Inicial » Colunas » Homem pode chorar?
Para responder a esta pergunta fundamental, podemos ler um pequeno conto de Mia Couto chamado Os machos lacrimosos, que se encontra no seu livro intitulado O fio das missangas.
Se todo texto literário contém a sua própria teoria, só nos cabendo desentranhá-la das entrelinhas, o conto do escritor moçambicano explicita com todos os esses e erres a sua teoria sobre a catarse, respondendo afirmativamente à pergunta acima: sim, homem pode chorar, ou melhor: homem deve chorar!
Mia conta uma história aparentemente singela e ingênua sobre o próprio poder de se contarem histórias ingênuas e singelas. O cenário é o de um bar de Matakuane no qual reconhecemos um legítimo boteco brasileiro, ainda que a história não se passe no Brasil. Os nomes dos personagens misturam nomes tribais e apelidos tirados dos filmes americanos mais populares.
Luizinho Kapa-Kapa, por exemplo, mistura o diminutivo carinhoso com o sobrenome de guerra: aquele que capa, portanto castra, duas vezes!
Silvestre Estalone, por sua vez, é alusão óbvia aos personagens hiper-machões do ator Sylvester Stallone, em especial Rocky e Rambo.
No começo, os personagens se encontram no bar por causa de alegrias. De triste, basta a vida, diz o vulgo. É preciso rir e bebemorar. Se pudéssemos entrar no bar ou no conto e perguntar a seus frequentadores que tipo de filme eles preferem ver, sem dúvida apontariam primeiro os de ação e depois os que fizessem rir, ou seja, as comédias. Entretanto, a nossa experiência de espectadores e de leitores nos sugere que a alegria não é, como parece, um sentimento integrador.
O riso do bêbado no bar, que depois de um certo tempo sempre se transforma em choro convulsivo, mostra que a alegria pode ser, ao contrário, desintegradora até porque via de regra o cômico parte de uma violência ou de um preconceito.
A situação cômica padrão é da velhinha escorregando na casca de banana e caindo sentada numa poça dágua. De fato, a cena é muito engraçada menos para ela, decerto, que talvez tenha fraturado o quadril. Nós rimos da velhinha, ou de quem quer que tenha caído, em parte porque não fomos nós a cair (que alívio), em parte deixando escapar nossa agressividade instintiva contra o outro. Em consequência, o sentimento que sucede ao riso não é tão agradável quanto ele, misturando-se o alívio (da raiva liberada) à culpa (pela insensibilidade demonstrada).
A tristeza, ao contrário, nos deixa com a sensação de que por um instante podemos ser melhores do que de fato somos. A tristeza advinda da fruição de uma obra de arte, então, nos torna muito melhores do que somos, porque exercitamos sem constrangimentos o raro sentimento da compaixão. Essa sensação integradora, essa sensação de finalmente sabermos quem somos e, ainda, que não somos maus, empresta todas as condições para reflexões calmas sobre a nossa identidade, sobre o mundo e até mesmo sobre a divindade.
Nesse sentido, a tristeza se torna condição sine qua non do próprio pensamento, vale dizer, da própria filosofia.
É o que os personagens do bar descobrem, surpreendidos e encantados, a partir de uma história tristíssima contada pelo tal do Luizinho Kapa-Kapa. Quando Luizinho conta uma história tão triste que chega a todaviar-se, chorando como uma carpideira, os seus amigos de bar descobrem um prazer que não conheciam: o prazer de chorar. Mas, mais do que o prazer de chorar, descobrem o prazer inenarrável de chorar junto, isto é, de fazerem da experiência um ritual coletivo. Ouvir e contar histórias, de preferência bem tristes, logo se torna uma espécie de culto sagrado daquele grupo.
Homeopaticamente, a catarse das narrativas tristes purga os maus humores, expelindo-os junto com as lágrimas. Desta forma, todos se tornam melhores do que eram: preocupam-se com a própria família, preocupam-se com as suas mulheres, logo, ocupam-se dos afetos que justificam as suas vidas.
Ao fazê-lo podem filosofar, reconhecendo que chorar é um abrir do peito e que o pranto é o consumar de duas viagens: da lágrima para a luz e do homem para uma maior humanidade. Nas palavras de Kapa-Kapa: a solução do mundo é termos mais do nosso ser.
A lágrima nos lembra: nós, mais que tudo, não somos água? Se o nosso ser é essencialmente água, líquido e devir, porque escorre pelos dedos como as lágrimas pelas faces, ele só se deixa apreender integrado e integralmente quando choramos com o outro e pelo outro.
Como diz Mia Couto numa belíssima imagem, a melancolia se instalara como toalha sobre a mesa justo para permitir a narrativa que, por sua vez, permite o encontro consigo mesmo.