Revista do Vestibular da Uerj
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Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Artigos

Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, por Eliane Waller

Ano 11, n. 30, 2018

Autor: Eliane Waller

Sobre o autor: Eliane Waller é doutoranda em Teoria da Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestra em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela mesma universidade, leciona no Ensino Médio do Colégio Qi, do Colégio Fernandes Vidal e do Colégio Estadual Almirante Tamandaré.

Publicado em: 15/03/2018

Uma das leituras solicitadas para o vestibular da UERJ em 2018 foi Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. De esplendor singular, este auto de Natal, escrito entre 1954 e 1955, apresenta temática regionalista. É considerado obra-prima do poeta pernambucano, sobretudo pela profundidade e beleza do texto. 

É fundamental estabelecer, no universo do Ensino Médio, que tanto carece, na maior parte das escolas, de um contato maior entre o jovem e a literatura, a possibilidade de reflexão acerca da problemática da seca e seus desdobramentos para o homem nordestino. Não é missão fácil. Adentrar a dimensão de um espaço de opressão e sofrimento causados pela inépcia de governos, que abandonam seres ao seu próprio destino, e traduzir tal realidade para a dimensão urbana de uma metrópole, é tarefa que demanda sensibilidade e astúcia. Além disso, o conhecimento de aspectos políticos, sociais e culturais que envolvem a obra torna-se condição prévia para a compreensão de um cenário que lida com os extremos da situação a que os personagens são constantemente submetidos. 

Coube ao professor Victor Hugo Adler Pereira, do Instituto de Letras da UERJ, a condução da palestra que trouxe aos candidatos a oportunidade de caminhar pelos nem sempre fáceis caminhos da linguagem de João Cabral de Melo Neto, descobrindo, simultaneamente, a singularidade do que o poeta imaginou e traduziu acerca da história do retirante Severino. De forma elegante e oportuna, o professor Victor Hugo ressaltou a importância do Departamento de Seleção e  da universidade pública. Destacou, ainda, o fato de que a universidade não se constrói apenas e unicamente com alunos e professores, mas com a adequada manutenção de recursos técnicos e humanos, a fim de que todo o processo educacional ocorra com a qualidade que é necessária para a construção de uma sociedade mais justa.

Ao adentrar o espaço cabralino, referiu-se, inicialmente, ao ano de sua publicação, 1956, década de 50, portanto, o período em que se acirraram as discussões sobre a questão agrária. A distribuição de terras para a agricultura era injusta e desigual, realidade que, ainda hoje, não se mostra diferente, tendo em vista a própria configuração do nosso Congresso, que, sessenta anos depois, ainda é composto por uma bancada ruralista, detentora dos grandes latifúndios brasileiros. Lamentavelmente, segundo o professor, a imagem que se passa, através da televisão, em propagandas pagas por essa bancada, é a de que “o importante é o agronegócio”. E, por que isso ocorre? Porque, até hoje, no Brasil, existem os tais latifundiários, proprietários de imensas fazenda de soja, por exemplo, que alimentam o gado europeu, em detrimento dos trabalhadores brasileiros.

Morte e vida severina é uma intervenção cultural, um ponto de discussão, dentro de um  debate que ocorria nos 50 e foi interrompido pelo golpe civil-militar, apoiado por famílias dos grandes produtores rurais, sobretudo no Nordeste. Algumas delas, inclusive, que ainda aparecem no cenário político, perpetuando um statu quo de autoritarismo e exploração. Segundo o professor Victor Hugo, não é coincidência que o livro de João Cabral de Melo Neto seja um Auto de Natal pernambucano. João Cabral de Melo Neto, diplomata, com consistente formação intelectual, era muito crítico em relação às questões socioeconômicas do Brasil e, evidentemente, conhecia muito bem as agruras de seu estado, dentre elas a distribuição de terras. Foi exatamente lá que se concentrou grande parte da agitação em torno da questão da reforma agrária, sobretudo, pela valente luta das Ligas Camponesas, organizações que tinham por principal objetivo livrar, aos poucos, o camponês, com sua condição miserável de vida, do domínio do latifundiário. Através de intensa atuação política na luta pelos direitos dos trabalhadores rurais e pela distribuição de terras, as ligas expandiram-se pelos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro, mas suas lideranças foram severamente reprimidas pelo golpe de 64.

João Cabral de Melo Neto escreveu alguns poemas que acompanham e precedem Morte e vida Severina, dentre os quais, “Cão sem plumas”, escrito em 1950, em Barcelona. Através de linguagem depurada, o poeta traz a imagem do rio Capibaribe, sujo, cheio de detritos e margeado pela miséria dos ribeirinhos, homens-caranguejo cinzentos, que também são cães sem pelos ou plumas. O professor Victor Hugo destaca o fato de o rio trazido pelo poeta não ser aquele de águas cristalinas, com campos que o cercam; ao contrário, através de um deslocamento, próprio da linguagem cabralina, o escritor traz o cão destituído de qualquer nobreza, de qualquer adorno – não há plumas.  Assim como no poema “O rio, ou relação de viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade de Recife”, escrito pouco depois de “O cão sem plumas”, o escritor apresenta o crescimento das usinas de cana-de-açúcar, as privações por que passam os retirantes. E é o Capibaribe quem vai narrar sua trajetória, por onde irá passar, discorrendo sobre a geografia física e humana, até chegar ao mar.

Morte e vida Severina tem um subtítulo, “Auto de Natal Pernambucano”, que nos remete à tradição medieval ibérica em que a designação “auto” destinava-se a composições dramáticas. É, segundo o professor Victor Hugo, uma transição por que passa João Cabral, em relação à sequência dos três poemas citados: inicialmente, o rio é descrito; depois, faz um poema com o rio falando e, por último, uma peça com muitas pessoas se apresentando e falando. No texto, o retirante nos diz que ele acompanha o percurso do rio, do sertão a Recife – típica migração rural -, a ida para o litoral, em busca de melhores condições de vida e a apresentação de todos os percalços por que ele passa: a visão da morte, ao longo do caminho, a fome, as doenças, o abandono, a seca e, ao chegar à cidade, a mesma realidade de exclusão e abandono.

Morte e vida Severina foi publicado em livro chamado Duas águas, no qual João Cabral de Melo Neto escreve a orelha, mas não a assina. O autor cita duas águas: a de um poema para reflexão, e de poemas para serem falados em voz alta. Ou seja, na primeira parte, ocorre a sofisticação da linguagem, a elaboração da reflexão; na segunda, o escritor coloca Morte e vida Severina e outros poemas em voz alta, fazendo, segundo o professor Victor Hugo, uma ligação com a vertente de 22, da primeira fase do Modernismo, que abre a porta para o uso coloquial da linguagem. João Cabral de Melo Neto anuncia que seguirá esta linha, mas, na verdade, ainda se percebe enorme sofisticação, o que leva ao poeta a ser colocado na geração de 45. É sabido que, por questão didática, são elencadas três gerações: na primeira, a experimentação, a ruptura, a linguagem chocante; na segunda, maior comunicabilidade com o leitor, sobretudo porque a prosa reina. Na terceira, por fim, aparecem escritores sofisticados na forma, mas integrados à linguagem regional e, nesse sentido, muito parecidos com o romancista Guimarães Rosa.

Por que um auto? Segundo o professor Victor Hugo, o auto é um dos subgêneros dramáticos. São peças de teatro feitas com finalidade religiosa, na Idade Média e no Renascimento. Apresentam conotações populares e didáticas, mostrando sempre lições sobre a vida. São encenadas, muitas vezes, em frente à igreja. Na Inglaterra, as pessoas se deslocavam para ver as encenações. João Cabral cria um auto de Natal, mas não um Natal geral, e sim específico, pernambucano. Um auto que tem a ver com a morte, pois, em vez de nascimento, são apresentadas as vidas que se perderam, em decorrência do sofrimento que a seca impõe àquela população: por fome, por emboscada, ou por velhice antes do trinta. O sertão e a morte andam juntos ao longo do rio, que também sofre e morre como os retirantes.

Severino. Por que este nome? O nome, muito comum no Nordeste, tem a ver com a palavra “severo”. É algo, assim como o cão acima citado, sem enfeite, sem ornamentos, sem plumas, em fuga constante da seca e da fome: 

— O meu nome é Severino,

como não tenho outro de pia.

Como há muitos Severinos,

que é santo de romaria,

deram então de me chamar

Severino de Maria;

(...)

Somos muitos Severinos

iguais em tudo na vida:

na mesma cabeça grande

que a custo é que se equilibra

O texto apresenta muitas remissões culturais. O nome dele é Severino e não tem sobrenome, ou seja, não há registro civil, só o nome dado na igreja, fato bastante comum, ainda hoje em algumas regiões mais pobres do Brasil. Severino de Maria. Por que o nome dele é o mesmo de tantos severinos? Porque Maria é nome de santo. No entanto, ele é Severino de Maria e de Zacaria, certamente o  nome de um coronel para quem o retirante trabalhava no lugar de onde ele veio, algo também muito frequente. É como se Severino fosse posse de seu patrão, o que não deixava de ser verdade. Ao abordar tais questões, João Cabral de Melo Neto discorre sobre duas forças que pautam a região: o coronelismo e a Igreja. Ambas exercem profunda influência na vida de cada um desses retirantes que de nada dispõem e com ninguém contam, para atenuar a vida sofrida e dramática no meio da seca, sem alternativas de melhora.

O percurso dele contra a seca e ao longo de sua caminhada demonstra que o que interessa não é conhecer somente esse Severino; a personagem representa, metonimicamente, outros tantos severinos cuja vida se apresenta com a mesma caracterização (“iguais em tudo na vida”). A sua identidade é anulada, uma vez que ele alegoriza algo que é maior do que sua individualidade, chegando a ter seu nome adjetivado já no título do auto. Metaforicamente, a vida do rio apresenta uma aproximação com a do retirante, em virtude da fragilidade que ambos apresentam e o sofrimento que a eles é impingido. Ao passar pelas terras, Severino reflete acerca da morte das pessoas: seria ela matada ou morrida?

— Desde que estou retirando

só a morte vejo ativa,

só a morte deparei

e às vezes até festiva;

só a morte tem encontrado

quem pensava encontrar vida,

(...)

_  Como aqui a morte é tanta,

 só é possível trabalhar

nessas profissões que fazem

da morte ofício ou bazar.

Ou seja, ao longo de seu percurso, o encontro de Severino com a realidade do latifundiário que manda matar o retirante que sonha em ter uma terra para si, bem como com as mulheres que trabalham como carpideiras, com os coveiros e as cruzes. Assim se configura toda a primeira parte do auto de João Cabral de Melo Neto: a terra dura, o sol inclemente, a morte prematura, a fome. Quando se aproxima do litoral, a esperança de Severino é que a morte se abrande, mas não é isso que ocorre.

Decerto a gente daqui

jamais envelhece aos trinta

nem sabe da morte em vida,

 vida em morte, severina;

 e aquele cemitério ali,

 branco na verde colina

decerto pouco funciona

e poucas covas aninha.

Se, num primeiro momento, sua esperança era a de renovação da vida, ao chegar à capital, a esperança se desvanece. O cenário se distingue das terras secas de pedra do sertão; no entanto, agora, aparecem os mangues de onde os retirantes retiram o sustento. Por isso, os homens-caranguejo. Por isso, a marginalização, que ainda caracteriza o homem que sai do interior em direção ao litoral. Diante da realidade que não se modifica, a de ter vida que é morte, a única saída é o suicídio.

A solução é apressar

a morte a que se decida

e pedir a este rio,

que vem também lá de cima,

que me faça aquele enterro

que o coveiro descrevia:

caixão macio de lama,

mortalha macia e líquida

O seu percurso, marcado pelas mortes vistas ao longo da trajetória e semelhante a um rosário, chega ao fim. No entanto, não é um fim redentor. É o fim de um retirante que perde as esperanças, pois chega à conclusão de que sua vida será marcada eternamente pela sina que Deus lhe reservou. Mas, no caminho, aparece José, morador do mangue, com quem Severino estabelece um diálogo sobre a morte, sempre anunciada, ainda que protelada, como para marcar a vida do retirante com o seu sofrimento particular. A conversa é interrompida com o nascimento do filho de José, em momento epifânico que remete ao nascimento de Jesus – o nome do pai da criança não é aleatório. Amigos, parentes e vizinhos dos pais levam presentes, como na história dos reis magos. Ao todo, dezesseis presentes, quase todos precedidos pela frase: Minha pobreza é tal.

E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também chama vida,

ver a fábrica que ela mesma,

teimosamente, se fabrica,

vê-la brotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

O nascimento da criança ratifica duas realidades: a primeira, trazida pelas previsões das ciganas, de que a vida da criança não será diferente do que a dos pais, portanto, de pobreza e luta; a segunda, diz respeito à insistência de a vida acontecer, mesmo que a morte e a miséria estejam presentes na vida das pessoas. Assim, através da palestra do professor Vitor Hugo acerca do texto de João Cabral de Melo Neto, os alunos puderam manter contato com uma das maiores obras da literatura brasileira. Mais uma vez, reafirma-se o compromisso da escola e da universidade pública em trazer para o aluno o que de mais expressivo temos em nossa cultura, em nossa arte.

 

 

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