Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 02/05/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Artigos

A responsabilidade da ficção: o caso do romance de John Boyne, por Gustavo Bernardo

Ano 12, n. 32, 2019

Autor: Gustavo Bernardo

Sobre o autor: Gustavo Bernardo é professor da UERJ desde 1978. Atualmente, dirige o Departamento de Seleção Acadêmica da UERJ (DSEA). Este artigo é sobre o livro escolhido para o tema da redação do Vestibular Estadual 2024.

Publicado em: 11/12/2023

A escolha, através de uma consulta pública, do romance O menino do pijama listrado (2006), do escritor irlandês John Boyne, como o livro indicado para a prova de Redação do Vestibular 2024 da UERJ, gerou algumas críticas. Pretendo discuti-las e, a seguir, contestá-las.

As críticas afirmam que escolas e universidades não devem ensinar sobre o Holocausto através desse romance, entre outras razões, porque o volume conteria imprecisões históricas. Os principais personagens, os meninos Bruno e Shmuel, por exemplo, ambos com nove anos de idade e nascidos no mesmo dia, do mesmo mês, e do mesmo ano, não podiam conversar através da cerca que separava a casa do comandante do campo de concentração de Auschwitz, se todas as cercas eram duplas e eletrificadas. De fato, a conversa quase diária entre os dois meninos, um de cada lado da cerca, sem que fosse observada por nenhum soldado do campo, seria improvável, assim como seria igualmente improvável que Shmuel, “o menino de pijama listrado” do título, tivesse tempo livre para bater papo com um menino alemão.

Outra crítica observa que nem crianças haveria naquele campo de concentração, porque as crianças pequenas seriam todas assassinadas assim que chegavam aos campos. Entretanto, de acordo com os registros dos próprios nazistas, em 30 de agosto de 1944 havia 619 crianças vivas, do sexo masculino, de um mês a 14 anos de idade, em Auschwitz-Birkenau. Em 14 de janeiro de 1945, 773 crianças do sexo masculino foram registradas como vivas, das quais 52 tinham menos de 8 anos de idade. Ainda que, todo dia, muitas crianças fossem realmente assassinadas nas câmaras de gás, algumas eram usadas como mensageiras dentro do acampamento, enquanto outras chegaram a servir em filmes de propaganda dos campos, nos quais se mostravam diversas crianças brincando alegremente.

Critica-se, ainda, que uma tragédia dessa magnitude seja abordada com olhos infantis, porque assim se minimizam as graves consequências da Endlösung, a solução final dos nazistas para a questão judaica. O que mais incomoda os críticos, porém, é que a história seja narrada sob a perspectiva do menino alemão, filho do comandante do campo, e não sob a perspectiva do menino judeu. Incomoda que a história seja narrada na perspectiva do filho dos opressores, e não do filho das vítimas, ele também vítima. O protagonista Bruno ainda se mostra ignorante do que ocorre, quer na Alemanha, quer no campo de concentração comandado pelo seu pai, situado na Polônia. Ele só pensa nos amigos que deixou em Berlim e no novo amigo que encontrou em Auschwitz – o menino do pijama listrado –, embora não consiga pronunciar direito nem o nome do campo, nem a palavra “líder” em alemão: Führer. Manifestando o desejo de ser um explorador quando crescer, o que sugere que ele é uma criança curiosa, Bruno despreza, contudo, os livros de História que mostram a Alemanha como a nação superior, preferindo, no lugar, ler apenas romances de aventuras.

As críticas ao livro dobram de intensidade quando se referem à adaptação cinematográfica do romance, lançada em 2008 e dirigida por Mark Herman, com Asa Butterfield no papel de Bruno e Jack Scanlon no papel de Shmuel. Se o livro já era um best-seller, a história ganhou um destaque ainda maior com o filme, o que decerto aumentou a indignação daqueles que não gostaram da abordagem.

Que eu tenha lido, apenas o escritor brasileiro Márcio Pitliuk, especialista no Holocausto, com vários estudos publicados a respeito, também considera o filme muito ruim – mas ressalva que, para ele, o romance é bom. Eu assisti ao filme primeiro, só depois li o livro. Gostei muito do filme, embora eu seja um pouco suspeito: gosto de melodramas e o filme carrega nas tintas melodramáticas, provocando rios de lágrimas nos espectadores que gostam de chorar – como este que vos fala, por exemplo. Depois, li o livro e gostei mais ainda. Para mim, o filme já me pareceu bom, enquanto o romance me pareceu ainda melhor – o que, de resto, costuma acontecer: o livro original ser melhor do que o filme que o adapta.

Apesar de as observações sobre as imprecisões históricas serem em parte procedentes, importa observar que o romance se baseia em dados da realidade – como o faz, aliás, qualquer romance histórico. O comandante do campo e pai de Bruno, que se chamava Ralf, é inspirado no verdadeiro comandante do campo de Auschwitz, Rudolf Höß. Ele de fato viveu, com esposa e cinco filhos, numa casa colada ao muro do campo. Depois da guerra, foi julgado em Nuremberg e na Polônia, sendo condenado à morte por enforcamento. A sentença foi executada, numa espécie de justiça mórbida, na entrada de Auschwitz. Durante o julgamento, Höß se descreveu como um homem de “grande virtude e obediência militar”, com “grande senso de dever”. Também explicou que os filhos lhe perguntavam “quem eram aquelas pessoas” no campo, quando ele lhes respondia que os judeus não eram pessoas, mas sim Untermenschen, isto é: sub-humanos. Decerto motivado por esse testemunho, John Boyne, no capítulo 5 do romance, fez Bruno perguntar ao pai quem eram aquelas pessoas, todas com a mesma roupa (o mesmo pijama listrado), do lado de fora da nova casa. O pai e novo comandante do campo responde que “aquelas pesssoas... bem, na verdade elas não são pessoas, Bruno”.

É difícil haver denúncia mais expressiva da alienação, da coisificação, da desumanização promovida pelos nazistas em relação às suas vítimas preferenciais, a saber, todos os judeus.

As críticas ao romance se intensificam, porque ele foi lançado como uma obra infanto-juvenil, ganhando prêmios nessa categoria. Os críticos questionam a adoção desse romance nas escolas – consequentemente, a indicação de leitura para o vestibular –, porque todos os alemães que não fossem oficiais nazistas poderiam alegar inocência. Segundo esses críticos, os estudantes, ao lerem sobre um menino alemão fazendo amizade com um prisioneiro judeu da mesma idade, poderiam acreditar que os campos de concentração não eram assim tão maus. Essa leitura favoreceria um certo revisionismo histórico da extrema-direita, que questiona, do número de judeus assassinados – não seriam seis milhões de mortos, mas “apenas” uns quatro milhões –, à própria realidade histórica do Holocausto.

Passo agora a contestar as críticas apresentadas. Primeiro, explico porque considero adequado indicar esse livro para a prova de Redação do Vestibular 2024 da UERJ, assim como considero adequado que ele seja adotado, em todos os níveis de ensino, tanto nas aulas de Literatura quanto nas aulas de História.

O Holocausto foi o acontecimento crucial do século XX, mostrando como todo o conhecimento, progresso e ciência da humanidade não tornou a humanidade mais evoluída. O progresso moral se encontra anos-luz atrás do progresso científico. Rediscuti-lo é um imperativo pedagógico e político, inclusive para combater o revisionismo ignorante da extrema-direita. Restringir essa discussão apenas à responsabilidade dos nazistas e do povo alemão implica tomá-los como bode expiatório da violência presente em todos os seres humanos. O problema do Holocausto não é um problema apenas dos alemães e dos judeus. O Holocausto ainda é um problema de e para toda a humanidade, como o comprova o retorno das técnicas nazistas de propaganda, no Brasil e no mundo. O final dramático do romance, com o assassinato tanto de Shmuel quanto de Bruno na câmara de gás, deixa claro que os campos de concentração eram, na verdade, campos de morte, portanto, terrivelmente maus – para as vítimas judias, é óbvio, mas também para a alma dos algozes alemães.

Nos últimos anos, as provas de Redação do Vestibular da UERJ têm partido de romances para apresentar, aos candidatos, questões-tema. Cada candidato pode abordar a questão-tema pelo viés que tiver mais a ver com a sua própria opinião a respeito, desde que apresente argumentos que a sustentem. É essencial, para esse tipo de proposta, que a questão-tema parta de um texto literário, quer porque a literatura faz girar todos os saberes, exigindo sempre uma leitura interdisciplinar, quer porque a literatura faz conversar a razão com a emoção, ajudando em muito a que cada leitor pense sobre o seu sentimento e, assim, construa uma opinião de fato própria.

Não há um gabarito fechado. Não há uma resposta única. Importa, antes, que o candidato tenha uma opinião e a defenda com argumentos. Já demonstramos outras vezes que qualquer pessoa escreve muito melhor quando defende uma opinião realmente sua, e não a opinião que ela acha que querem que ela escreva. Por isso, as críticas ao livro e ao filme que aqui elencamos podem fazer parte das redações dos candidatos, desde que sustentadas com argumentos e corretamente relacionadas ao livro indicado. Os professores que corrigem a redação sabem bem que o seu trabalho é avaliar, tão somente, a qualidade dos argumentos dos candidatos, não se a opinião deles é “correta”. É irrelevante que os candidatos gostem ou não gostem do livro indicado, por qualquer que seja a razão.

Em segundo lugar, e essa é a refutação mais importante que me cabe fazer, considero que os críticos ao livro e ao filme desconsideram que ambas as obras são obras de ficção. O romance não é um livro didático de História, assim como o filme não é um documentário sobre o nazismo. No romance, essa condição é reforçada no título original em inglês: The boy in the striped pyjamas: a fable. O subtítulo a fable – em português, “uma fábula” – reforça que o romance é uma ficção. O compromisso maior do escritor é menos com a realidade e mais, muito mais, com a problematização ou a recriação da realidade. Nem o romance nem o filme podem se dizer realistas – ainda bem. Já disse algures que realismo literário é uma contradição nos próprios termos. Nesse sentido, deixa de ser um defeito a conversa de Bruno e Shmuel através da cerca do campo, porque, entre os objetivos do romance e do filme, não se encontrava retratar fidedignamente um campo de concentração nazista.

O romancista, primeiro, e o diretor, depois, não retrataram, mas criaram essa conversa entre os meninos, para melhor representar uma possibilidade e uma esperança de paz e concórdia dentro do próprio horror. Pela mesma razão, a coincidência de Bruno e Shmuel terem nascido no mesmo dia, mês e ano não é uma mera coincidência, mas sim a representação proposital de gêmeos simbólicos, artificialmente tornados opostos por conta do preconceito, do medo e da guerra. Se aquelas crianças podiam se comunicar e brincar através de uma cerca de arame farpado, por que os adultos não poderiam?

A opção pela perspectiva de Bruno, uma criança de nove anos de idade, não implica a minimização das graves consequências da Endlösung. Os olhos de Bruno são metaforicamente olhos fenomenológicos, capazes de ver o fenômeno como se o vissem pela primeira vez, e não contaminados pelo passado, pelo rancor e pelo ressentimento. Os olhos de Bruno são, portanto, os olhos da ficção, capazes de abrir os nossos próprios olhos para ver e sentir acontecimento tão dantesco de outra maneira. Essa outra maneira, no meu entender, não minimiza a violência absurda da solução final nazista, mas, ao contrário, a reapresenta para nós outros que não vivemos nem sofremos naquela época.

Que os críticos não desejem que a história seja narrada sob a perspectiva dos opressores significa que eles não querem que se faça literatura desse acontecimento. Ora, não pode haver perspectiva proibida para a literatura de ficção. Perspectivizar é de todas talvez a tarefa mais nobre da literatura, porque ela nos permite olhar o mundo pelos olhos do outro – mesmo que o outro seja um monstro, ou o filho de um monstro. Sabemos muito bem que olhar pelo olhar do outro é extremamente difícil – por isso mesmo, precisamos tanto da literatura.

Rubem Fonseca já nos permitiu acompanharmos os acontecimentos pelos olhos de um assassino profissional, em O seminarista. Antes dele, Guimarães Rosa nos fez olhar o mundo pelos olhos do seu Riobaldo Tatarana, em Grande sertão: veredas, apesar de ele ser também, pela ordem: jagunço, estruprador e assassino. Antes dos escritores brasileiros, o inglês Graham Greene, católico, escolheu o personagem Maurice Bendrix, um ateu, para narrar o seu maravilhoso Fim de caso, que também traz a Segunda Grande Guerra como pano de fundo.

O próprio escritor, John Boyne, me ajuda nessa contestação àquelas críticas a seu livro, ao escrever e publicar, em 2022, o romance Por lugares devastados. Nesse romance, uma continuação de O menino do pijama listrado, a narradora é Gretel, justamente a irmã de Bruno. Ela sobreviveu à guerra, mas não sem dor, sofrimento e culpa. Gretel, já com 91 anos de idade, nos conta como fugiu da Alemanha com a mãe, e como passou toda a vida tentando esconder que era a filha do monstro de Auschwitz. Esse esforço se dava quer para não sofrer retaliações, quer porque a cada ano aumentava a sua culpa por ter participado, ainda que de maneira passiva, do Holocausto.

O primeiro capítulo de Por lugares devastados se chama “A filha do diabo”. A primeira frase já é um soco no estômago do leitor: “se todo homem for culpado por todo bem que ele não fez, eu passei a vida inteira convencendo-me de que sou inocente de todo mal”. Ela não consegue se convencer, mas convence o leitor da sua humanidade, não apenas por exibir as suas fraquezas, mas, principalmente, pela sua luta contra a herança que lhe deixaram o passado e o pai.

Já na última página do romance, Gretel é presa, não por ter sido cúmplice em Auschwitz, quando tinha somente 12 anos de idade, mas sim por ter matado, já muito idosa, um homem que espancava e aterrorizava a esposa e o filho. Deitada na cela, Gretel sonha em morrer para poder se reencontrar com o irmão: “quando eu puder dizer a ele o quanto eu lamento. Quando puder dizer a todos eles o quanto eu lamento”. Gretel sente que finalmente matou o Monstro – que finalmente matou o fantasma do pai, na pessoa daquele marido e pai abusivo.

No “Pós-Escrito”, John Boyne diz que o seu novo romance é “sobre culpa, cumplicidade e luto, um livro que se propõe a examinar até que ponto uma jovem pode ser culpável, dados os fatos históricos que se desdobram ao seu redor, e se tal pessoa alguma vez pode se purificar dos crimes cometidos pelas pessoas que ela amava”. O escritor reconhece que “escrever sobre o Holocausto é um trabalho complicado e qualquer romancista que o aborda assume um enorme fardo de responsabilidade. Não o fardo da informação, que é tarefa da não-ficção, mas o de explorar verdades emocionais e experiências humanas autênticas, enquanto lembra que a história de cada pessoa que morreu no Holocausto merece ser contada. Por todos os erros que cometeu na vida, por toda a sua cumplicidade com o mal e por todo o seu arrependimento, acredito que a história de Gretel também merece ser contada. Cabe ao leitor decidir se vale a pena lê-la”.

Em 2009, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie proferiu uma palestra que se tornou famosa, intitulada O perigo de uma história única. Ela se referia ao perigo de as crianças negras lerem apenas histórias com príncipes e princesas brancas, como se os negros, desde crianças, precisassem se acostumar a serem vistos como menos do que humanos. O alerta de Chimamanda serve para toda e qualquer narrativa. Não se pode admitir contar apenas um único lado da história. Considerar apenas a versão dos algozes – no nosso caso, os nazistas – é um erro, sem dúvida. Entretanto, também é um erro considerar apenas a versão das vítimas – no caso, os judeus.

Os judeus não são e não podem ser vistos como sub-humanos, como infra-humanos. Eles foram, são e serão sempre humanos. Por outra lógica, os nazistas não são e não podem ser vistos nem como Übermenschen, ou seja, super-homens – nem apenas como monstros. Eles foram, infelizmente, humanos também. Considerá-los menos do que humanos contribui para não enxergarmos o ovo da serpente dentro do corpo de cada um de nós. Como diz o professor Gregory Stanton, especialista em estudos sobre genocídio, “o Holocausto nazista está entre os genocídios mais perversos da história. Mas o bombardeio de Dresden pelos Aliados e a destruição nuclear de Hiroshima e Nagasaki também foram crimes de guerra”.

Em última instância, a guerra é tão humana quanto absurda. Não há guerra limpa. Pode haver guerras inevitáveis, mas não há guerra justa. As guerras atuais, com mísseis e drones, são tão sujas e tão injustas, talvez apenas mais covardes, quanto as guerras antigas. Em todas as guerras, ainda mais no nosso tempo, quem declara a guerra não vai para a frente de batalha – apenas manda os outros matarem quem não conhecem, ou serem mortos por quem não os conhece.

Cabe à ficção contar todas as histórias, sob todos os pontos de vista. Cabe ao professor, principalmente o de literatura, facultar o acesso de seus alunos a todas as histórias, sob todos os pontos de vista.

 

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