferenças, o que contribui tanto para a sociedade quanto para o desenvolvimento do pensamento de cada indivíduo. 

Não me cabe analisar redações do ENEM, mas posso fazer um contraponto interessante ao comentar a proposta de redação do vestibular da UERJ, realizado em dezembro de 2017. A novidade da proposta, neste ano, foi a necessidade da leitura prévia do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, por parte dos candidatos. A proposta dessa redação chama a atenção para o personagem narrador do romance, o advogado Bento Santiago. A circunstância aparentemente secundária da profissão de Bentinho mostra-se relevante, porque permite perceber que todo o romance constitui uma longa acusação de adultério contra a senhora Capitolina Santiago, mais conhecida como Capitu. No romance, não há como o leitor saber se Capitu traiu ou não o seu marido, porque o romance de Machado de Assis sustenta a dúvida até o fim. Logo, essa não é a questão principal do romance, mas sim: por que Bento, seu marido, assume ao mesmo tempo os papéis de promotor e juiz, não dando voz nem direito de defesa a Capitu? A pergunta levou ao tema da Redação: “a verdade pode ser estabelecida a partir de uma única perspectiva?”.

O tema podia ser abordado por quaisquer ângulos: literário, comportamental, jurídico, político, econômico, social ou religioso, por exemplo. A resposta do candidato à pergunta podia ser tanto “sim” quanto “não” quanto, ainda, “depende do caso”, desde que a sustentasse com argumentação consistente e coerente. O candidato podia responder negativamente à pergunta-tema: ele não era obrigado “a concordar com a gente”, isto é, a entender como inquestionável a proposição da banca examinadora do concurso. Pela perspectiva religiosa, por exemplo, é admissível que se defenda a possibilidade de uma verdade única. Essa defesa pode ser talvez dogmática ou tautológica, o que enfraquece os argumentos, mas também pode ser consistente e elaborada, como de resto o fazem os melhores teólogos. O meu próprio ponto de vista, no caso, de ateu, não me autoriza a excluir pontos de vista diversos.

Voltamos a Voltaire, adaptando o princípio iluminista à disciplina e às provas de Redação: “não concordo com o que escreves, mas defendo até a morte o direito de o escreveres”.

 

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