Revista do Vestibular da Uerj
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Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Linguagem, uma fronteira, por José Carlos de Azeredo

Ano 8, n. 22, 2015

Autor: José Carlos de Azeredo

Sobre o autor: José Carlos de Azeredo é professor associado do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ILE-UERJ). Doutor em Letras Vernáculas, suas pesquisas focalizam, especialmente, a gramática da língua portuguesa, com ênfase em temas relativos à sintaxe e à semântica do verbo. É autor das seguintes obras, entre outras: Fundamentos de gramática do português (Jorge Zahar, 2000), Gramática Houaiss da língua portuguesa (Publifolha, 2008) e Dicionário Houaiss de conjugação de verbos (Publifolha, 2012).

Publicado em: 20/08/2015

O lugar da linguagem

Tudo que compõe o mundo de nossas experiências, externas ou internas ao nosso corpo, “manda- nos” sinais o tempo todo: a claridade na janela significa que está amanhecendo, um cheiro que se espalha pela casa revela o feijão esquecido e queimando no fogão. O caminho que esses sinais percorrem até nosso cérebro, onde são interpretados e ganham significado, começa pelos órgãos dos cinco sentidos: visão, tato, olfato, audição e paladar. É o mundo – ou, em sua expressão mais imediata, o ambiente – comunicando-se com os seres vivos que o povoam e dando-lhes informações que os orientam na aventura permanente pela sobrevivência.

Em graus que variam segundo o equipamento biológico de cada espécie, os seres animados agem e reagem nos limites do respectivo universo movidos, basicamente, pelo instinto de preservação da vida. Mas o que é essa vida? Qual é a extensão desse conceito? Que dimensões ela envolve? Do ponto de vista estritamente biológico, a vida é apenas o estado da matéria orgânica sujeita às transformações que culminam com a morte.

Inerente a todo ser vivo, um comando básico, conhecido como instinto de sobrevivência, promove o retardamento dessa culminação. Parece que não se vê mais que isso no modo de viver dos animais em geral, por mais que surpreendamos, aqui e ali, semelhanças com o jeito humano de ser: a confecção do abrigo, o ritual do acasalamento, a demarcação de território, práticas lúdicas, gestos de dissimulação, demonstrações de contentamento, capacidade de aprender e de reagir a estímulos simbólicos. Falta-lhes, no entanto, o dom de construir a própria história mediante a criação e utilização de símbolos convencionais. Desse modo, vivem condicionados a uma programação genética que os inabilita para a produção de saberes novos e para a transformação das experiências de vida em conteúdos compartilhados socialmente por meio de uma linguagem: a pintura, o desenho, a música, a escultura, a palavra.

Apenas um instrumento?

A linguagem é considerada aqui como a capacidade humana de articular significados e compartilhá-los, em sistemas arbitrários de representação, que variam de acordo com as necessidades e as experiências da vida em sociedade. A principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido. (PCN Ensino Médio, MEC, 2000). Este trecho resume bem o modo de conceber a linguagem como um traço inerente à espécie humana. De fato, para ser consistente, uma reflexão sobre o lugar das linguagens na vida dos seres humanos precisa começar esclarecendo um ponto: ao defini-las como “instrumentos de comunicação” entre indivíduos, baseamo-nos, seguramente, em uma realidade óbvia, mas nos mantemos longe de captar sua essência. A ênfase em sua instrumentalidade deixa na sombra a relação mais profunda e essencial entre a linguagem e a organização do conhecimento. O lápis com que anoto um número de telefone ou a chave com que abro uma porta são exemplos básicos do conceito de instrumento. Esses objetos têm serventias limitadas, praticamente reduzidas a uma única função. Pensemos, agora, em um relógio ou em um violino. Além da utilidade fundamental de todos os relógios, ele pode ser um objeto de arte, uma peça de figurino elegante, uma marca de distinção social. E o violino? Ele pode servir para entoar Parabéns pra você ou Atirei um pau no gato – cançõezinhas populares de estrutura simples que ecoam como coisa pronta em nossos ouvidos –, mas, nas mãos de um concertista, sempre será um meio privilegiado de produção de apurados efeitos sonoros e rítmicos no solo de um choro de Pixinguinha ou de uma ária de Bach. A língua que falamos tem muito mais em comum com os instrumentos musicais do que com as chaves, na medida em que as obras que ela nos permite produzir são muito mais do que simples suportes de conteúdos a serem postos em circulação para atender à demanda social quotidiana (concepção inerente a uma visão instrumental e utilitária da linguagem). Esses conteúdos não estão armazenados na cabeça de alguém à espera de que as palavras os nomeiem e eles sejam objetivados socialmente; esses conteúdos são produzidos pelas escolhas que fazemos ao construir os enunciados.

As linguagens em uso numa comunidade fazem parte da cultura dessa comunidade e, como tal, são criações históricas e traduzem o modo pelo qual essa comunidade organiza o mundo como significação a ser compartilhada pelos seus membros. De acordo com os PCN, a linguagem é uma herança social, uma “realidade primeira”, que, uma vez assimilada, envolve os indivíduos e faz com que as estruturas mentais, emocionais e perceptivas sejam reguladas pelo seu simbolismo. O que um gesto, um texto, um desenho, uma canção, uma escultura “comunicam” é uma informação produzida em um contexto histórico-cultural determinado e conforme um código simbólico específico. Enfim, o conteúdo não é simplesmente veiculado pelo sinal, mas construído por ele. Isso faz a diferença entre as formas de linguagem humana e as manifestações comunicativas presentes nas demais espécies animadas, como os gorilas, as baleias e os bem-te-vis.

Decorre dessa condição o conjunto de características de qualquer forma de linguagem humana: a) ser criação do grupo, b) ser transmitida e aprendida como comportamento social, c) ser convencional, d) mudar e renovar-se através do tempo, e) dar forma à inesgotável capacidade inventiva do ser humano, f) estar sujeita a reelaborações com finalidade estética.

Língua materna: da gaiola à copa de uma árvore

O velho e surrado tema da “crise do ensino da língua” está sempre na moda, com alguns vilões que não saem de cena (o foco na gramática é um deles) e um ou outro que estreia segundo a onda política do momento (a violência simbólica perpetrada pela imposição de um padrão, por exemplo). Polêmicas à parte, recorde-se aqui uma ideia emprestada do filósofo Ludwig Wittgenstein (os limites de minha língua são os limites do meu mundo), que não autoriza juízos de valor sobre os usos da língua, mas advoga a relação estreita entre o conhecimento das coisas e a capacidade simbólica de discorrer sobre elas. Essa ideia dá respaldo à tese de que o êxito do empreendimento pedagógico depende, em larga medida, da expansão e qualificação dos meios de compreensão e de expressão do estudante. O ideal é que este seja continuamente estimulado a vivenciar o sentimento de que a língua que ele conhece e de que se serve no dia a dia é uma espécie de espaço em que nascem, se criam e vivem sua percepção das coisas, suas emoções, suas descobertas, suas ideias. Esse espaço pode ser comparado, metaforicamente, a uma modesta gaiola de taquara no interior sombrio de uma loja de belchior (ou brechó, como se diz correntemente) – como no conto “Ideias de canário”, de Machado de Assis –, mas pode ser também a copa de uma árvore frondosa, limitado apenas pelo imenso céu azul – como no mesmo conto machadiano.

A linguagem que se manifesta por meio de sons vocais combinados para a produção e circulação de significados constitui o que chamamos de língua e é exclusiva da espécie humana. Aprende-se a língua à medida que se tem necessidade de suas formas para tomar parte na vida afetiva, social e cultural, seja no âmbito da família, seja no espaço da comunidade mais ampla. O domínio dessas formas é condição indispensável a uma participação plena e eficaz na vida sociocultural. A extensão, a complexidade e a versatilidade das habilidades verbais de uma pessoa têm relação direta com a composição e o alcance de seu universo sociocultural. Este pode ter o tamanho e os limites de uma gaiola, ou pode se abrir para o infinito. É aí, portanto, que entra a escola. Seu papel fundamental é estimular o estudante, de forma planejada, a descobrir um universo que se expande continuamente e em múltiplas direções, à medida que esse estudante é municiado com recursos que viabilizam aquela expansão e aos poucos lhe inspiram um projeto de vida. As habilidades de leitura/compreensão e expressão constituem os mais decisivos desses instrumentos.

As situações da vida podem se apresentar a cada um de nós sob duas feições fundamentais: como uma mera repetição de acontecimentos, um cotidiano sem surpresas, enfim; ou como experiências que desequilibram nosso universo de conhecimentos e de valores, deslocando-nos da zona de conforto. A língua que falamos é uma forma de conhecer e de dizer que reflete essas duas maneiras de estar no mundo. Portanto, a linguagem pode fazer de nós simples repetidores de um discurso memorizado e irrefletidamente praticado por comodidade; ou pode ser um território de surpresas. Para tanto, é preciso sensibilizar o estudante para os mecanismos estruturadores da linguagem, a fim de estabelecer conscientemente a correlação entre escolhas – de palavras, de construções etc. – e efeitos de significação. Esta segunda alternativa é, obviamente, a que oferece uma real perspectiva de alargamento dos horizontes intelectuais e culturais dos estudantes. Por esse caminho, chega-se a uma concepção de língua que redimensiona e dilata seu papel como instrumento, na medida em que a torna apta ao desempenho das duas ordens de tarefas discriminadas acima e associadas às visões de mundo do canário machadiano.

A estratégia de sensibilização: um exemplo

Segue um exemplo de como as escolhas são decisivas para construir o sentido do texto. A tomada de consciência do processo de construção do texto é o melhor caminho para que o estudante deixe de ser um mero usuário da língua, o que acontece quando nos acomodamos à repetição de discursos prontos e nos comportamos como se estivéssemos “programados” pelo sistema da linguagem utilizada.

As entidades de que um texto trata são identificadas por procedimentos que as tornam inteligíveis/reconhecíveis para o interlocutor/leitor. O trecho a seguir, de uma crônica de Rubem Braga, por exemplo, gira em torno de um tópico mencionado pela primeira vez como “alguma coisa verde”.

Outro dia eu estava distraído, chupando um caju na varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem sequer me dar conta do que fazia.

Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saía da terra, em forma de concha.

A expressão é vaga, mas não só é coerente – já que, no momento da descoberta, o narrador não foi capaz de se lembrar do gesto de enterrar a castanha – como oportuna do ponto de vista do desdobramento textual, já que tem o papel de criar expectativa por uma revelação. Eis a sequência:

Dois ou três dias depois acordei cedo, e vi que durante a noite aquela coisa verde lançara para o ar um caule com pequenas folhas novas. Notei que a empregada regava com especial carinho a planta, e caçoei dela:

– Você vai criar um cajueiro aí?

Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a mudinha, naturalmente, mas estava com pena.

Cumprida sua função de introduzir o tópico no texto, o pronome “alguma” dá lugar a “aquela” quando o tópico, já conhecido, é mencionado pela segunda vez. Sucedem-se três expressões referenciais que revelam conceptualizações bem distintas para fechar a gradação, que vai do mais indefinido (alguma coisa verde) até o mais específico (a mudinha [de cajueiro]): “um caule com pequenas folhas novas” conceptualiza o objeto como produto de uma transformação operada pela natureza; já “a planta” arremata o reconhecimento do objeto com o nome que vulgarmente lhe damos. Por fim, ciente já de que se tratava de um projeto de árvore frutífera, a empregada lhe chama, afetuosamente, “a mudinha”. A variação das expressões é motivada, portanto, por coordenadas presentes no desenvolvimento do próprio discurso.

Palavras finais

Ao longo desta reflexão, procuramos caracterizar as linguagens como as formas pelas quais os conteúdos que circulam no meio sociocultural são estruturados, percebidos e assimilados. Compreender/interpretar um objeto é sempre um ato que conjuga fatores formais – que dizem respeito à linguagem que o codifica – e fatores contextuais, ligados à cultura e à história. O foco na linguagem implica, sobretudo, a sensibilização do estudante para os procedimentos formais com que se organiza o sentido. Sendo assim, a prática pedagógica adequada é a que promove a observação, encoraja a reflexão e aguça a percepção, de sorte que o significado do objeto seja compreendido como produto de duas variáveis: o contexto histórico-cultural de seu surgimento e as escolhas e procedimentos de composição inerentes a uma certa linguagem. Defende-se, desse modo, uma concepção por assim dizer “humanista” de ensino dos recursos simbólicos, que consista em estudá-los não só como meios de expressão e de comunicação, mas, além disso, como formas de organização da experiência da realidade que constitui o que chamamos de conhecimento e cultura.

Conhecer alguma coisa é mais do que ser capaz de situar essa coisa no universo de nossas experiências, é mais do que estar apto a dispor dela segundo nossa conveniência. Conhecer é atribuir sentido. Como o sentido não é dado pela natureza, mas pelas cortinas de símbolos que se colocam entre nós e o mundo, é necessário, se quisermos tirar todo o proveito de nossa condição humana, saber como esses símbolos funcionam. Essa consciência não só garante que os símbolos sejam ferramentas a serviço de nosso aperfeiçoamento como seres humanos livres, solidários e criativos, mas ainda previne que eles degenerem em redes que aprisionam e imobilizam nossa razão, nossos sentidos e nossos pensamentos.

 

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