Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 28/03/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

Você é contra ou a favor das cotas?

Gustavo Bernardo

Se me fizessem a pergunta do título antes de o sistema de cotas ser implantado na UERJ e depois em outras universidades, a minha resposta estaria na ponta da língua: sou contra.

Se me fazem essa pergunta hoje, a minha resposta continua na ponta da língua, mas língua de cobra, bífida: continuo contra, mas também passei a ser a favor do sistema de cotas.

Não, não fiquei maluco nem me tornei o mineirinho da piada, que se equilibra em cima do muro para não se posicionar e não ficar mal com ninguém. O mineirinho, na verdade, não diz nem sim nem não (muito pelo contrário!).

Já eu estou dizendo sim e não, afirmando ao mesmo tempo as duas posições. Certo que à primeira vista elas parecem contraditórias entre si, mas uma pequena análise pode mostrar que não seriam incompatíveis, por estranho que pareça.

Por que eu era contra antes, e continuo contra agora? Por duas razões.

Primeiro, por uma razão óbvia: o princípio básico do mérito fica comprometido. Tratam-se de maneira desigual candidatos que deveriam ser considerados como iguais frente à situação de exame.

No entanto, a resposta dos defensores do sistema a essa crítica é pertinente: a sociedade já trata de maneira extremamente desigual, e desde o berço, pessoas que supostamente deveriam ser iguais (a ponto de muitas não terem sequer berço que as embale). O sistema de cotas reconhece o problema e tenta corrigi-lo ao menos em parte, favorecendo quem havia sido desfavorecido lá atrás.

Minha segunda razão para ser contra responde à réplica acima. O sistema de cotas, favorecendo quem foi historicamente desfavorecido pela sociedade, como negros, índios e pobres, ataca as consequências do problema e não suas causas. Ao fazê-lo, pode ajudar a perpetuar essas causas negativas, escondendo-as sob a novidade das cotas.

A educação brasileira é um sistema de cabeça para baixo: o ensino universitário público é de razoável qualidade, enquanto a qualidade do ensino público fundamental é sofrível.

Ainda: na carreira do magistério, o professor universitário pode ganhar bem mais do que o seu colega do ensino fundamental, quando o trabalho do segundo é muito mais difícil e importante do que o do primeiro. Digo isso de cadeira (ou da cátedra) porque, embora hoje só trabalhe como professor universitário, trabalhei muitos anos nos níveis fundamental e médio.

A situação do professor e da escola pública brasileira nem sempre foi tão ruim assim. No século passado, pasmem os mais jovens, fui aluno de escola pública e ela era muito boa. O professor do antigo curso primário sentia-se socialmente prestigiado e, comparando com outras profissões liberais, ganhava bastante bem. Em determinado momento fácil de determinar, precisamente no meio da década de 60, esse quadro começou a degringolar: a escola pública e o prestígio do professor, junto com sua condição salarial, desceram ladeira abaixo.

Na direção inversa, e paradoxalmente, rios de dinheiro público passaram a ser gastos com a compra de milhões de livros didáticos, para dar a impressão de que havia preocupação do governo com a educação (mas esse é o assunto da minha próxima crônica).

A lei das cotas tem função parecida: distrair a sociedade das causas do problema.

Ao invés de se remunerar direito o professor para então se cobrar qualidade e dedicação, "ataca-se" apenas a consequência do problema: o contingente enorme de alunos da escola pública que não consegue passar no exame vestibular da universidade pública. Esta universidade acaba aproveitando somente os alunos oriundos de escolas particulares (que poderiam continuar pagando pelo seu ensino), enquanto as faculdades particulares recebem os alunos oriundos das escolas públicas (que não podem pagar suas mensalidades).

A perversidade é flagrante. De certo modo, a lei das cotas a reconhece e procura atenuá-la, mas não combate a fonte geradora do problema: a má qualidade da escola pública. A situação parece pior na antiga capital do Brasil, ou seja, neste nosso Rio de Janeiro: trata-se do Estado da Federação que pior paga a seus professores. Sem dúvida, batemos um recorde humilhante.

Creio que tais argumentos são muito fortes. Então, por que sou ao mesmo tempo a favor do sistema de cotas? Também por duas razões.

A primeira: eu o vivencio como professor do Instituto de Letras da UERJ. Esse curso já contava com alunos de famílias menos favorecidas, quer por se tratar de um curso noturno, fundamental para quem trabalha, quer porque, reconheçamos, cursos de formação para o magistério não atraem os melhores alunos (aqueles que puderam estudar nas melhores escolas particulares). Ainda assim, o sistema de cotas trouxe alunos menos favorecidos ainda.

Entretanto, se tais alunos não são favorecidos economicamente, na maior parte dos casos eles revelam uma garra inusitada, talvez porque se encontrem num lugar que durante muito tempo consideraram interditado. Um dos argumentos contra o sistema de cotas, que nunca me pareceu forte, era o de que se "baixaria o nível". Os resultados dos primeiros anos jogaram esse argumento por terra: o desempenho dos alunos cotistas é, em praticamente todos os institutos, igual ou mesmo superior ao dos alunos não-cotistas.

Como professor, eu me sinto feliz com esses alunos. Ainda que careçam de base, de background cultural, suprem sua dificuldade com vontade, manifestando admiração pelos professores e, principalmente, pelo saber que se descortina para eles. Não parecem contaminados pelo cinismo e pela agressividade de alunos que estudaram em escolas supostamente melhores. Leram pouco e em geral não escrevem bem, o que é problemático para um aluno de Letras, mas aceitam a crítica e correm atrás do prejuízo.

Há pequenas distorções, claro, como usar a condição de "cotista" para reclamar que as disciplinas passam muitos livros para ler e que eles não têm nem dinheiro para comprá-los nem tempo para lê-los.

No primeiro caso, que reclamem com as autoridades universitárias para equipar melhor as bibliotecas, e que se organizem entre si para cada um comprar poucos livros onde for possível, por exemplo em sebos, mas fazê-los circular entre muitas mãos. A pior opção, ainda que a mais usual, é a do xerox indiscriminado (mas essa merece uma outra crônica, mais adiante).

No segundo caso, é simples: tempo é um bicho subjetivo, quer dizer, tempo a gente inventa – na verdade, tem de inventar. O livro é a ferramenta básica do professor, ainda mais do professor de Letras. Logo, formar uma biblioteca pessoal, lendo-a e relendo-a sem parar, é condição "sine qua non" para se tornar professor.

Reconheço, porém, que apenas um ou outro usa a sua condição de "cotista" para fazer menos; a maioria absoluta mostra-se ávida do conhecimento que lhes foi vedado por tanto tempo.

A segunda razão pela qual sou favorável ao sistema de cotas (mesmo sendo também contra) é porque ele me permite este artigo, isto é, ele força essa discussão. Então, se determinados políticos populistas criaram essa lei para tapar o sol com a peneira e não cuidar da indigência da educação básica brasileira, a própria lei pode se voltar contra eles, chamando a atenção para a raiz do problema.

No discurso dos políticos, a educação é sempre prioridade; na prática, ela às vezes parece menos importante do que o cocô do cavalo do bandido (ou do político). Ela só se tornará de fato prioridade quando o seu principal agente, o professor, voltar a contar com o respeito da sociedade toda, tanto daqueles que pagam o seu salário quanto dos que assistem a suas aulas.

Nesse momento, os melhores alunos desejarão se tornar professores e poderão se tornar grandes mestres, como acontece nos países em que a educação é respeitada.

 

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