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Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Ocupar ou temer a arte contemporânea, por Tatiane Schilaro

Ano 9, n. 25, 2016

Autor: Tatiane Schilaro

Sobre o autor: Tatiane Schilaro é doutoranda em Estudos Visuais e História da Arte na Universidade da Califórnia Santa Cruz. É Mestre em Arte Contemporânea e em Crítica de Arte pela Escola de Artes Visuais de Nova York. Formada em Arquitetura, atualmente trabalha como escritora e curadora.

Publicado em: 29/11/2016

Era uma vez uma obra de arte contemporânea numa sala escura em que a luz do dia entrava pelos fundos, através de janelas que iam do teto ao chão. Chego nesta sala com certa relutância. Preciso recalibrar minha noção de espaço e me adaptar aos objetos que encontro: a obra é uma instalação. São pedras penduradas no teto da sala, presas por longas redes de nylon branco  quase imperceptíveis quando vistas de longe  que as posicionam um pouco acima das cabeças dos visitantes. As pedras são quase todas do mesmo tamanho, meio quadradas e de cores diferentes: algumas de tons acinzentados e outras rosa-alaranjadas.


“Close-Up 2016”, de Anawana Haloba

Caminho por entre elas e há uma certa energia no ar, um peso, um cheiro. Descubro que são pedras de sal. Vejo que no chão, embaixo de cada uma delas, existem pratos e vasilhas, algumas de plástico, simples, outras de cerâmica, mais ornamentadas, mas todas sugerem domesticidade. As vasilhas me lembraram uma cena comum no Brasil quando chove e se mora em casa bem antiga, com telhas de cerâmica: há goteiras por toda parte.

Continuo andando e sinto mais forte o cheiro, um aroma salgado, algo que me lembra o mar. Descubro que as vasilhas estão lá para receber as gotas de sal derretido. Cada pingo que cai ressoa no espaço, nas paredes, nas pedras, no meu corpo. Percebo que existem caixas de som amplificando a melodia que as gotas fazem ao caírem nas vasilhas. Fico ali, observando a beleza das pedras, a transparência de seus corpos, que me deixam vislumbrar suas naturezas cristalinas, ouvindo pingos e vozes que sussurram uma poesia desconhecida. São cantos que, vez ou outra, se intercalam ao som das gotas, uma fala longínqua, quase ininteligível, mas também inesquecível. Há velas no chão: é como se ali fosse um espaço de cura, um espaço de espera, um santuário para memórias.

Vi uma senhora idosa andando pela instalação; outras pessoas também perambulavam ao redor das pedras e nós nos encontrávamos. A senhora era negra, e vestia uma roupa branca de estampa floreada. Ela observava a obra com uma atenção diferente, um certo carinho misturado à inspeção, como se avaliasse o estado final da instalação (era o dia de inauguração da Bienal e alguns artistas ainda estavam cuidando dos últimos retoques nos trabalhos), por isso pensei, talvez, que ela fosse Anawana Haloba, a autora da obra, que nasceu em Zâmbia e hoje vive na Noruega.

Cheguei mais perto, pois queria conhecer a artista e perguntei à senhora, em inglês, a coisa mais óbvia que me veio à cabeça, sem indagar diretamente sobre a autoria da obra: “por que o sal?”. Ela olhou para mim com surpresa e retrucou: “por que branco (white)?” Eu expliquei, “não, eu quis dizer por que usar o sal (salt)?”. Ela respondeu sem hesitar, “porque ‘eles’ destruíram tudo, destruíram tudo por dinheiro, por causa do sal. Eu odeio o dinheiro. Mataram o nosso povo e mataram os indígenas do Brasil também. Por isso eu odeio o dinheiro e o tal do desenvolvimento”. O “eles” em sua resposta talvez se referisse aos colonizadores, os empreendedores, os imperialistas, os capitalistas, os milhares de dominadores do sal através dos tempos.

Depois que me despedi da senhora descobri, lendo a legenda da obra, que as vozes que ecoavam pela sala e que contracenavam com os sons dos pingos nos vasilhames eram gravações de uma canção antiga no dialeto do povo da mãe da artista, em Zâmbia, e também diversas canções de povos indígenas brasileiros: um diálogo transatlântico.

Ainda hoje penso no que a senhora me falou. Algo me dizia que ela era a mãe de Anawana, mas não importava se era minha projeção ou não, as suas palavras deram voz à escolha daqueles blocos de sal. Apesar de serem “belos”, eles modificavam o ar da sala, como se as pedras estivessem presentes ali de forma sobrenatural. A obra era interessante por criar essa atmosfera, algo que transcendia, ou fazia parte integral, da estética: além das formas fascinantes das pedras, havia uma harmonia entre ideia e sentimento: uma política do afeto, mas o sal era uma escolha política no sentido estrito.

A resposta para a minha pergunta “por que o sal?” é longa e complicada (como também são as respostas às perguntas que as crianças fazem aos pais), já que a “história do sal” se entrelaça à história da humanidade. Só no continente africano, desde os séculos V e VI, o sal foi muito utilizado como moeda de troca entre diversos reinos. Durante o colonialismo, a história do sal se misturou às histórias de guerras e escravidão: comerciantes o disputavam, seguindo pelo deserto do Saara, passando por Sahel até Timbuktu. Ainda hoje há mineração intensiva para a produção do sal-gema, que causa impacto ambiental no mundo todo.

Portanto, havia, naquela instalação, uma tensão, uma melancolia implícita entre: o sal derretendo, a condição climática atual dos continentes africano e sul-americano sob ameaça das atividades de extração, e, por fim, os sussurros daqueles povos que há centenas de anos vêm sendo assassinados, deslocados, destituídos por projetos colonialistas, imperialistas, capitalistas. Os pingos dos blocos de sal, captados pelos vasilhames, me faziam pensar neste complicado “passar do tempo”  algo como uma contagem regressiva imprecisa da idade da Terra, entre passado, presente, e futuro.

Essa foi minha experiência com a obra “Close-Up 2016”, da artista Anawana Haloba, feita especialmente para a mais recente edição da Bienal de São Paulo: Incerteza Viva. Foi uma das obras que mais me tocou, pela simplicidade e sensibilidade que se cola ao corpo, que entra pelas narinas e ouvidos. Nem todos os trabalhos de arte contemporânea produzem esse efeito estimulante. A arte contemporânea pode ser um pouco insossa, um pouco esquisita, desagradável. Mas, ao ler críticas sobre a exposição nos jornais paulistanos, me surpreendi com comentários de que essa edição da Bienal fora muito politicamente correta, que não apresentava “arte de verdade”, ou que trazia apenas “inventários” de coisas sem muita elaboração estética.

São observações que fazem sentido. Os trabalhos apelidados pela crítica de “inventários” são comuns entre artistas contemporâneos. Instalações que usam o formato de arquivos, ou grande quantidade de objetos acumulados em uma sala e que, juntos, acabam por emitir significados diferentes, como inventários de fotos e documentos que o visitante deve ler, ou gastar certo tempo para “entender”. De fato, uma das formas preferidas da arte contemporânea tem sido a instalação, uma linguagem que, muitas vezes, requer do visitante a postura de investigador, nem sempre bem-vinda.

No entanto, ainda que certas instalações sejam problemáticas, a linguagem que os artistas escolhem para expor seus trabalhos é o menor dos problemas do campo da arte no Brasil. Nos dias que passei visitando a Bienal, observei a forma como os visitantes interagiam com a arte ali exposta. Trabalho há alguns anos em museus de arte nos Estados Unidos, mas essa interação me pareceu diferente.

Nos museus norte-americanos como MOMA, Whitney Museum e El Museo del Barrio, os visitantes (exceto os turistas preocupados com seus selfies) são mais introspectivos, mas parecem saber como interagir com tipos diferentes de linguagens artísticas, como vídeos e instalações. Já alguns visitantes da Bienal estavam curiosos e expressavam sua vontade de entender as obras, mas repetiam certos estereótipos étnicos e raciais, talvez sem perceber que o faziam, e assim desqualificavam certas obras. Por exemplo, ao encontrarem obras com imagens de indígenas, ouvi muitos visitantes falarem: “ih, isso aí é coisa de índio”.

Mesmo que a enunciação desses estereótipos seja resultado de interações sociais complexas e da propagação de discursos preconceituosos através da história, é um dos papéis da crítica de arte contemporânea intervir de forma mais ativa nessa história. Parece-me que é preciso repensar o papel daqueles que têm voz amplificada por veículos populares de comunicação, como os jornais, revistas e canais online, que influenciam os estereótipos massificados da cultura brasileira.

Arte é política mesmo quando não quer ser, quando acha não ser. Até as famosas pinturas nas cavernas, chamadas de pré-históricas, não são apenas uma manifestação de gosto, mas manifestações “políticas”  no sentido amplo  de manutenção do poder, de contação de estórias, de fruição e de embate entre o mundo visto e vivido, com um outro mundo: a cosmologia que não se via ou vivia só através dos olhos, mas da imaginação. Por mais “desinteressada” que seja uma obra, o espaço da arte é um espaço de embate social que hoje, mais do que nunca, não depende apenas de uma resposta fixa à pergunta “o que é arte?”.

Por mais que a sociedade deva continuar se perguntando o que é arte, quando encontramos uma obra contemporânea ela já é uma elaboração particular da(o) artista em resposta direta à pergunta, “o que é arte?” e indireta à pergunta “por que é arte?”.

Quando descobrimos respostas para a segunda pergunta, entendemos que, quando alguma coisa se torna arte, ela passa a pertencer a complexos sistemas de valores  a forma como o mercado, as galerias, e colecionadores atribuem valor monetário aos trabalhos  e de institucionalização (e exclusão) de certas práticas  a forma como as obras são avaliadas por museus, curadores e historiadores. Os critérios que levam à exclusão de certas práticas e artistas nos revelam as contradições e problemas desses sistemas.

Independentemente do nosso conhecimento sobre a arte, quando encontramos uma obra e somos dominados pela curiosidade, as perguntas mais necessárias a serem feitas talvez sejam: “o que essa arte faz?”, “o que está fazendo?”, “o que já fez?”. Este é o papel da arte contemporânea: criar interferências no dia a dia, fazer algo, ou se decidir, estrategicamente, pelo não-fazer. Pode ser que encontremos uma obra que queira ser só opticamente (des)agradável, mas qualquer objeto nascido neste mundo está mergulhado numa sopa complexa de interações sociais. Perguntar-nos por que certo tipo de arte está sendo feita, e por quais artistas, é um convite à participação de respostas mais complexas no debate.

No entanto, como o espectador não-especializado poderia se abrir a essas perguntas quando os próprios “formadores de opinião” se fecham? Ou insistem em julgar trabalhos apenas pelos seus aspectos formais, colocando-os fora ou dentro da pergunta “isso é mesmo arte?”. No caso da Bienal, notei que alguns escritores apelaram até para o simples “gostei disso” e “não gostei daquilo”, fruto de um individualismo que se torna mais opinião do que crítica. As duas práticas podem acabar por menosprezar aspectos contextuais sobre os trabalhos, a trajetória e o alinhamento político da(o) artista(o), e o seu papel ativo quando o trabalho passa a habitar um momento ou um espaço específico.

Muitas das obras da Bienal, assim como a de Anawana, tinham pouco a agradar os críticos que preferem enfatizar o formalismo, ou aqueles que se apegam ao “gosto”, ou apenas à complexidade estética de uma obra. Todos esses aspectos são importantes na interação com uma obra de arte, mas é fácil se deixar levar por acusações contra trabalhos classificados como pertencentes a um “minimalismo estético”. Perante contextos sociais atuais, repetidos mundialmente, que colocam o racismo e a intolerância como base para governança e para a manutenção de políticas públicas, a obra de Anawana  assim como tantas outras nesta Bienal, de que participaram os povos indígenas e afrodescendentes transcende a forma e ruma para o campo da afetividade. Muitos dos trabalhos a respeito dos quais perguntamos “mas isso aí é mesmo arte?” podem emitir sinais afetivos, existenciais e sociais que vão além do gosto e de apreciação estética. Podemos apreciar inventários e instalações, não apenas esteticamente, mas a partir da forma como essas obras ressoam na nossa alma: é essa diferença que deve ser cultivada e celebrada. 

Dar visibilidade a certos temas e protagonismo a certos corpos e raças, a certos modos não-normativos de sexualidade, parece ser mais urgente e mais necessário do que nossa resistência individual em “compreender” uma obra de arte contemporânea. O esforço, muitas vezes, vale a pena. Ao procurar vencer o preconceito contra a multiplicidade de linguagens da arte contemporânea (não só quanto às instalações, mas também performances, vídeo-arte, entre outras), nos preparamos para criar um vínculo afetivo e social com a obra. Tal vínculo transforma o nosso corpo, assim como transforma nosso modo de pensar. 

A postura “cortem as cabeças”, por vezes adotada pelos críticos, deveria se transmutar, deveria ser uma metamorfose ambulante: ao invés de temer a arte contemporânea, devemos (des)ocupá-la, abrindo espaço para a diferença, para as negras e os negros, para os povos indígenas como engajadores e sujeitos ativos do debate, não só como nobres e ultrapassados personagens de exposições de cunho etnográfico, espalhadas pelo país. Tanto os galeristas quanto os museus deveriam estar mais abertos ao protagonismo da diversidade. 

Seria, então, o título “politicamente correto” o mais adequado a se empregar quando falamos desse cenário potencial de empoderamento? Curiosamente, e tragicamente, a expressão “politicamente correto” fez parte essencial do discurso do norte-americano Donald Trump, usada para energizar a classe trabalhadora (branca) e os extremistas do país, que estavam cansados de ter que “exercitar seu respeito” por negros, imigrantes, latinos, ou muçulmanos. Mesmo no contexto da arte, talvez seja preciso repensar o uso desta expressão, pois, se é assim que ela tem sido usada, como um cansaço proveniente do autopoliciamento de seres privilegiados, prefiro continuar lutando para que, sim, sejamos ao menos politicamente corretos, pois estamos longe de sê-lo. Mesmo nesta Bienal, que salientou a representação da diversidade, os indígenas, entre os artistas selecionados, eram poucos. Protagonismo não é alcançado através de mera visibilidade. 

Talvez os comentários da crítica fossem até coerentes se já tivéssemos chegado no tempo em que fosse regra, e não exceção, termos negros e indígenas tanto como produtores quanto como historiadores, curadores e críticos, contestando a arte feita pelos brancos sobre os seus povos. Esse é o caminho da descolonização da alma, descolonização de nossa mentalidade “judicial” quando se lida com arte, e também fora dela. Enquanto esse “era uma vez” urgente    que tarda    não chega, prefiro continuar olhando obras de arte contemporâneas para além da casca: para sua pele, para sua fala.

 

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