Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 27/04/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Religião é literatura?

Gustavo Bernardo

No princípio de tudo, encontramos a religião. A literatura, como toda a arte, nasce da religião – e, como toda filha, às vezes presta reverência à mãe, às vezes se rebela – e ainda, ao se rebelar, encontra uma maneira paradoxal de prestar reverência (como acontece na casa da gente).

A religião, como sugere a etimologia, religa as pessoas umas às outras e todas à sua origem e à sua direção na vida. Ela precisa não apenas ligar mas voltar a ligar, isto é, “religar”, porque reconhece que a história das pessoas tende a desligá-las umas das outras e, principalmente, da sua origem e do seu sentido na vida. A religião como que devolve o sentido à vida, e isso nos 2 “sentidos”: tanto de significado quanto de direção.

Como a religião faz isto? Através de narrativas fundadoras. Toda religião conta uma história para nos dizer de onde viemos, para onde vamos e, afinal, quem somos. Quando se reverenciavam vários deuses, as narrativas sobre eles explicavam a nossa origem a partir do encontro ou do confronto entre esses vários deuses. Quando se passou a reverenciar um único deus, as narrativas sobre ele passam a explicar a nossa origem a partir da vontade desse deus ou do conflito entre a nossa vontade e a sua vontade.

As narrativas politeístas são forçosamente múltiplas, o que as torna mais amplas mas menos verossímeis e menos críveis. Além disso, em toda religião politeísta os deuses são demasiado humanos: eles enganam-se uns aos outros e aos seres humanos – logo, sempre podemos enganá-los um pouco ou, ao menos, driblá-los.

As narrativas monoteístas têm uma lógica interna mais restrita, apoiada sempre na vontade e no poder do deus único: isso as torna menos amplas, mas mais verossímeis e mais críveis. O deus único sempre tem mais poder do que todos os deuses antigos juntos: ele se apresenta como onipotente, onipresente, onisciente e, às vezes, benevolente. Não se pode enganar o deus único, se ele tudo vê, tudo sabe e tudo pode.

Assim como o arco-íris mais bonito é aquele no qual conseguimos distinguir mais cores, a multiplicidade inerente às narrativas politeístas as torna mais belas – mas, por isso mesmo, moralmente mais fracas.

As narrativas monoteístas tendem naturalmente à monotonia, isto é, a ficarem presas em um único tom: o tom da voz e da vontade do deus único. Isso as torna menos belas, mas ao mesmo tempo mais verossímeis, mais críveis e moralmente mais fortes. A crença em um único deus aumenta a responsabilidade pessoal daquele que crê, o que por sua vez aumenta o poder de conexão e “religação” da própria religião.

Não à toa as religiões monoteístas se impuseram no mundo e ao mundo: cada deus único é muito mais poderoso do que os muitos deuses de antigamente, o que por sua vez empresta parte desse poder a cada indivíduo e à espécie toda. Não por outra razão o pensamento humano continua perseguindo o ideal totalizante atingido há séculos pela religião, tentando formular “a teoria de tudo” que concilie o macro com o micro, ou seja, a cosmologia com a mecânica quântica. Não criaram um aparelho gigantesco, e o plantaram na Suíça, para procurar o bóson de Higgs, também conhecido como “a partícula de Deus”?

A despeito de cientistas e religiosos, porém, o que conseguimos observar da natureza nos mostra um mundo que não se esgota numa explicação só ou numa narrativa apenas. O que conseguimos observar de nós mesmos, por exemplo, quer como indivíduo quer como espécie, mostra-se sempre irredutível a uma perspectiva única, seja ela psicanalítica, biológica, sociológica, filosófica ou mesmo teológica. Talvez essa circunstância explique os resquícios do politeísmo nas próprias religiões monoteístas, como o culto à Virgem e aos santos, ou o sincretismo pragmático entre o monoteísmo explícito do cristianismo e o politeísmo mais ou menos disfarçado do candomblé e de outras religiões afro-brasileiras.

Além disso, o monoteísmo mostra-se cada vez mais longe do seu ideal lógico: se realmente há um único Deus, agora grafado com a devida inicial maiúscula, deveria haver uma única religião e uma única igreja que lhe rendesse homenagem, como aliás pretendia a igreja católica ao se denominar “católica”, do grego “katholikós”, ou seja, “universal” – literalmente, “uma única versão”. Pela mesma razão, diversas igrejas pentecostais também usam o adjetivo “universal”, já devidamente traduzido para língua vulgar.

Todavia, nenhuma igreja é ou pode ser realmente universal. Calcula-se o número de religiões monoteístas no mundo na ordem de dezenas de milhares. Depois que Friedrich Nietzsche, à esquerda, e Augusto Comte, à direita, “mataram” Deus no século 19, ele não só não morreu como ainda se multiplicou por muitos mil, mostrando, no mínimo, que ainda há necessidade de narrativas múltiplas e polifônicas.

Como viram, creio que religião também é literatura, isto é, a religião também pode ser lida como uma narrativa ou um conjunto especialmente rico de narrativas. Também creio que desse modo não desvalorizo nenhuma religião, se entendo o sentimento religioso como antropologicamente necessário.

Na próxima coluna, enfrento a pergunta inversa: literatura é religião?

 

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