Inicial » Artigos » QUEM TEM MEDO DA DIALÉTICA? ou Nenhuma pergunta a menos II
Ano 12, n. 32, 2019
Autor: Gustavo Bernardo
Sobre o autor: Gustavo Bernardo é professor associado da UERJ e Editor Executivo da EdUERJ.
Publicado em: 03/02/2025
A RECEPÇÃO DO ARTIGO “NENHUMA PERGUNTA A MENOS”, QUE PUBLIQUEI NA REVISTA DO VESTIBULAR DA UERJ, configura um sintoma da falta que a dialética faz. As reações negativas àquele artigo partiram tanto dos estudantes que participaram do movimento de ocupação em 2024, quanto de alguns professores da universidade.
Reza a ética da Academia, ou rezava, que artigos se retrucam com outros artigos, isto é, com argumentos. Com uma exceção, o meu artigo não mereceu contra-argumentos, mas sim ofensas na rede, solicitações formais de exoneração da minha pessoa e atos de protesto.
O embate argumento versus argumento define o sentido lato de dialética: a arte do diálogo. Em termos mais específicos, a dialética é um método de pensamento e um tipo de discurso que se baseia na contraposição de ideias, a qual, por sua vez, nos conduz à reconciliação de contradições, de modo a se estabelecer uma verdade. Esta verdade, por sua vez, será sempre provisória.
Em termos esquemáticos: o pensamento dialético formula uma tese; a seguir, constrói a anti-tese, isto é, a antítese daquela tese; do confronto honesto entre tese e antítese, chega-se à síntese; a síntese, por sua vez, torna-se uma tese, que gera uma antítese, que nos leva a uma nova síntese, ad infinitum (ou: enquanto conseguimos pensar).
A palavra “dialética” vem do grego; pode-se traduzi-la como “caminho entre as ideias”. Jogando com a palavra, diríamos que a dialética configura uma ética-a-dois. Esses dois (interlocutores) não precisam concordar com tudo – mas devem ler, ouvir e discutir tudo.
A exceção a que me referi acima foi o artigo “Quem são as pessoas necessárias à universidade pública?”, do professor Lincoln Tavares Silva, publicado na Revista Fórum. O artigo do Lincoln é dedicado a criticar o meu artigo. Seria uma honra, se os seus argumentos não fossem ora irrelevantes, ora falaciosos, elaborando apenas tautologias e sofismas ad hominem, ou seja, contra a pessoa.
Lincoln faz uma blague com nossos sobrenomes: Krause e Silva. A blague seria engraçada se a intenção não fosse apenas me desqualificar. Se eu sou Krause, então sou branco – o que, nesse caso, é verdade. Se ele é Silva, então é negro – o que, no caso, também é verdade. O problema é que ser Krause ou Silva, branco ou negro, não nos torna nem mais nem menos qualificados para discutir a questão. O corolário implícito é que, eu, como branco, não deveria falar de um problema que afeta tão somente aos negros.
Esse corolário é uma falácia. O racismo e a desigualdade social se retroalimentam e afetam a todos nós. Somos todos responsáveis por pensar sobre a nossa circunstância.
Em outro trecho, o ex-pró-reitor de graduação afirma que eu, como membro integrante da gestão atual, não poderia publicar, numa Revista da UERJ, um “instrumento de propaganda contrária” à política de cotas. Essa restrição, reconheço, é compartilhada por colegas que participam da atual gestão – o que me deixou, também reconheço, bastante triste.
Sim, participo da gestão da Reitora Gulnar, como editor executivo da EdUERJ – assim como participei das gestões dos professores Ruy, Lodi e Mário. Na gestão desses três Reitores, fui diretor do DSEA, que organiza e aplica o Vestibular da UERJ. Como diretor do DSEA, eu era subordinado ao pró-reitor de graduação – nas gestões de Lodi e Mário, justamente o professor Lincoln Silva.
A subordinação, contudo, não implica subserviência. Lincoln gostava de me chamar, quando eu não estava presente, de “meu zangado”. Não acho que eu fosse “dele”, mas com certeza era um pouco “zangado”: nunca me abstive de criticar ou de escrever sobre o que achasse problemático. Meu senso crítico não adormece quando exerço um cargo, o que não me torna menos leal ou menos competente.
Claro, sempre assino o que escrevo. Por óbvio, nunca falei ou escrevi em nome desta ou daquela gestão. Não tenho a menor vocação para porta-voz ou eminência parda; se eu puder escolher a metáfora, prefiro me considerar um grilo falante.
Também não fiz “propaganda” contra a política de cotas. Antes, no artigo “Nenhuma pergunta a menos”, procurei analisar dialeticamente esta política. Minha análise não seria dialética, como tentam ser meus artigos e também minhas aulas, se eu fosse somente contra ou a favor disto ou daquilo.
Repetindo: a dialética é um método de pensamento e um tipo de discurso que se baseia na contraposição de ideias e na reconciliação de contradições para melhor estabelecer a verdade. Vejamos no caso em tela: a política afirmativa e seus desdobramentos, incluindo a ocupação estudantil em 2024. Nesse caso, eu posso dizer que sou, ao mesmo tempo, a favor e contra, sem que isso implique esquizofrenia.
Escrevi anos atrás, e repeti nesse artigo que gerou a polêmica, que sou a favor da política de cotas, por algumas boas razões, entre as quais:
[1] o bem que fez e faz a um número enorme de pessoas que, de outro modo, não entrariam na universidade;
[2] o bem que fez e faz à própria universidade, tornando-a muito mais inclusiva e diversificada;
[3] o mérito de chamar a atenção de toda a sociedade não apenas da falácia meritocrática do liberalismo, como da responsabilidade de todos nós na manutenção dos privilégios e na consequente injustiça social.
No entanto, também sou contra a política de cotas, em particular no estágio em que ela se encontra agora, por razões igualmente boas, entre as quais:
[1] a política de cotas ataca apenas as consequências do problema, facilitando a que se “esqueça” de se enfrentar as causas;
[2] o sucesso da política de cotas gera o fenômeno dos “surfistas” de cotas, ou seja, daqueles que as defendem menos por razões sociais, mais por ambição eleitoral;
[3] o sucesso da política de cotas provoca o afã de ampliar as cotas para outros grupos, “ignorando” que a UERJ oferece 45% das suas vagas no vestibular pelas cotas, mas nunca preencheu nem metade disso;
[4] a energia dedicada à política de cotas (e a surfar nas suas ondas) desvia a universidade das suas obrigações acadêmicas, impedindo-a de resolver problemas crônicos, como o crescimento desordenado da universidade, os currículos anacrônicos de tantos cursos e a flagrante disparidade entre a oferta de vagas e as demandas da sociedade.
Onde se encontra a dialética? Ora, cada argumento apresentado a favor da política de cotas constitui uma tese inicial, que se deve articular às demais teses. Cada argumento apresentado contra a política de cotas constitui uma antítese que, por sua vez, se deve articular às demais antíteses.
Mas, onde se encontra a síntese? A síntese, no meu entender, se encontra na admissão de que a política de cotas não enfrenta o problema da desigualdade social e racial deste país, apenas o reconhece e o ameniza – o que não deixa de representar um avanço.
O avanço, porém, não é suficiente, porque esse país tem o péssimo hábito de perdoar e anistiar senhores de escravos, capitães do mato, bandeirantes genocidas, generais assassinos e presidentes milicianos. A política de cotas, então, funciona antes como um potente analgésico, que ameniza a dor mas não cura a doença.
Analgésicos são necessários, concordo. O abuso de analgésicos, entretanto, pode gerar muito mais dor, como bem sabe quem já sofreu de enxaqueca. Esse raciocínio, aliás, é um exemplo clássico de dialética, mostrando a transformação de quantidade em qualidade – no caso, qualidade negativa.
A síntese se encontra na admissão de que cabe à universidade, sim, estudar o problema da desigualdade social e racial deste país, mas não assumir a sua solução. Por quê? Porque corre o risco de camuflar as causas da desigualdade, ao mesmo tempo em que posterga o enfrentamento dos problemas da própria universidade.
Em resumo: a síntese são sempre sínteses. A síntese é sempre plural. A pluralidade, como condição da democracia, sente falta do diálogo permanente entre as pessoas, as ideias e as contradições que nos cercam, nos deformam e nos formam. A democracia, portanto, sente muita falta da dialética.