Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 29/03/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

Literatura é religião?

Gustavo Bernardo

Karl Marx afirmou não apenas que a religião é o ópio do povo, mas também que a religião é o lugar do espírito em um mundo sem espírito. O fundador do marxismo reconhecia portanto a necessidade do que chamou de “espírito”, ou seja, de tudo aquilo que não se reduz à matéria e que transcende o nosso corpo.

Entretanto, tanto Marx quanto os livre-pensadores do século 19 entenderam que as religiões estabelecidas se comprometiam tão seriamente com os poderes estabelecidos que acabavam deixando o espírito de lado para manter esse compromisso e, consequentemente, seu poder. Tornava-se imperativo cuidar do espírito por outra via que não a religião. Dizendo de maneira um pouco irônica: o sentimento religioso seria coisa muito séria para ficar na mão da religião.

A alternativa institucional para o espírito, enunciada timidamente por Marx mas bem claramente por Nietzsche, seria a arte. Dentre todas as artes, pela importância do verbo na sociedade histórica, a arte verbal da literatura podia compor a linha de frente. Esta seria uma segunda razão para a criação, justamente no século 19, da disciplina “literatura” na escola – a primeira residia na valorização simbólica da língua-pátria e, por via de consequência, da própria pátria.

A educação ocidental tende a ser cada vez mais laica, apesar da resistência heroica das escolas confessionais. Tenta-se impingir por lei o ensino do criacionismo, como no país fundamentalista da América do Norte, mas por aqui a lei não “pega” como lá. Mesmo as escolas confessionais precisam admitir professores que não comunguem da mesma fé, ou que não comunguem de fé alguma. Décadas atrás, por exemplo, fui professor de um renomado colégio de jesuítas admitindo-me ateu para o padre que me entrevistava (meus agradecimentos e meus aplausos para o padre e para o colégio em questão).

Nessa educação laica, as aulas de artes para crianças constituem o espaço de exercício do espírito. Quando as crianças se transformam em adolescentes e começam a ser preparadas para o mercado de trabalho, acabam as aulas de arte mas ainda resta o espaço das aulas de literatura para este exercício do espírito, permitindo aos alunos tanto serem mais do que si mesmos, através dos personagens dos romances, quanto cultivarem a fé no invisível, isto é, naqueles seres que só existem na imaginação dos escritores e dos leitores.

Ainda que a Lucíola do José de Alencar exista apenas no papel, ela pode ensinar muito mais sobre a paixão e o medo da paixão do que um pastor, um professor ou um psicólogo poderiam fazer. E a paixão, como sabemos, é um ser imaterial, logo, um personagem do nosso espírito – ora protagonista, ora antagonista, ora tão somente um narrador...

Um dos sentimentos mais importantes para aquele que crê em um deus é o da revelação. Em determinado momento, que pode ser tanto de extrema dor quanto de extrema alegria, o crente sente que Deus se revela a ele precisamente através do acontecimento. A comoção do momento é tão forte que a vida passa a fazer sentido. Na verdade, o sentido da vida parece ser recebido de Deus e se resume no nome de Deus. Esse sentimento não deve e não costuma ser menosprezado pelos ateus – muitos explicam respeitosamente sua não-crença dizendo que não foram contemplados com a revelação.

Sinto algo parecido quando visito uma igreja antiga vazia, a ponto de com frequência me comover e chorar. Infelizmente, a mesma igreja cheia de gente, durante o culto, já tem o efeito contrário: me “descomove”. Com isto quero dizer também que não fui contemplado com a revelação divina, mas que gostaria muitíssimo de ter sido...

Felizmente, a literatura faculta sentimento semelhante, que pode funcionar como um substitutivo da revelação. Esse sentimento não nega nem prejudica o sentimento religioso da revelação, mas como que o recria quer para quem não foi contemplado quer para quem sente sua fé enfraquecida. Trata-se do sentimento da epifania.

O termo deriva do grego “epipháneia”, que significa “manifestação”. Originalmente, é um acontecimento religioso. As epifanias correspondem a aparições a partir das quais os profetas, os xamãs, os bruxos e os oráculos interpretam as mensagens de divindades ou de mundos além deste mundo. Os ventos, os raios e as tempestades, por exemplo, são a epifania, isto é, a manifestação reveladora de Iansã. Chama-se epifania também à festa cristã que celebra o momento em que Jesus se dá a conhecer.

Em arte, a epifania corresponde à súbita sensação de compreensão da essência de algo, como se encontrássemos a última peça do quebra-cabeças da vida. Essa sensação súbita não acontece quando assistimos a uma aula ou lemos um ensaio como este, mas sim quando assistimos a um filme ou lemos um romance. É como se “tudo” ficasse claro e fizesse sentido de repente. Não mais do que de repente os fragmentos incoerentes do mundo se arrumam e os impulsos contraditórios da alma se harmonizam.

Porém, se tentamos explicar esse sentido para alguém, ele como que escapa entre as palavras. Precisamos persegui-lo de novo, relendo aquele romance ou tomando um outro da estante. A sensação da epifania é psicologicamente necessária, não importa que não dure tanto quanto gostaríamos – que simplesmente aconteça já nos dá vontade de repetir, eufóricos, a frase do poeta português: tudo vale a pena se a alma não é pequena.

Claro, a sensação da epifania pode ser tão valorizada que se torna um clichê kitsch, levando-nos a só querer ler ou adotar livros que “mudem a vida” da gente e dos alunos. Nesse caso, falamos da literatura como “ó, a literatura, que maravilha!”, ou seja, de maneira pomposa, acrítica e falsa. Mas esse tipo de deturpação do sentimento também acontece nas religiões estabelecidas.

Importa que a literatura de algum modo realiza nossas necessidades religiosas – logo, sim, a literatura é também religião, vale dizer, religação. Importa que continuemos religiosamente procurando o sentido “de tudo”. Como não o achamos, inventamos deuses. Como os deuses não bastam, inventamos o Deus único. Como o Deus único ainda não basta, não apenas o multiplicamos, através das múltiplas religiões, como inventamos personagens e narradores para contar a história dos personagens.

Todavia, ainda não basta...

... ainda bem!

 

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