Revista do Vestibular da Uerj
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Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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As Duas Culturas, por Guilherme Preger

Ano 8, n. 24, 2015

Autor: Guilherme Preger

Sobre o autor: Guilherme Preger é engenheiro e escritor. Mestre em Eletromagnetismo Avançado (PUC/RJ) e Mestre em Literatura Brasileira (UERJ). Autor de Capoeiragem (Editora 7 Letras, 2003) e Extrema Lírica (Editora Oito e Meio, 2014). É um dos fundadores do Clube da Leitura do Rio de Janeiro, coletivo de prosa literária. Atualmente, é doutorando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada na UERJ, com tese sobre Literatura e Ciência.

Publicado em: 29/08/2016

A juventude é uma época de grandes indecisões frente a grandes questões, sendo talvez a maior delas a proverbial: “o que farei quando crescer?”. Ou, em outra perspectiva, qual a profissão que o jovem estudante deve escolher para desempenhar durante sua vida adulta? 

Quase sempre para ajudar a decisão, essa questão é reduzida para outra questão preliminar: “sou de humanas ou sou de exatas?”. É como se todo o conhecimento humano estivesse dividido em duas grandes áreas, as das Ciências Exatas e das Humanidades. Há também uma terceira, a das Biológicas, mas que costuma oscilar entre aquelas duas. 

Essa divisão permanece durante a vida do estudante universitário nas inúmeras “tretas”, nas disputas por reconhecimento entre os estudantes assim divididos, entre ciências matemáticas e ciências sociais. As “tretas” têm com certeza uma grande dose de humor, gracejo e ironia, como na página “Ajude o pessoal de humanas a fazer miçanga”, mas na realidade indica uma questão séria. Reconhecimento profissional implica remunerações maiores e mais oportunidades. 

Mesmo a neurologia veio recentemente referendar esse entendimento com o tópico da “lateralização das funções cerebrais”, a repartição de nosso cérebro por dois hemisférios, esquerdo e direito, cada um com especializações diferentes. Vulgarmente se difundiu a ideia de que um dos lados seria mais calculista, racional, matemático, enquanto outro seria mais sensível, afetivo e social. Ou seja, difundiu-se a ideia de que um dos lados do cérebro seria mais para “exatas”, enquanto outro tenderia para “humanas” e a escolha de cada um por sua vocação seguiria a parte dominante do cérebro. A escolha pela profissão obedeceria então a um determinismo genético.

No entanto, não é bem assim. Nosso cérebro funciona de maneira bem mais integrada do que esta ideia faz crer. O cérebro humano possui alta “conectividade”, isto é, ele tem capacidade de integrar sinapses de neurônios (as informações das células cerebrais) de regiões muito distintas de sua superfície. O conjunto dessas sinapses forma “ondas cerebrais” que podem ser mapeadas por exames de eletroencefalografia (EEG) ou mesmo visualizadas por exames mais modernos, como o de Imagem por Ressonância Magnética Funcional. Esses exames mostram que nossa atividade mental é uma composição de impulsos provenientes de distintas localidades de nosso cérebro.

Em 1959, o químico e romancista Charles Percy Snow, também conhecido como C. P. Snow, proferiu uma palestra denominada “As Duas Culturas”, na qual ele menciona uma pequena história que lhe teria acontecido: 

Algumas muitas boas vezes, tenho estado presente nas reuniões de pessoas que, pelos padrões da cultura tradicional, são altamente educadas, e com considerável gosto expressam sua incredulidade no analfabetismo dos cientistas. Uma vez ou duas vezes, eu fui provocado e então perguntei aos colegas quantos deles poderiam descrever a segunda lei da termodinâmica. A resposta foi fria e também negativa. No entanto, eu estava pedindo algo que é o científico equivalente de: você já leu alguma obra de Shakespeare?”

Todo estudante do ensino médio é suposto conhecer a segunda lei da termodinâmica, um dos mais importantes conceitos das ciências exatas. Esta lei diz que a entropia de todo sistema termodinâmico isolado tende a aumentar. Trata-se de uma das leis mais gerais da natureza, com validade universal. “Entropia” é um conceito científico complexo, mas que quer dizer aproximadamente o mesmo que “desorganização”. Assim, podemos reescrever a lei de outra forma mais simples: todo sistema termodinâmico isolado tende a se desorganizar espontaneamente. 

No entanto, como diz C. P. Snow, muitos adultos cultos, representantes ilustrados de nossas “Humanidades”, parecem desconhecer ou ter esquecido o que significa essa lei científica. Mas seria esse desconhecimento realmente equivalente a não ter lido Shakespeare ou conhecer uma obra do escritor Machado de Assis, nosso correspondente literário à altura do Bardo inglês? 

A segunda lei da termodinâmica tem efeitos bastante conhecidos em nossa experiência cotidiana. Ela está relacionada aos chamados processos irreversíveis. Por exemplo,  cozinhe um ovo cru até que ele se torne um ovo estrelado. Este é um processo irreversível: podemos ir do ovo cru ao estrelado, mas não podemos retornar do ovo estrelado ao ovo cru. Durante essa transformação, dissipou-se irreversivelmente energia sob a forma de calor. Essa energia dissipada estava contida na estrutura interna do ovo na forma de energia química que liga suas células e moléculas. Quando o ovo muda de forma, parte dessa energia química de ligação é liberada no ambiente e não retorna mais. De energia útil tornou-se energia gasta.

Trata-se, portanto, de uma situação reconhecida por todos e que se repete pelos atos culinários de se cozinhar alimentos (mas em muitos outros processos que envolvem combustão também). Conhecendo-se a lei, observa-se um evento comum sob uma nova perspectiva. Aprende-se uma nova visão das coisas e do mundo ou das coisas no mundo.

Mas seria o conhecimento de uma lei natural algo mais importante do que conhecer Shakespeare ou Machado de Assis? Quanto a isso, há muitas controvérsias. 

Voltando ao nosso amigo C. P.  Snow. Em sua palestra, ele aborda então o problema das “duas culturas”, que são justamente as das ciências exatas e das ciências humanas. Para o autor, essas duas culturas estavam se tornando cada vez mais distantes na sociedade moderna a ponto de se tornarem mutuamente incompreensíveis, e essa distância tornava mais difícil encontrar soluções para os problemas do mundo. 

A tese de Snow gerou muita controvérsia, e foram muitos intelectuais que a contradisseram,  mas ela aparece refletida nas polêmicas e rixas do meio universitário entre os estudantes. Na verdade, se essa diferença não fosse realmente significativa, nem a estaríamos discutindo neste artigo, nem haveria muita angústia nos estudantes para decidir entre exatas e humanas. Pois, como observamos, a própria sociedade parece assimétrica nas relações de oportunidade.  É certo que todos reconhecem a importância de uma grande “cultura geral”, ou o que era antes chamado de “cultura humanística”, mas será que as profissões estão tão especializadas que uma cultura abrangente faria muita diferença, sobretudo com respeito ao status social?

Neste artigo, gostaria, para terminar, de propor uma ideia de aproximação entre as duas culturas que questiona o argumento de que há uma distância crescente de entendimento entre os campos das ciências exatas e das humanas. Minha ideia é a que há algo que aproxima todas as ciências e que, longe de torná-las mutuamente incompreensíveis, ao contrário, permite sua recíproca tradução. Este algo é a linguagem. 

Costuma-se dizer que a matemática é, por excelência, a linguagem das ciências exatas. Com certeza, as ferramentas de cálculo são imprescindíveis nas chamadas ciências “duras”. Igualmente, quando dizemos “exatidão”, temos na cabeça uma relação matemática que indica  “semelhança” e “simetria”. Mas, também sabemos que, numa das mais antigas escolas de matemática da humanidade, chamada Escola Pitagórica, na Grécia antiga,  os ensinamentos matemáticos eram transmitidos através de música. Aliás, algumas relações de geometria, como as do comprimento de onda, estão ligadas às relações entre as notas musicais. Afinal, então, música é de exatas ou de humanas? Os pitagóricos também viam nas relações geométricas a própria noção de harmonia e beleza da natureza. E de novo, harmonia e beleza são de humanas ou de exatas? 

Música acompanhava sempre as aulas na Escola Pitagórica, pois seus participantes consideravam que a música unia as relações de simetria, dadas pelos números, às de harmonia, dadas pela geometria. 

Porém, a mais importante observação era que, como escola, as ideias de Pitágoras e outros mestres precisavam ser transmitidas: a matemática é um corpo de ensinamento que precisa ser ensinado para que tenha continuidade. E então surge um paradoxo: como utilizar a linguagem matemática para transmitir um conhecimento para discípulos que não conhecem a linguagem matemática? Ao contrário das linguagens naturais que são naturais exatamente porque são aprendidas “naturalmente”, a linguagem matemática precisa ser ensinada e aprendida. E essa característica não se restringe à matemática e às ciências exatas: todas as ciências precisam da linguagem para ser transmitidas, ensinadas e aprendidas. 

Na sociedade moderna contemporânea, onde o saber humanístico se fragmentou e se especializou entre dezenas de disciplinas, as ciências, exatas e humanas, desenvolvem o que chamamos de um “corpo teórico” escrito numa linguagem quase sempre especializada, também chamada de “jargão”, que é bem conhecido e dominado pelos seus “especialistas”, exatamente como a linguagem matemática é entre os matemáticos, mas que é de difícil compreensão para os “leigos”, isto é, os não praticantes da disciplina.

No entanto, os saberes não podem se isolar em ilhas do conhecimento distantes umas das outras. Eles precisam dialogar entre si para que mutuamente se enriqueçam. A isso se dá o nome de transdisciplinaridade, uma exigência cada vez mais necessária no mundo contemporâneo.

Mas há um fato ainda mais importante: em todos os campos de saber se desenvolvem pesquisas que permitem a essa e àquela disciplina aumentar seu corpo teórico. Uma parte bastante significativa dessas pesquisas é subvencionada com orçamento público. Os cientistas, portanto, precisam dar conta de suas pesquisas diante da sociedade, justificá-las perante o público que na prática coloca seu dinheiro, sob a forma de impostos, nas pesquisas e no desenvolvimento científico. 

E assim, para transmitir o conhecimento para as gerações mais novas, bem como para apresentar os resultados de suas pesquisas ou para justificar os investimentos públicos, os pesquisadores e cientistas precisam comunicar ao público seus estudos e avanços numa linguagem acessível e não especializada. E mesmo no campo não universitário e não vinculado a pesquisas públicas, como no interior de empresas, todo profissional precisa prestar conta de suas atividades. E quanto mais clara e articulada for a justificativa e a explicação dos benefícios dessa atividade ou daquela pesquisa, maiores serão as chances de convencimento, seja do público que paga os impostos, dos políticos que gerem o orçamento ou dos gerentes que administram as empresas no setor privado. 

Mas não devemos pensar na linguagem apenas como o instrumento verbal para ser utilizado nas explicações e nas justificativas sociais. Pois também não se faz ciência, de qualquer natureza, sem ideias, e não se tem ideia sem linguagem. A linguagem faz parte, portanto, do processo criativo de qualquer disciplina. Não parece ser boa ideia, afinal, imaginar as duas culturas muito distantes uma da outra. 


 

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