Revista do Vestibular da Uerj
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Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Ciências Humanas, por Ronaldo Goulart Duarte

Ano 8, n. 22, 2015

Autor: Ronaldo Goulart Duarte

Sobre o autor: Ronaldo Goulart Duarte é professor assistente do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAp-UERJ). Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo, integra o Grupo de Pesquisa em Educação Geográfica (GPEG-UERJ) e é autor de livros didáticos e paradidáticos.

Publicado em: 06/08/2015

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– O que acha desta frase, Felipe? “Conhece-te a ti mesmo.”
– Me parece excelente! E mais: de hoje em diante começarei a colocá-la em prática! Sim, senhor!
– Não vou parar até chegar a conhecer-me a mim mesmo e saber como eu realmente sou!!
– Meu Deus!... E se eu não gostar de mim?

Ciências Humanas. Não lhe parece um título um pouco estranho? As disciplinas que normalmente chamamos de “humanas” são científicas? Ou, por outro lado, existe ciência, no sentido contemporâneo do termo, que não seja humana?

Se você, como eu, tem mais perguntas do que respostas quando olha para esse título, seja bem-vindo ao clube. Mas fique tranquilo, pois eu posso lhe garantir que há um número imenso de sócios desse clube. Em uma conceituada escola de ensino médio do Rio de Janeiro, foi implantado um projeto muito interessante de iniciação científica para os alunos do primeiro ano. Uma das primeiras atividades, proposta por um professor da área de arte foi o pedido para que eles desenhassem o que era ciência, na opinião deles. O resultado foi uma profusão de imagens girando em torno dos mesmos ícones: tubos de ensaio, provetas, microscópios, o clássico símbolo do átomo, representado por alguns elétrons orbitando em torno do núcleo, símbolos matemáticos, dentre diversos elementos que têm em comum a associação às Ciências da Natureza e à Matemática. Isso para não falar do onipresente estereótipo do cientista, sempre de óculos e, principalmente, com o seu vestuário identificador: o jaleco.

Sem dúvida, esses alunos estão replicando uma representação social fortíssima entre todos nós. Algo muito compreensível, ainda mais para adolescentes que acabaram de sair do ensino fundamental, no qual tinham uma disciplina chamada “ciências”, que lhes ensinava conteúdos de biologia, física e química. É “claro”, então, que o “resto” não poderia ser ciência. Eu mesmo me recordo de que, quando criança, fiquei fascinado ao ganhar de meus pais um brinquedo que era um sucesso na época, o “Meu Pequeno Químico”. Era composto por vários tubos de ensaio, reagentes químicos inofensivos e alguns outros apetrechos, além de um livreto com experiências a serem realizadas pelas crianças. Na caixa, como não poderia deixar de ser, uma criança de óculos e vestida com um jaleco, ou seja, um minicientista. Era como eu me sentia ao manusear aquele brinquedo.

Tenho certeza de que, até sair do ensino médio, meus desenhos não iriam diferir em nada daqueles elaborados pelos alunos na atividade que descrevi acima. Para falar a verdade, ainda me lembro do meu espanto ao me deparar com um laboratório na área de geografia humana na Universidade Federal do Rio de Janeiro, meu local de graduação e de mestrado. Não tive esse mesmo estranhamento ao visualizar a placa na porta de um prestigiado laboratório na área de geografia física. Só quando resolvi investigar a etimologia da palavra laboratório é que me dei conta de como estava equivocado e impregnado de estereótipos a respeito do que é ser um cientista. Labor, “trabalho” em latim, está presente em diversos vocábulos da língua portuguesa, tais como colaborar e elaborar. Acrescido da palavra torium, lugar ou objeto apropriado a uma determinada finalidade, temos o sentido completo de que estamos falando de um lugar ou de um espaço de trabalho. É uma palavra composta de forma semelhante à palavra lavatório: lugar onde se lavar.

Bom, por tudo isso, estamos nos encaminhando para responder à nossa primeira pergunta. Sim, sem dúvida, a história, a sociologia e a geografia, dentre várias outras disciplinas que podemos incluir na área das Humanas, são ciências. Notem que não mencionei a filosofia, pelo fato de que os filósofos não a definirem como ciência, mas, sem dúvida, ela constitui um conhecimento pertinente às Humanas. Aliás, é bom lembrar também que as Ciências Humanas não estão, de forma alguma, restritas às disciplinas formalizadas no currículo escolar do ensino médio. Ainda que não seja nada simples elaborar um rol completo desses saberes, eles certamente incluem a psicologia, a antropologia, o direito, a ciência política, a economia, e várias outras ciências cujos conteúdos estão firmemente presentes no ensino básico, ainda que não sob a forma de disciplinas autônomas e com espaço garantido por lei no currículo escolar.

Mas porque temos essa “tendência” a não enxergar esses campos do conhecimento humano como ciências? Provavelmente, uma das explicações está ligada ao deslumbramento da humanidade com algumas tecnologias, após o advento da Revolução Industrial. Antes disso, a grande área das chamadas Humanidades constituía a base da formação da elite culta do chamado Mundo Ocidental. Note que “Humanidades” não é sinônimo de “Ciências Humanas”, ainda que haja muitos pontos em comum entre ambas. De forma breve, com base no filósofo Renato Janine Ribeiro1, podemos dizer que as Ciências Humanas integram todas as disciplinas de conhecimento, inclusive a filosofia, que têm o homem por objeto, já as Humanidades se caracterizaram por não operar com a ideia de progresso e por darem menor importância ao (...) que nas ciências recebe o nome de “realidade”. Por isso, são Humanidades as literaturas, as artes, a filosofia.

Aqui no Brasil, até a reforma educacional ocorrida em 1971, o nosso atual ensino médio era parte do então chamado ensino secundário e era dividido em dois cursos diferentes: o clássico e o científico. Enquanto este último era voltado prioritariamente para a formação técnica destinada em especial às classes trabalhadoras, o outro era destinado às elites dirigentes e dava maior margem de acesso ao nível superior. O curso clássico era um típico curso de Humanidades, com grande ênfase nas linguagens e carregado de disciplinas como português, francês, inglês, espanhol, latim, grego, história (geral e do Brasil), geografia (geral e do Brasil) e filosofia. As demais disciplinas eram a biologia (em apenas um ano do curso), a física e a química (dois anos) e a matemática (os três anos). Pelo jeito, a valorização social das disciplinas escolares mudou bastante no Brasil.

Outra explicação para esse estranhamento que sentimos ao associar ciência com a área de Humanas está vinculada a duas características familiares aos profissionais desse campo e que também foram apontadas por Renato Janine Ribeiro. A primeira e mais conhecida é o fato de que, ao contrário de outras ciências, o sujeito que conhece (o pesquisador) e o objeto do conhecimento (aquilo que está sendo estudado) são coincidentes. Ou seja, nas Ciências Humanas, estudamos a nós mesmos. Isso coloca problemas que são mais agudos do que em outras disciplinas científicas. Segundo o filósofo, a objetividade se torna muito difícil e a imparcialidade, impossível. Para alguns, dos quais discordo radicalmente, essa impossibilidade de separarmos o que estudamos daquilo que somos diminui a confiabilidade científica das Ciências Humanas.

A outra característica é que as Ciências Humanas usam a linguagem comum. Nada de símbolos matemáticos ou químicos incompreensíveis para a maioria dos mortais. Usa-se a linguagem cotidiana, teoricamente, mais polissêmica, menos precisa, ainda que seja imenso o cuidado dessas ciências com o rigor no uso de conceitos e de outras terminologias. Mas o que pode ser visto como inconsistência também é fonte de potência. O uso da linguagem comum torna a interdisciplinaridade mais fácil nas Humanas do que em outras áreas, o que é extremamente importante no ambiente escolar.

Retomando, agora, a segunda pergunta do início deste texto, existe ciência que não seja humana? Quando você estuda biologia e aprende sobre os avanços da microbiologia no campo da imunização contra doenças causadas por determinados vetores, e que podem ser evitadas através de campanhas de vacinação, não deveriam ser incluídos também, no conjunto de investigações dessa ciência, temas como:

Considerando o nível educacional e os fatores culturais predominantes, qual será a reação da população que será imunizada?

Qual a abrangência social do acesso ao medicamento?

É justo manter restrito o acesso a medicamentos que podem salvar milhares de vidas, enquanto as empresas farmacêuticas realizam seu lucro e usufruem seu domínio de mercado, ou há margem para intervenção do Estado nessa questão?

Focalizando a primeira questão, talvez se minimizasse, por exemplo, a possibilidade de reações como as registradas na Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro do início do século XX. É importante lembrar que esse episódio histórico não pode ser explicado apenas pela reação da população carioca à imunização, mas sim por um conjunto mais amplo de fatores, que envolve as políticas públicas do então prefeito do Distrito Federal, Pereira Passos, marcadas pela absoluta falta de sensibilidade social com a população pobre. Assim, podemos perguntar: você acha que a biologia não seria o melhor exemplo de que toda ciência é humana? Que tal falarmos sobre a química? Pensemos então no químico Alfred Nobel, um homem culto, que falava várias línguas e gostava de literatura e filosofia. Será que ele teria concentrado tanto sua genialidade na invenção da dinamite se tivesse uma visão diferente das Humanidades? Ou, ainda, vale a pena perguntar por que certas doenças, como a malária, não são objeto do mesmo esforço científico para o desenvolvimento de compostos químicos eficazes, como ocorre, por exemplo, com a AIDS?

É bom lembrar que essa divisão entre as ciências é fruto da intensa especialização resultante do avanço avassalador do conhecimento humano dos últimos dois séculos. O ideal do “homem renascentista”, exemplarmente ilustrado por Leonardo da Vinci, incluía a concepção do homem que não estava prisioneiro dos conhecimentos em uma única área, mas que, ao contrário, transitava por grande número de saberes. Quanto mais a sua escola proporcionar essa (re)ligação de saberes científicos, mais feliz você deve ficar com ela e mais preparado você estará para a vida.

Até pouco tempo, a área de conhecimento que estamos discutindo, estabelecida pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN Ensino Médio, MEC, 2000), era denominada Ciências Humanas e suas Tecnologias. Apesar de o complemento “e suas tecnologias” não figurar mais oficialmente, gostaríamos de também propor uma reflexão sobre esse termo, que tem origem na palavra grega para técnica, techné, adicionada de logus, razão2. Em outras palavras, tecnologia é a razão ou o conhecimento que está por trás do “saber fazer”. Se aceitarmos essa definição de tecnologia, não teremos dúvidas de que as Ciências Humanas geram muita tecnologia. Para nós, a definição das Ciências Humanas apresentada pelo filósofo Michel Foucault3 ajuda bastante a entender o tipo de tecnologia gerada pelas Ciências Humanas:

Vê-se que as Ciências Humanas não são uma análise do que o homem é por natureza; são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser saber (ou buscar saber) o que é a vida, em que consistem a essência do trabalho e suas leis.

Assim como nos demais campos científicos, as disciplinas humanas que aprendemos na escola são parte de um processo de geração de conhecimento que se desdobra em saberes aplicáveis à vida, ou seja, gera tecnologias. Algumas dessas tecnologias são muito boas para a vida dos homens, outras nem tanto e muitas embutem a dupla carga, da positividade e da negatividade. A diferença é que, mais do que em outros campos da razão, as Ciências Humanas nos colocam diante do desafio permanente de nos conhecermos mais e melhor. Tanto individualmente quanto coletivamente.

Essa potência de transformação para melhor da vida social, a partir das mudanças nas nossas ações individuais e, principalmente, das nossas interações, é a maior razão que vejo para que as Ciências Humanas sejam parte importante do que aprendemos na escola e, para mim pessoalmente, constitui a maior motivação pessoal que encontro para o exercício do magistério. Mesmo que esse exercício socrático de conhecer-nos cada vez mais possa, às vezes, desembocar no temor do menino representado nos quadrinhos. E também, mesmo que ocasionalmente não gostemos de algo que descobrimos no corpo social, é desse mesmo conhecimento que virá o caminho para aprimorá-lo. Para as Ciências Humanas, a maior parte da aplicação prática do conhecimento está ligada à formação de uma nova consciência social e política, a uma nova consciência sobre a humanidade.

Por mais que alguns segmentos queiram usar a educação como mecanismo de controle e de reprodução social, as forças geradas pelas Humanidades em geral, e pelas Ciências Humanas em particular, possuem tal potencial reformulador que é impossível controlá-los. Foi esse potencial que permitiu superar a tentativa de enfraquecê-las durante a ditadura militar brasileira, sob uma disciplina com o rótulo pasteurizado de Estudos Sociais. Foi esse mesmo potencial que permitiu que o sistema escolar dual do apartheid sul-africano produzisse um Nelson Mandela. É esse potencial que está em movimento quando você se envolve nas aulas de Ciências, já que elas são todas Humanas.

NOTAS:
1- Disponível em: http://www.renatojanine.pro.br/ciencia/reuniaotematica.html.
2- Ver Estéfano Verazto e outros. Disponível em: http://revistas.ua.pt/index.php/prismacom/article/viewFile/681/pdf.
3- Em As palavras e as coisas: uma arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

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