Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 18/04/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

Como mentir com números?

Gustavo Bernardo

Na eterna querela entre os saberes, os torcedores das ciências ditas “exatas” recorrem com frequência aos números para melhor desqualificar os torcedores das ciências ditas “humanas”. Para encerrar qualquer discussão, nada melhor do que uma fórmula ou uma estatística, porque os números são sempre neutros e precisos, correto?

Talvez não. As chamadas ciências exatas não deixam de ser humanas: ao que nos conste, não se conhecem adeptos equinos, bovinos ou alienígenas. De forma equivalente, as ciências ditas humanas têm a mesma pretensão à exatidão que os seus antípodas epistemológicos: elas também se querem o mais próximo possível da exatidão.

Entretanto, nem estas nem aquelas são exatamente exatas. Exatidão e certeza são, na melhor hipótese, horizontes desejáveis, sim, mas, de acordo com a definição de “horizonte”, inalcançáveis. Na pior hipótese, não passam de miragens e ilusões.

O problema não afeta somente as ciências e as disciplinas associadas, como vemos em épocas de crise ou de eleição. Jornalistas, políticos e candidatos empunham números como se fossem armas letais, em geral na forma de estatística.

Estatísticas, de fato, são fundamentais para elaborar análises, projetos, soluções, propostas e, enfim, quaisquer redações, mas se manipuladas sem muito cuidado produzem apenas sofismas e mentiras. Não bastam números para configurar neutralidade e verdade. 

O que há em volta de cada conjunto de números? Quem mostra os números? Como ele ou ela chegou a esses números? O que está faltando naquela conta? Alguém mudou de assunto? Enfim, isso faz sentido? Essas perguntas fundamentais quem as faz é Darrell Huff, no clássico Como mentir com estatística, publicado pela primeira vez em 1954 e lançado no Brasil pela editora Intrínseca. 

Estatísticas do tipo 100%, por exemplo, já nascem ou mentirosas ou irrelevantes. Se um psiquiatra diz que “todo mundo é neurótico”, cabe-nos perguntar se ele chegou a essa conclusão categórica apenas observando os seus próprios pacientes. Ora, esse grupo está muito longe de representar uma amostra de toda a população.

Além disso, ao afirmar que todo mundo é neurótico, o psiquiatra esvazia o sentido da própria palavra “neurótico”, como se dissesse que a neurose faz parte da condição humana, logo, todo mundo é neurótico, ou, o que dá na mesma, todo ser humano é humano – o que, por sua vez, não diz rigorosamente nada. 

Estatísticas formadas por enquetes ou censos também são afetadas por distorções. A condição de branco ou negro, homem ou mulher, hetero ou gay do entrevistador modifica substancialmente as respostas dos entrevistados. Na verdade, a própria entrevista altera as opiniões e, portanto, a realidade dos entrevistados.

Quando um pesquisador consegue observar uma tribo que nunca teve contato com o que chamamos de “civilização”, só consegue observar uma tribo que está naquele momento, através dele, tendo contato com a “civilização”. Em outras palavras, não apenas não existe observação neutra como não há observação que não modifique o que está sendo observado. 

Além do problema representado pelo entrevistador ou pesquisador, temos o problema da amostragem. Nenhuma pesquisa apresenta uma pesquisa que cubra 100% dos casos, a menos que se pesquise um universo muito reduzido. A maioria das pesquisas se faz por amostragem, como naquelas que tentam prever o resultado de uma eleição. Para que elas tenham alguma utilidade, é preciso que a amostragem seja ao mesmo tempo suficientemente abrangente e suficientemente representativa. 

Como abordar abrangência e representatividade de uma amostragem, além de outros aspectos do problema que se enfrenta? Ora, deve-se raciocinar caso a caso, em cada argumento estatístico, assim como para discutir qualquer argumento, porque cada caso envolve uma série de variáveis que determinam a qualidade da amostragem ou do raciocínio. 

Não se pode simplesmente aceitar acriticamente um pensamento só porque ele vem carregado de números e porcentagens. Darrell Huff localiza a origem dessa aceitação acrítica naquele tipo de ensino “em que o conteúdo do livro do professor é transferido para o caderno do estudante sem passar pela cabeça de nenhum dos dois”. 

Para aprender a pensar e portanto a argumentar, é preciso antes de tudo aprender a duvidar e a questionar, como disse há séculos René Descartes: “duvido, logo, existo – ou, o que dá na mesma, penso, logo, existo”. 

Pode-se questionar com ironia, como faz o autor ao “ensinar” a mentir com números: “se você não consegue provar o que deseja, demonstre alguma outra coisa e finja que são equivalentes”. Obviamente, ele não quer ensinar seu leitor a mentir, mas sim a detectar as mentiras alheias. 

Um artigo numa revista semanal afirma que, caso você sofra um acidente grave, terá uma chance quatro vezes maior de sobreviver se o acidente ocorrer às sete da manhã, baseado numa pesquisa estatística que concluiu: fatalidades em estradas ocorrem quatro vezes mais às sete da noite do que as sete da manhã. A pesquisa pode ser verdadeira, mas não permite esta conclusão: “morrem mais pessoas à noite do que de manhã simplesmente porque mais pessoas estão nas estradas à noite para falecerem”. 

Usando o mesmo argumento absurdo do artigo daquela revista, posso concluir que dirigir num dia claro é mais perigoso do que dirigir num dia de forte neblina, porque ocorrem mais acidentes em dias de tempo aberto. Ora, ocorrem mais acidentes em dias de tempo aberto porque esse tempo é mais frequente. 

Pode-se usar estatísticas sobre acidentes para morrer de medo de qualquer meio de transporte, se não notarmos o quanto os números estão mal associados. Se descubro que morreram mais pessoas em acidentes de avião no ano passado do que em 1910, posso concluir que os aviões modernos são muito mais perigosos? Claro que não: o número de pessoas que viajam de avião hoje em dia é milhares de vezes maior. 

Por isso, é preciso sempre fazer as perguntas fundamentais. A primeira delas: o que há em volta de cada conjunto de números? Em outras palavras: qual é o tema e o contexto do argumento?

A segunda pergunta: quem mostra os números? Essa pergunta nos faz perceber os interesses envolvidos. Se um laboratório mostra uma pesquisa estatística a favor do seu produto, há uma razoável probabilidade, senão grande probabilidade, de parcialidade consciente ou inconsciente. 

A terceira pergunta: como se chegou a esses números? Essa pergunta se desdobra em outras duas: a amostra estatística é grande o bastante para permitir uma conclusão confiável?; a correlação estabelecida é grande o bastante para fazer sentido? 

A quarta pergunta, talvez a mais importante: o que está faltando nesta conta? Para melhor interpretar um texto literário, é preciso investigar o que se encontra nas entrelinhas, isto é, o que não está sendo dito mas apenas sugerido. Da mesma maneira, para melhor entender um argumento estatístico, é preciso perceber o que está faltando, isto é, o que não está dito ou o que está sendo escamoteado. 

Quando a Universidade John Hopkins passou a aceitar mulheres em suas turmas, logo um machista moralista gritou que 33,33% das mulheres de Hopkins haviam se casado com membros do corpo docente, vejam que vergonha. O que não está sendo dito? Que naquele momento havia apenas três alunas matriculadas, e que de fato uma delas se casara com um professor. 

A quinta pergunta: alguém mudou de assunto? Ao analisar uma estatística, é preciso verificar com atenção se não misturaram o número bruto e a conclusão: muitas vezes uma coisa é divulgada como sendo a outra. Pesquisas sobre quem toma mais banho, se o homem ou a mulher, se os ingleses ou os franceses, em geral só conseguem descobrir a frequência com que as pessoas dizem tomar banho, e não a frequência com que de fato o fazem. 

Enfim, a sexta pergunta: tudo isso faz sentido? Observando que o número de aparelhos de televisão aumentou cerca de dez mil por cento de 1947 a 1952, posso deduzir que hoje cada família americana tem cerca de quarenta mil aparelhos de televisão na sua sala? Parece-nos que não. O argumento estatístico tornou-se absurdo, porque deixou de considerar um número enorme de variáveis. 

Em resumo, é preciso fazer o máximo de perguntas incômodas a cada interlocutor, a cada pesquisa, a cada argumento, justamente para não reproduzir na sociedade o modelo de escola em que “o conteúdo do livro do professor é transferido para o caderno do estudante sem passar pela cabeça de nenhum dos dois”.

 

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