Inicial » Colunas » Como o poeta pode ser um fingidor?
O poema Autopsicografia, do poeta português Fernando Pessoa, é daqueles que muita gente sabe de cor e por isso mesmo gosta de relê-lo, escutá-lo ou declamá-lo. Por isso, vamos lê-lo juntos mas em voz alta, por favor:
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras senteE os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Pergunto a meu leitor: quantas dores temos neste poema?
Vamos contar:
(1) a dor real do poeta, aquela que ele sente de verdade;
(2) a dor fingida pelo poeta a partir da dor verdadeira;
(3) a dor que o leitor lê no poema, que não é nem a que o poeta sentiu nem exatamente a que ele escreveu;
(4) a dor que o leitor sente ao ler o poema, diferente da dor que de fato sentia antes de ler o poema;
(5) a dor real do leitor, aquela que ele sentia antes de ler o poema.
Cinco dores, portanto. Qual delas é a mais verdadeira?
Num sentido, todas são verdadeiras. Em outro sentido, a mais intensa (e mais verossímil), para o poeta, é aquela que ele fingiu e escreveu, porque tem a forma que lhe deu, enquanto que para o leitor a mais intensa (e mais verossímil) é aquela que ele leu, porque esta lhe empresta a forma para o que sente, a qual, por sua vez, difere do que sentia.
À arte não importa a verdade imanente ou essencial da coisa mas sim a verdade subjetiva, isto é, a verdade do interesse e da emoção. O fingimento proposto pelo poeta para o leitor é mais verdadeiro do que o sentimento original, porque a dor fingida e então lida se torna uma dor que se pode reconhecer e com a qual se pode conviver. Desse modo, ela é sentida como mais viva e mesmo mais real do que a dor à vera. Fernando Pessoa é muito conhecido não só como autor de poemas antológicos como este, mas também como criador de vários heterônimos, isto é, de poetas fictícios com estilos próprios e diferentes do seu. Um deles é o romancista Bernardo Soares, autor do fabuloso Livro do desassossego. No fragmento 260 deste romance, Bernardo Soares explica em prosa os versos de Autopsicografia.
A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.
Sua definição de arte é exemplar: libertar os outros de si mesmos, isto é, levá-los a transcender os limites estreitos da sua individualidade. Para conquistar esta meta ambiciosa, o poeta precisa antes libertar-se de si mesmo e dos seus próprios sentimentos, transcendendo os limites estreitos da sua própria individualidade. A melhor metáfora deste processo são os heterônimos de Fernando Pessoa, que de a partir de si mesmo criou várias pessoas.
Depois de definir o que entende por arte, Bernardo Soares pede ao leitor que imagine sentir uma vaga tristeza. Se o leitor tentar traduzir essa emoção por frases sinceras e verdadeiras, quanto mais sinceras e verdadeiras elas forem, menos ele conseguirá comunicar sua emoção aos outros no máximo, provocará constrangimento nas pessoas à volta.
Por analogia, peço eu ao leitor que experimente contar o sonho que teve nesta noite para todos os amigos com que encontrar: todos, sem exceção, escutarão constrangidos, entediados ou irritados, na melhor das hipóteses esperando impacientes que você acabe o seu sonho para eles poderem contar os seus e constrangê-lo também.
Ora, o sonho é uma espécie de emoção íntima, e como tal incomunicável. É por isso que precisamos pagar (caro) a alguém para ouvir os nossos sonhos. As emoções mais fortes e mais íntimas são igualmente incomunicáveis. E, se não há como comunicá-las a outros, continuará Bernardo Soares, seria melhor senti-las sem a escrever.
Se, todavia, o leitor deseja comunicar aquela emoção, aquela vaga tristeza que sente aos outros, isto é, fazer dela arte, pois a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles, ele deve procurar qual emoção humana vulgar (ou seja, do vulgo, do povo) teria o tom e a forma daquilo que sente. Nesse instante o leitor pode perceber que a emoção que produz na alma vulgar uma sensação equivalente à sua pode ser, por exemplo, a saudade da infância perdida.
Leitor, essa é a chave para a porta do seu tema! Escreva e chore sua infância perdida; demore-se sobre os pormenores da mobília da velha casa da avó no subúrbio; evoque a felicidade de ser livre por não saber pensar nem sentir. Se esta evocação for bem feita como prosa, despertará no leitor uma emoção equivalente àquela que sentiu, e que aliás não tinha nada a ver com infância.
Isso significa, prezado leitor, que você mentiu? Não, significa que você compreendeu e ainda ajudou seu próprio leitor, por sua vez, a compreender. Porque:
A mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se não pode conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e sutis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer.
Segundo Bernardo Soares, a verdade é não apenas não-toda, ou seja, não pode jamais ser completamente apreendida; ela é também intransmissível, incomunicável. Por isso, precisamos comunicar uma ficção da verdade como se ela fosse a verdade mesma. O fingimento, nesse sentido, é condição sine qua non da arte, da própria vida e, por extensão, de toda forma de amor:
Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um olhar significativo que não medite, de repente, e seja de quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no fundo da alma em cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer comprar ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o estadista que nos compra amou, ao menos, o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos, amou, ao menos, o comprarmo-la. Não fugimos, por mais que queiramos, à fraternidade universal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos.
O trecho final do fragmento 260 do Livro do desassossego é forte. Fortíssimo, eu diria. O que Fernando Pessoa e Bernardo Soares nos dizem (ainda que o segundo não exista a não ser como uma criação do primeiro) é que, para tocarmos na compreensão dos outros, precisamos antes tornar-nos outros nós mesmos precisamos outrar-nos, para usar o neologismo do próprio poeta. Em outras palavras, ao inventarmos a dor que deveras sentimos para falarmos com nossos semelhantes tão diferentes, inventamo-nos como outra pessoa e nos tornamos melhores do que de fato éramos.
Todo processo de sedução não passa por isso? João não tenta se mostrar como o homem ideal que Maria deseja para ela? E Maria não tenta se mostrar como a mulher ideal que João deseja para ele? E neste processo de sedução e fingimento não acontece de cada um deles se tornar mais parecido com o ideal um do outro, a ponto de se tornarem melhores do que eram antes?
Não é a essa bela ficção que emprestamos o nome de: amor?