Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 13/10/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

Inicial » Colunas » Por que os contos de fadas são tão violentos?

Colunas

Por que os contos de fadas são tão violentos?

Gustavo Bernardo

A expressão “contos de fadas” designa um número muito grande de histórias populares, de origem anônima e transmissão oral. Na verdade, há muito poucas fadas nessas histórias, são mais comuns os animais que falam.

No início, esses contos não se destinavam necessariamente aos ouvidos das crianças, embora elas pudessem se encontrar em volta das fogueiras quando os adultos os contavam à noite. Os aspectos violentos e cruéis sempre fizeram parte dessas narrativas. Com o passar dos séculos e com a invenção da infância pela burguesia, as histórias foram mudando de forma e se dirigindo prioritariamente às crianças. Nesse processo, atenuaram um pouco aqueles aspectos, mas só um pouco.

Um exemplo bem interessante é o da muito conhecida história do Chapeuzinho Vermelho.

Na mais antiga versão que se conhece, a menina, que nem chapeuzinho tinha, já avisava ao lobo onde ia, como que marcando encontro com ele na casa da avó. O lobo chegava na frente, matava a avó e colocava sua carne na mesa, como bifes mal passados, e seu sangue na garrafa, como vinho. Ao chegar, a neta não reconhecia o lobo deitado na cama, disfarçado, e anunciava fome. O animal mostrava a mesa posta e a menina jantava com gosto. Depois, se dizia com calor, quando o lobo pedia que ela tirasse cada peça de roupa e a jogasse na lareira. Sem roupa, a garota sentia frio. O lobo, então, a convidava para se aquecer na cama. Ela se deitava com ele sem discutir, para ser imediatamente devorada.

O verbo “comer” faz metáfora do ato sexual em todas as línguas. Nessa versão do conto, ele significa tanto essa metáfora quanto o seu sentido literal: o lobo parece ter comido a menina nos dois sentidos. Os aspectos violentos e eróticos dessa narrativa são bastante explícitos. Para piorar um pouco, não havia ainda nenhum lenhador para salvar a pátria, ou melhor, a honra da personagem.

Várias outras versões se sucederam, com o tempo. Numa delas, em determinado momento, a protagonista cobriu seus cabelos com um chapeuzinho vermelho (segundo os ilustradores, mais uma longa capa do que um mero “chapeuzinho”). A cor do acessório reforça ambos os aspectos do conto: remete ao sangue das duas mulheres, violadas pelo “animal”, e ainda sugere a idade púbere da menina. Entretanto, não atinamos no ato com estas simbolizações da cor vermelha, porque ainda achamos que a história é “infantil” e porque nos iludimos com o diminutivo supostamente singelo que designa a personagem.

Numa das últimas versões conhecidas, o lobo devora tanto a avó quanto a neta (mostrando um gosto bastante eclético) e depois dorme pesado. Aparece então o famoso lenhador. Ele entra na cabana e pensa em matar o lobo, mas desconfia do seu estômago tão dilatado. Resolve abrir a barriga do animal, de onde saem, assustadas mas inteiras, a anciã e a jovem (que elas estivessem vivas e “inteiras” dá força à metáfora erótica). Nem nesse momento o lenhador mata o lobo, preferindo encher sua barriga de pedras para depois costurá-la, de modo a jogar o animal, vivo, no fundo do poço.

Crueldade desnecessária do lenhador? Creio que não. Esse senhor, com o seu machado, representa a figura paterna ausente das primeiras versões, e está apenas dando mais tempo à Chapeuzinho Vermelho para crescer e se preparar – sim, porque, quando o lobo digerir as pedras e conseguir sair do poço, ele surgirá transformado no seu príncipe encantado.

O poço representaria bem, nessa leitura, o inconsciente da menina, assim como o lobo encarnaria o seu desejo ligeiramente precoce, aquele que ainda não deveria ser realizado.

Mas a criança não pode entender esta interpretação!, protesta a leitora indignada, sentindo-se roubada nas suas ilusões mais caras. É verdade, ela de fato não entende isso tudo, pelo menos conscientemente. Ela apenas curte a história – e a curte porque esse enredo violento cala fundo no seu poço cheio de pedras, isto é, no seu inconsciente cheio de desejos reprimidos desde bem pequena.

Nós os adultos também sentimos dificuldade de aceitar esta leitura, quer porque continuamos pensando como crianças, quer porque nossos desejos mais intensos continuam reprimidos, quiçá recalcados. Todavia, à luz da psicanálise, ela é praticamente óbvia – que o diga Bruno Bettelheim, autor do clássico “A psicanálise dos contos de fadas” que inspirou esta crônica.

Por que na maioria absoluta das histórias infantis, incluindo os quadrinhos de Walt Disney, todas as crianças são órfãs de pai, de mãe ou de ambos? Não seria por que as crianças sonhem em se libertar da tutela dos pais, sonho esse que lhes dá uma culpa enorme? Para driblar essa culpa, às vezes as crianças não fantasiam que são princesas adotadas, enquanto o rei e a rainha, seus pais supostamente verdadeiros, amargam um exílio terrível do qual elas mesmas irão um dia salvá-los?

Por que há tantas madrastas más, tantas vezes bruxas, nessas histórias? Não seria para canalizar a agressividade culpada das crianças em relação a suas mães? Odiar a mãe é inevitável, até porque contraface do amor absoluto, mas também é um pecado horroroso! Então, odiemos sem culpa a madrasta-bruxa, metáfora perfeita da mãe que nos desdenha, nos despreza e nos abandona quando só queremos atenção absoluta e irrestrita...

Mesmo censurados por milhares de pedagogos preocupados ao longo do tempo, os contos de fadas persistem violentos por uma razão muito simples: os desejos mais recônditos das pessoas, sejam elas de tenra ou de macróbia idade, são essencialmente violentos. Sua realização imaginária, através da ficção, permite que continuemos cordiais uns com os outros – ora, este benefício colateral da literatura é inestimável.

A violência dos contos de fadas não traumatiza criança nenhuma, tanto que elas costumam pedir que contemos a mesma história aterrorizante vezes sem fim, e sem mudar o fim. O que traumatiza é a culpa, o que traumatiza são as relações familiares truncadas e perversas.

A ficção é o antídoto – ou, no mínimo, o lenitivo.

 

©2008-2024, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Todos os direitos reservados