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Ano 12, n. 32, 2019
Autor: Gustavo Bernardo
Sobre o autor: Gustavo Bernardo é professor associado da UERJ e Editor Executivo da EdUERJ.
Publicado em: 25/09/2024
EU SOU PROFESSOR DA UERJ HÁ 46 ANOS. Gostaria de comentar a longa ocupação de estudantes no campus Maracanã da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no segundo semestre de 2024. Por quê? Porque vejo esse acontecimento como sintoma de problema mais grave.
O movimento dos estudantes exigiu a revogação do Ato Executivo da Reitoria que limitava valores da bolsa de vulnerabilidade social, criada, de maneira provisória, para conter a evasão de alunos no período da pandemia. A exigência se acompanhou, desde o primeiro instante, da palavra de ordem “fora Gulnar”, sem levar em conta que a Reitora, eleita em pleito legítimo, estava no sétimo mês do seu mandato.
Apenas essa palavra de ordem já abalaria as bases da democracia universitária, conquistada a duras penas. No entanto, para piorar, o movimento daqueles estudantes também era contra a direção do Diretório Central de Estudantes e os representantes dos Centros Acadêmicos – portanto, eles não representavam ninguém a não ser eles mesmos.
Quais eram as motivações dos manifestantes? Suponho que pelo menos duas: a primeira, prosseguir com a luta pela hegemonia no campo da esquerda, flagrante na campanha eleitoral do ano anterior; a segunda, defender a gestão anterior, que implantou a bolsa de vulnerabilidade social.
Essa crise poderia ter sido evitada? Há quem diga que sim: bastava a Reitora não publicar o Ato Executivo que gerou a ocupação, deixando o problema nas costas do Governo do Estado. Quando a universidade não tivesse mais dinheiro, deixaria de pagar a bolsa de vulnerabilidade social e apontaria o dedo para o Palácio Guanabara.
No entanto, a crise estava contratada desde o começo, por três razões: uma, o ex-Reitor não se conforma com a sua derrota (ou melhor, com as suas derrotas); duas, o machismo entranhado na universidade não aguenta uma Reitora mulher; três, a origem do problema se encontra no desvio de função que a UERJ promoveu para si mesma.
Que desvio é este? Digamos que a função de uma universidade pública e gratuita é entregar ensino e pesquisa de qualidade para todos os seus alunos, independentemente de classe social, cor, sexo ou religião. Digamos também que a função de uma universidade pública e gratuita não é fazer justiça social, reparar injustiças históricas ou remunerar seus estudantes por quaisquer meios. Caso se aceitem essas premissas, conclui-se que o desvio de função da UERJ começou quando se implantaram as cotas no vestibular, há mais de 20 anos.
Entretanto, antes que me joguem ovos podres, lembro que sempre defendi as cotas. A política de cotas teve o mérito de escancarar o mito liberal da meritocracia; fez a justa fama da UERJ como universidade inclusiva; permitiu que centenas de alunos fossem os primeiros de suas famílias a entrarem na universidade; e expôs as inconsistências do ensino médio, ao revelar estudantes cotistas com desempenho universitário igual ou melhor do que aqueles que entram pela livre concorrência.
Fui defensor das cotas, mas me preocupava, o que pode ser visto em artigos anteriores nesta mesma Revista do Vestibular, que elas se cristalizassem e funcionassem como álibi para manter a desigualdade. Lá atrás, eu dizia: “o sistema de cotas, favorecendo quem foi historicamente desfavorecido pela sociedade, como negros, índios e pobres, ataca as consequências do problema, mas não suas causas. Ao fazê-lo, pode ajudar a perpetuar essas causas negativas, escondendo-as sob a novidade das cotas”.
Talvez por isso o sucesso das cotas tenha estimulado oportunistas de diversas cores, todos ansiosos para surfar na onda da reparação histórica e, assim, ganhar likes, votos e cargos. Esqueceu-se que a lei das cotas as estabeleceu como provisórias: não haveria mais cotas quando o ensino público no Rio de Janeiro deixasse de ser o pior do país.
Ora, o ensino público no Rio de Janeiro continuou tão ruim quanto antes, senão pior ainda. Ao invés de se denunciar esse estado de coisas, promove-se a demanda por mais cotas, sem se notar que a UERJ oferece 45% de suas vagas para as cotas – mas os cotistas não ocupam, em nenhum exame vestibular, nem metade disso.
A gestão do ilustre professor Ricardo Lodi criou a CPVA, ou seja, a Comissão Permanente de Validação da Autodeclaração, na esteira das universidades federais. O adjetivo “permanente”, no nome da Comissão, já indica a desqualificação do princípio da provisoriedade da lei das cotas. Além disso, a CPVA se transforma, pouco a pouco, numa espécie de tribunal racial.
O Artigo 9º da Deliberação que cria a CPVA na UERJ afirma que ela “utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelos candidatos pretos e pardos (negros)”. A exclusividade do critério fenotípico, porém, favorece a que alguns pretos sejam considerados mais pretos do que os outros, no melhor estilo George Orwell.
A mesma gestão, aproveitando a emergência da pandemia, cria a PR-4, a saber, a Pró-Reitoria de Assistência Estudantil. Dessa maneira, entroniza e institucionaliza o assistencialismo como norte político. Nesse espírito, cria a bolsa de vulnerabilidade social. Esta bolsa não apenas se sobrepõe à bolsa para os cotistas, como ainda a enfraquece, uma vez que este novo grupo de bolsistas não precisa passar por todo o rigoroso processo do vestibular de avaliação das cotas, nem precisa apresentar contrapartidas óbvias, como frequência e desempenho acadêmico.
Esta bolsa se cria sem lei que a respalde e sem base orçamentária que a sustente. Como a gestão do ilustre professor Ricardo Lodi perde a eleição (ou melhor, as eleições), deixa uma bomba de retardo para a chapa vencedora. Esta bomba explode no colo de toda a universidade.
Então, apenas a gestão anterior é responsável pela atual crise da UERJ? Não. Seria mais simples se tivéssemos apenas um grupo coeso de culpados, mas a realidade não costuma ser simples. A responsabilidade deve ser dividida com os estudantes que integraram o movimento de ocupação no campus Maracanã da UERJ – mas não somente. Diversas entidades, como a ASDUERJ, jogaram lenha na fogueira, repetindo o slogan “nenhum direito a menos”. Ora, não havia direito algum, nem garantido em lei, nem conquistado em luta política.
Além disso, o slogan “nenhum direito a menos” não se sustenta sozinho – depende do direito que se encontre em questão. Por exemplo, o “direito” à legítima defesa da honra de maridos traídos deixou de ser um direito masculino há algum tempo. Nem mesmo o “direito” à concorrência através das cotas pode ser considerado um direito em si e para sempre, porque a lei que o instituiu estabeleceu seu caráter provisório.
A bolsa de vulnerabilidade social não reforça, antes enfraquece, a política de cotas, por se lançar sem as mesmas exigências e contrapartidas. Em nome da luta por “nenhum direito a menos”, o que se estimula é o desrespeito da administração à coerência, do aluno ao professor, do estudante à instituição, e do cidadão à sociedade. De fato, o movimento dos estudantes primou por esse desrespeito: aos cotistas, aos colegas, aos professores, à universidade, aos mais velhos, às lutas da esquerda, aos trabalhadores da segurança patrimonial da UERJ, por fim, aos trabalhadores da limpeza que precisaram arrumar e limpar tudo, como empregados de adolescentes mimados.
Sempre tive muito orgulho de ser professor. Há 9 anos, a vida reconheceu que eu já tinha uma certa idade, como se diz, e me ofereceu terminar a carreira em cargos de gestão, que tenho assumido também com orgulho. Hoje, entretanto, olho no espelho e vejo um homem amargurado – porque já não se vê mais dentro de sala de aula. O que eu poderia conversar com esse aluno raivoso que ocupa a UERJ e chama todo mundo de fascista, sem saber direito o que é fascismo, nem conhecer a história acadêmica e política daqueles que acusa de fascistas?
Então, o que você defende, me perguntam os poucos que ainda me leem? O que defendo não é fácil de realizar, reconheço – o que não me impede de fazê-lo. Defendo que a universidade pública e gratuita volte a se dedicar, apenas , a entregar ensino e pesquisa de qualidade para todos os seus alunos, independentemente de classe social, cor, sexo ou religião. Não nos cabe fazer justiça social, reparar injustiças históricas ou remunerar nossos estudantes por quaisquer meios. Somos, apenas , professores.
Também porque nos desviamos da nossa função, não conseguimos tempo para nos dedicarmos a resolver os nossos problemas crônicos, como o crescimento desordenado da universidade, os currículos anacrônicos de tantos cursos e a disparidade entre a oferta de vagas e as demandas da sociedade.
Defendo, enfim, que a universidade reaprenda a desconfiar de todos os slogans, mesmo os politicamente corretos, e volte a fazer perguntas e a proteger as perguntas, evitando gritar suas certezas em panfletos, postagens, notas de apoio, notas de repúdio, manifestações e assembleias – quando todos nos tornamos os fascistas que dizemos que os outros é que o são.
Se ainda quiserem em forma de slogan, o que defendo é: nenhuma pergunta a menos.