Inicial » Colunas » Como ler um texto literário? - I
A pergunta supõe que haja uma maneira correta de ler um texto literário, já que existem especialistas e professores nesta aparentemente difícil e hermética (literalmente) tarefa.
O filósofo Vilém Flusser nos diz que há duas maneiras de ler literatura, ambas válidas e complementares. Gosto das orientações dele, mas a elas acrescentaria outras três, todas igualmente válidas o que nos deixará com cinco modos de leitura.
Para a crônica de hoje, fiquemos com os dois modos de Flusser. Ele nos diz que se pode ler o texto literário ou como resposta ou como pergunta.
No primeiro caso, lemos literatura como a resposta do autor à pergunta que o seu tempo e os autores que o formaram lhe fizeram. Então, tentamos entender essa resposta, para o que se faz necessário, antes, entender a pergunta geradora. Relacionamos a obra do autor às questões e às obras do seu tempo e fazemos o Flusser chama de crítica e eu chamaria de análise.
No segundo caso, lemos literatura como uma pergunta para nós. Então, tentamos respondê-la, usando o texto como um pré-texto da nossa reflexão, isto é, do nosso próprio texto. Assim como o autor tentou responder à pergunta que lhe faziam, nós nos colocamos no lugar dele e tentamos responder à pergunta que ele nos faz, realizando o que Flusser chama de especulação.
As duas maneiras de ler não são excludentes nem puras. Ao criticar e analisar, acabo levantando algumas especulações novas. Para melhor sustentar minha especulação, recorro a alguma análise. Mas há quem prefira ler predominantemente de maneira crítica essas pessoas tendem a escrever tratados sobre o assunto, procurando esgotá-lo. De outra parte, há quem prefira ler predominantemente de maneira especulativa essas pessoas tendem a escrever ensaios sobre o assunto, procurando procurando explorá-lo e ampliá-lo.
Flusser e eu pertencemos decerto ao segundo grupo, mas precisamos ler os tratados produzidos pelo primeiro grupo assim como os do primeiro grupo precisam ler, queremos crer, os nossos ensaios.
Qual modo de leitura a escola privilegia? Resposta fácil: a escola privilegia a leitura analítica, porque ela supõe controle da informação e do conhecimento. Entretanto, restringir-se a apenas este modo implica a impossibilidade de apreender o espírito dos autores que nos interessam e nos mobilizam seu espírito de dúvida, de inquietação, de investigação e de invenção.
A leitura especulativa, porém, não deixa de ser igualmente arriscada. Ao admitir e mesmo valorizar a subjetividade do leitor e sua capacidade de também escrever o mundo, pode criar hordas de viajantes de maionese, isto é, de pessoas interessadas tão somente em dizer o que pensam, mesmo que mal pensem.
A solução, como sempre, é o diálogo. Os leitores especulativos precisamos ler muito atentamente os tratados dos leitores analíticos, para tentar controlar um pouco o nosso delírio reflexivo. De sua parte, os leitores analíticos precisam ler muito atentamente os ensaios dos leitores especulativos, para tentar controlar um pouco o seu delírio controlador e enquadrador.
Leitores não podem ser adversários uns dos outros. Leitores precisam ler uns aos outros. Somente assim todos os leitores, juntos, conseguimos manter acesa a chama da curiosidade, no meio de um mundo anestesiado e aparvalhado pelo culto da fama e de uma realidade reificada, isto é, coisificada e congelada debaixo de uma única perspectiva.
Para jogar mais lenha nesse foguinho, na próxima crônica acrescento aos dois modos de Flusser mais três outros modos, todos igualmente válidos e complementares: a leitura ingênua, a leitura crítica e a leitura teórica.