Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 13/10/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

Um sofisma é um sofisma?

Gustavo Bernardo

Em outra crônica, dissemos que erros são oportunidades para pensar, portanto condição de qualquer acerto na redação, na educação ou na vida.

Os erros que se repetem, no entanto, perdem essa oportunidade e se esclerosam, formando o que muitas vezes chamamos de preconceitos. Se pegamos pela palavra, vemos que “pré-conceitos” são justamente pré-argumentos, isto é, argumentos preguiçosos que se satisfazem com conclusões e certezas rápidas demais. Os preconceitos nascem de diversas maneiras de argumentar de maneira apressada e preguiçosa, maneiras estas que os estudiosos da Lógica chamam de sofismas ou de falácias.

Mas o que são “sofismas”?

Lá pelo século V, sofismas eram as teses defendidas pelos sofistas. Naquela época, os sofistas atuavam como professores, ensinando aos filhos das famílias nobres, e estavam preparados, como os advogados modernos, para mostrar de que maneira se argumenta contra ou a favor de qualquer opinião. Os sofistas seguiam um argumento aonde quer que ele os levasse, sem se preocuparem com considerações pessoais, morais, cívicas ou religiosas.

Por conta dessa prática de pensamento livre, talvez livre demais, com o tempo o termo “sofisma” foi adquirindo uma conotação pejorativa, passando a significar um argumento usado para enganar e não para esclarecer ou chegar à verdade. Alguns filósofos dizem que “sofisma” é um argumento com dolo, isto é, construído com a intenção consciente de enganar o interlocutor, enquanto que “falácia” seria um argumento sem dolo, isto é, construído sem a intenção de enganar, mas enganoso do mesmo jeito.

Na prática, a distinção é muito difícil: como saber se o sujeito argumenta errado de propósito ou sem querer? Pode ser que o faça “sem querer querendo”, como aquele personagem mexicano... Logo, podemos supor que sofisma e falácia são quase sinônimos.

O termo “sofisma”, que prefiro, vem do grego “sóphisma”, que traduzo agora como “só-pensamento”. O sofisma é uma espécie de ideia pura, de ideia que se alimenta de si mesma e não dos fatos, das evidências, da realidade, enfim. Como a realidade é extremamente dinâmica, alterando-se a cada instante, quem argumenta de maneira sofismática tende a ter preguiça de observar cada fenômeno por todas as perspectivas possíveis, preferindo se empolgar com as próprias palavras. Ao invés de confirmar o que pensa pelo olhar contínuo sobre a realidade em movimento, prefere apoiar o que pensa com o seu próprio pensamento.

Logo, posso dizer que a matriz de todos os sofismas é aquele conhecido como “círculo vicioso”, cuja fórmula é muito simples: A = A. Claro que A é igual a A, mas e daí? Obviamente isso não está errado, mas também não está certo, porque na verdade se finge dizer tudo mas não se diz nada.

Constata-se, sob a aparência de um raciocínio, o oposto de qualquer raciocínio. No círculo vicioso se roda à volta do próprio umbigo para se retornar sempre ao ponto de partida, sem se acrescentar sequer um suspiro de uma ideia nova. O círculo vicioso aparece quando se tenta dar, como prova de alguma declaração, a repetição da própria declaração. Toma-se como coisa demonstrada o que cabia demonstrar, admitindo-se como verdadeiro exatamente aquilo que se encontra em discussão.

Não raro ouvimos, em tom pedante, bobagens desta ordem: “é porque é”; “pai é pai”; “negócio é negócio”; “você vai me obedecer porque eu estou mandando”; “o fumo faz mal à saúde porque prejudica o organismo”; “estas crianças são muito mal educadas porque nunca foram bem educadas”; “Machado de Assis é o maior escritor brasileiro porque nenhum outro jamais atingiu as mesmas alturas no que tange à criação literária”.

Lemos no romance de Graciliano Ramos, “Vidas Secas”, um bom exemplo desse sofisma, quando o personagem Fabiano fica preso, por medo, num raciocínio circular:

“Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro: — Governo é governo. Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.”

Podemos interpretar a conclusão do pobre Fabiano da seguinte maneira: “governo é governo e eu não sou nada”. Se penso assim, eu nem penso. Eu sou um pré-homem, da mesma forma que um preconceito é um pré-argumento.

É importante estudar os sofismas por duas razões: primeiro, para perceber quando os argumentos alheios estão tentando nos enganar e nos enrolar; segundo, para não cometermos sofismas na nossa redação, por pressa, preguiça ou ignorância. Já escrevi sobre eles em dois livros, “Redação inquieta” (Formato, 1985) e “Educação pelo argumento” (Rocco, 2000), mas há vários manuais de lógica informal que também os estudam muito bem.

Na próxima crônica, desdobro consequências mais graves do raciocínio sofismático – porque, afinal de contas, um sofisma é um sofisma, não é mesmo?

 

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