Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 28/03/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Como posso não errar?

Gustavo Bernardo

O verbo “errar” tem alguns sentidos interessantes. Pode significar: cometer erro ou engano, como em “errei a questão da prova”; viajar sem destino certo, como em “ela errava pelo mundo à busca da verdade”. O segundo significado nos sugere que nem sempre errar seja negativo, ou seja: que é preciso errar para acertar. Nesse caso, a melhor pergunta seria: como posso errar bem? Porque há duas espécies de erro: “o erro a favor da gente” e “o erro contra a gente”.

O primeiro erro é essencial ao processo de conhecimento. A ciência precisa desse tipo de erro, se ela busca a sua verdade por meio do popular “ensaio-e-erro”. Para encontrar o antídoto para determinado veneno, por exemplo, o cientista precisa experimentar diferentes combinações e misturas, testando-as, em doses controladas, em cobaias animais e humanas, comparando reações e efeitos, até chegar ao antídoto mais eficiente e menos contraindicado. Na sucessão das experiências, há muitos erros, muitos resultados que não funcionam como se quer – mas estes erros são indispensáveis para eliminar alternativas inúteis, e assim aumentar a possibilidade do acerto final. O processo de ensaio-e-erro ainda produz efeitos inesperados, resultantes da presença do acaso. Através da procura de antídotos se pode chegar a descobertas imprevisíveis, por exemplo substâncias tão úteis à humanidade quanto os antídotos.

Não somente cientistas recorrem a esse método. A contragosto, dou um exemplo bélico. Digamos que o canhão de um encouraçado pretenda atingir o porta-aviões inimigo. Seu primeiro tiro respinga água à direita do porta-aviões. Daí, o artilheiro manobra o canhão para a esquerda, e o segundo tiro respinga água à esquerda. No terceiro tiro, o artilheiro estará sabendo que a embarcação inimiga não está em qualquer lugar no mar, e sim num ponto entre as duas tentativas anteriores – logo, ele se aproxima do alvo. Os dois primeiros tiros foram erros. Mas erros a favor do artilheiro, estabelecendo limites necessários, de modo a se diminuir a possibilidade de outros erros, aumentando a possibilidade do acerto desejado. Donde, erros indispensáveis.

Todavia, suponhamos também que estamos no melhor dos mundos. Nesse mundo, o artilheiro repara que o segundo tiro molhou os marinheiros do porta-aviões. Então, pensa que é muito mais simpático e engraçado molhar marinheiro que matar marinheiro. Daí, à revelia do comando, decide estabelecer outro objetivo: apenas respingar os colegas inimigos. Do erro se inventou um acerto – se inventaram vidas molhadas. Tanto melhor se a mesma ideia ocorresse aos artilheiros e pilotos do porta-aviões.

Entretanto, o erro deixa de ser indispensável ao processo do conhecimento e passa a ser, ao contrário, claramente prejudicial, quando se repete. Quando, ao estabelecer o limite para a procura do acerto, se fixa no próprio limite e interrompe o processo. Como se o artilheiro, por nervosismo e incompetência, e não por intenções pacifistas e brincalhonas, continuasse acertando água – logo acertariam nele e no seu encouraçado. Ou como se o cientista insistisse numa substância que matasse uma cobaia após a outra, desconhecendo o erro, desconhecendo a necessidade de usar o erro para mudar e procurar acertar. Esse é “o erro contra a gente”.

Esse tipo de erro realmente prejudicial acontece muitas vezes por culpa do medo de... errar. Em trabalhos discursivos e redações, é preciso fazer vários rascunhos para se chegar ao melhor texto. Acontece que muitos alunos, habituados a tentar acertar (ou adivinhar) a resposta, tentam “acertar” a redação de primeira. Se não são bem sucedidos, se sentem frustrados e incompetentes para escrever qualquer coisa que preste. No entanto, aí é que estão errados. Ninguém é incompetente para escrever porque ninguém é incompetente para pensar. Basta insistir em melhorar, em reformular, em reescrever, se possível mostrando várias versões de um mesmo texto tanto para os colegas quanto para os professores. Só assim se escreve melhor: reescrevendo várias vezes cada texto. Não existe “redação certa”, existe redação bem trabalhada.

Para não errar, é preciso errar – em todos os sentidos do termo. É preciso errar e aprender com os próprios erros. E isso não vale apenas para o aluno, vale também para o professor. Cada erro deve ser pensado e interpretado, cada erro pode nos mostrar um acerto escondido.

Dou um exemplo banal: aquele aluno erra repetidamente a concordância dos verbos nas suas redações, ele escreve até “nós vai”. No entanto, como a maioria das pessoas, o aluno sabe que não se diz nem se escreve “nós vai”. Repete o erro por burrice? Pode ser burrice julgá-lo de modo tão apressado. Há duas outras explicações para o erro. Ao escrever ou falar desse modo, ele demonstra que se agarra afetivamente à maneira como se expressa o seu grupo social. Ou: ele demonstra que escreve para o professor, tentando dizer o que querem que ele diga e não o que ele gostaria de dizer. Nesse último caso, porque não concorda com o que ele mesmo escreve, “erra” na concordância verbal e assim trai a sua verdade, isto é, mostra a sua discordância, da qual ele mesmo não tem consciência clara.

Em resumo: erros são oportunidades para pensar, erros são a condição de qualquer acerto: na redação, na educação, na vida.

 

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