Inicial » Colunas » Como a ficção responde à pergunta 'quem sou eu?'?
Uma das perguntas fundamentais do homem em todas as épocas é a pergunta sobre a sua própria identidade: quem sou eu? Essa pergunta é naturalmente um dos fundamentos da filosofia, mas também da literatura.
A pergunta quem sou eu? é uma pergunta deveras complicada: nós achamos que somos quem somos, mas só até nos perguntarmos quem somos. Na literatura, a questão se atualiza na construção dos personagens, duplos espelhados dos escritores e dos leitores, e no fenômeno estético da metaficção.
A metaficção é uma ficção que se pergunta quem sou eu porque se funda na elaboração da própria ficção. Quando a ficção pergunta-se o que ela mesma é, cria um efeito perturbador no leitor, como se o levasse a se perguntar não apenas quem ele é mas também o que é a realidade.
É dessa perturbação e dessa relação perturbadora entre a literatura e a realidade que começo a tratar aqui. Começo fazendo-o através de uma conhecida imagem.
Nessa imagem, a mão esquerda desenha a mão direita que por sua vez desenha a mão esquerda. Duas mãos desenham com zelo uma à outra, aparentemente começando por si mesmas: as mãos já estão tão definidas que parecem sair do próprio desenho que elaboram, e elas agora se dedicam a preparar os punhos da sua camisa (como se só então começassem a desenhar o dono delas mesmas). O desenho dessas mãos encontra-se pregado por tachinhas num pedaço de cortiça mas o pedaço de cortiça que sustenta o desenho é ele mesmo um outro desenho. As mãos que se desenham não estão completas, se ainda não terminaram de se desenhar, mas ao mesmo tempo compõem um quadro completo.
A imagem dessas mãos que se desenham a si mesmas é bastante conhecida. Ela remete a paradoxos importantes, como o de representar a complexidade através de uma ideia visual simples. Essa imagem é uma litogravura chamada, em holandês, de "Tekenenden handen" - em português, Mãos que se Desenham. Ela foi concebida em 1948 pelo artista holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972).
As mãos de Escher, como também são conhecidas, nos apresentam o enigma da metaficção. Essa ficção peculiar promove uma separação entre a linguagem e a realidade, isto é, explora a ideia de que a linguagem não representa ou diz a realidade, mas antes a inventa ou a reinventa.
A metaficção existe desde a primeira narrativa. O coro e o deus ex machina das tragédias gregas são soluções metaficcionais. Há quatrocentos anos atrás, o personagem Dom Quixote já criticava a narrativa das histórias de... Dom Quixote. Podemos definir metaficção como uma ficção que explicita sua própria condição de ficção. Esta ficção não esconde que o é, obrigando o leitor a manter a consciência clara de estar lendo um relato ficcional e e não um relato verdadeiro obrigando o leitor, portanto, a manter-se em suspenso, ou seja, em estado permanente de dúvida e incerteza.
Isso acontece porque a obrigação da ficção não é a de dizer a verdade mas sim a de firmar uma verdade diferença sutil, mas importante. O ato de dizer a verdade supõe uma e somente uma verdade prévia à ação de expressá-la, enquanto que o ato de firmar uma verdade supõe uma verdade possível entre outras, verdade esta que se constrói no momento mesmo em que se a expressa.
Nas palavras ligeiramente jocosas de William Gass, a verdade, eu estou convencido, sente antipatia pela arte. É melhor quando um escritor tem uma profunda e persistente indiferença por ela, embora como pessoa a verdade possa ser vital para ele. A verdade mesma é cinzenta, sensaborosa e, em última análise, inacessível, ao passo que a verdade do escritor é colorida, suculenta e intensa: isso ilustra um princípio básico: se eu descrevo muitíssimo bem o meu pêssego, é o poema que fará a minha boca aguar... enquanto o pêssego real se estraga.
A ficção que chama a atenção sobre a sua própria condição ficcional termina por levantar questões relevantes sobre as relações entre ficção e realidade e, em última análise, questões decisivas sobre a a realidade mesma. De acordo com Patricia Waugh, ao criticar seus próprios métodos de construção, tais escritos não examinam apenas as estruturas fundamentais da ficção narrativa, eles também exploram a possível condição ficcional do mundo externo ao texto ficcional. A reflexão teórica sobre a literatura se amplia, nesse caso, para uma reflexão filosófica sobre o mundo e a nossa existência nele.
Entre os esquemas metaficcionais, encontramos:
A metaficção retoma o paradoxo do mentiroso, quando um cretense dizia que todos os cretenses são mentirosos: se ele estivesse dizendo a verdade, ele estaria mentindo, logo, não estaria dizendo a verdade; entretanto, se ele estivesse mentindo, ele estaria dizendo a verdade, logo, não poderia estar mentindo.
Pela reconfiguração moderna do paradoxo, um metaficcionista afirmaria que todos os romancistas são mentirosos, mas o faria com toda a sinceridade.
É essa mentira-verdade que me interessa. Vejamos, na próxima crônica, como o escritor argentino Julio Cortázar brinca com esse paradoxo.