Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 18/04/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

Inicial » Artigos » O outro lado da redação do ENEM

Artigos

O outro lado da redação do ENEM, por Daniele Andrade da Costa de Pinho

Ano 8, n. 24, 2015

Autor: Daniele Andrade da Costa de Pinho

Sobre o autor: Daniele Andrade é licenciada em Português-Alemão pela UERJ (2000), com especialização em Educação Inclusiva e Educação Especial pela Facinter (2012) e Mestrado em Avaliação pela Cesgranrio. Professora contratada da Escola Sesc de Ensino Médio pelo período de 01/04 a 29/06/2016, atuou na cogestão da Diretoria de Articulação Institucional da Educação da Faetec/RJ.

Publicado em: 29/08/2016

Produzir um texto, a partir de um comando e de textos de motivadores, envolve algumas dificuldades. Escreve-se para um outro, mas não exatamente pelo outro, em seu lugar. Essa escrita é mais angustiante, superficial e difícil.

A escola é o local em que mais se solicita redigir dissertações. Por ser um gênero textual tipicamente escolar, as avaliações em larga escala apresentam também essa predileção. O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), um dos mais importantes exames de larga escala do país, se insere nesse contexto.

A redação do Enem recebe tratamento especial a partir da publicação de um guia especial de redação ao participante: A redação no Enem 2013: Guia do Participante (BRASIL, 2013). Para este exame, o candidato deve produzir um texto em norma culta, estruturado em prosa do tipo dissertativo-argumentativo, com base em um tema de ordem social, científica, cultural ou política.

O enunciado da prova de redação promove uma dinâmica diferente dos padrões do texto dissertativo-argumentativo restritos à área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias: solicita-se ao participante que proponha intervenções sociais, de acordo com o desenvolvimento do texto, respeitando ainda os direitos humanos. 

Na prova de redação, são cinco competências a serem avaliadas no texto do participante, a saber: 

Competência 1:  Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa; 

Competência 2:  Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa; 

Competência 3:  Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista; 

Competência 4:  Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação; 

Competência 5:  Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos. Cabendo a essa competência 20% do valor global da prova de redação.

Dados confirmam que a 5ª competência – se comparada com o resultado global das outras quatro competências – é a mais difícil de ser alcançada pelos participantes. De um lado, essa dificuldade pode ser explicada pela própria natureza da competência 5, que não se circunscreve somente à área de Linguagens, embora esteja nela alocada. 

Considerando que a média nacional para a Redação em 2013, no Brasil, foi 529,14 (BRASIL, 2013), observe-se a tabela abaixo:


Como se pode constatar na tabela, a média da 5ª competência é mais baixa que a média global das demais competências. Isto acontece provavelmente porque esta competência requer uma abordagem multidisciplinar, envolvendo conhecimentos, pelo menos, da Sociologia, da Filosofia e da História. Ora, a própria escola ainda trabalha habilidades da produção escrita de forma desarticulada das áreas de conhecimento. Acrescente-se ainda o fato de os alunos concluintes do Enem serem muito jovens e, talvez, com pouca experiência de vida para propor intervenções na realidade social solicitada pelo enunciado da redação.

A linguagem é um condutor das relações em sociedade. O fato de se usar o código da língua portuguesa para descrever um fenômeno, qualquer que seja ele, não pode ser confundido com a competência em uma dada área de conhecimento. A redação proposta pelo Enem poderia avaliar competências linguísticas por meio de uma dissertação argumentativa tradicional. A alteração do modo de organização textual passa a exigir do participante uma competência extralinguística. 

Se, por um lado, há uma dissonância entre os propósitos de uma avaliação em educação, por outro lado, amplia-se o anseio em resolver o problema instaurado. Crescem os “cursinhos”, os livros-manuais, transformando alunos em cobaias e ensino em produto – um produto, porém, pautado no “achismo”, não nos valores de uma política em favor da Educação. Fica a indagação: se o ensino falha, o livro falha, o que fazer?

A presença dessa competência, sem mudanças na forma de ensino, contribui para uma fragilização da nota global do participante. Primeiro, porque o critério de julgamento não pertence à competência avaliada, e segundo, porque exige do participante uma atitude nova, ainda não vivenciada na maioria das unidades escolares do país.

De acordo com Abreu (2015), no momento em que o participante elabora sua proposta de intervenção, demonstra capacidade de interligação de um apanhado de conteúdos conceituais e procedimentais adquiridos em seu processo formativo, dentro e fora da escola, vertida em uma postura de substância atitudinal traduzida como a de uma ação cidadã diante da realidade na qual está inserido. O que talvez o autor não considere, no entanto, é que essa postura de conteúdo atitudinal requer uma formação articulada e condições de perceber a aprendizagem como algo significativo, inter e multidisciplinar. No entanto, isso não é a experiência coletiva. Essa seria o ideal da educação, que todavia se encontra distante da maioria das escolas e da maioria dos núcleos familiares. 

Não se pretende aqui um engessamento do trabalho com textos, da escrita de textos, dos gêneros textuais (que são infinitos em suas possibilidades, inclusive) ou mesmo do pensamento, pelo contrário. 

De acordo com Squarisi e Salvador (2013, p. 9), “Escrever está na moda. As novas tecnologias de comunicação, quem diria, ressuscitaram o valor da escrita. [...]. E os vestibulares? Estudante não entra na faculdade se falhar na redação. Nunca se precisou tanto da escrita quanto agora.

A redação do Enem submete o participante a critérios padronizados de correção, classificados e subdivididos em cinco competências. Dentre elas, a última competência, a 5ª, se destaca por sua singularidade frente às demais, quando avalia o candidato por um princípio extralinguístico, não discursivo.

Mesmo que as diretrizes em educação evidenciem a necessidade de articulação e de integralização dos saberes, o cenário aponta para outra realidade. Nesse aspecto, a 5ª competência favoreceria justamente essa integração das áreas do conhecimento. Não há evidências, porém, de que seja esse o propósito. O que permite a dúvida da (in)justiça em se avaliar um processo que não foi experimentado concretamente.

A 5ª competência não está no âmbito das habilidades discursivas avaliadas numa redação. Ela não é restrita à Língua Portuguesa. Por isso, o professor de Letras vê-se isolado diante desse imperativo à interdisciplinaridade. O trabalho isolado desse professor não ajuda a desenvolver a escrita do aluno isolado no ensino médio.

Para alcançar um resultado efetivo nesta competência, é imprescindível que os sistemas de ensino promovam uma inovação em seu currículo, ou pelo menos na forma de viver o currículo, inter-relacionando as áreas do conhecimento, em especial, Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e as Ciências Humanas (ou Sociais), de modo a provocar articulação, proximidade, familiaridade.

Propor soluções para problemas complexos representa a passagem da objetividade textual para a subjetividade do ato da escrita, o que contraria alguns limites impostos pelo próprio enunciado do exame. Cabe ainda destacar que a noção de cidadania, historicamente constituída, tem se modificado, porém não se percebe que as práticas dos sistemas de ensino acompanhem tais modificações, dificultando que a sociedade ainda jovem dê conta de todas essas variáveis.

Em respeito ao cenário educacional em curso, urge uma reflexão do Ministério da Educação sobre a pertinência da 5ª competência, bem como da extensão de todo critério de julgamento da redação. Cidadania não pode ser um conceito a ser desenvolvido em um parágrafo textual. Deve ser um norte dentro dos muros da escola e fora dela.

Por fim: que o trabalho na escola com a produção de textos provoque uma reescrita no cotidiano das escolas, das famílias, dos indivíduos e, por objetivo e extensão, do Enem; que essa produção (re)conduza o aluno-participante à condição da autonomia do ato de pensar e ao respeito do ato de se expressar. 

REFERÊNCIAS

ABREU, Ricardo Nascimento. Exercício da cidadania e direitos humanos: as funções da competência V na redação do ENEM. In. SILVA. Leilane Ramos da; FREITAS, Raquel Meister Ko. (Org.). Linguagem, interação e sociedade: diálogos sobre o ENEM. João Pessoa: Editora do CCTA, 2015. p. 97 – 109.

BRASIL. Ministério da Educação. A redação no ENEM 2013: guia do participante. Brasília, DF: INEP, 2013.

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2001.

SQUARISI, Dad; SALVADOR, Arlete. A arte de escrever bem: um guia para jornalistas e profissionais do texto. São Paulo: Editora Contexto, 2013.

 

©2008-2024, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Todos os direitos reservados