Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 18/04/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

A aposta de Pascal é um bom argumento?

Gustavo Bernardo

O matemático francês Blaise Pascal é conhecido também como filósofo pelo seu livro Pensamentos. Nesse livro, ele formula um argumento que combina matemática e teologia. O filósofo parte do princípio que não se pode provar a existência ou a inexistência de Deus, o que obriga o ser humano a fazer uma escolha: acreditar ou não acreditar em Deus. Esta escolha não precisa ser uma aposta no escuro, ela pode ser lógica. O argumento de Pascal estabelece que é melhor apostar na existência de Deus do que na tese oposta: se ganhar, ganha tudo; se perder, não perde nada ou perde muito pouco.

O matemático comprova a sua tese pelo seguinte raciocínio: [1] se você acredita em Deus e Ele existe, quando você morrer seu ganho é infinito, a saber, a vida eterna no paraíso; [2] já se você acredita em Deus e Ele não existe, quando você morrer sua perda é finita, a saber, o tempo de vida que perdeu acreditando numa quimera; [3] se você não acredita em Deus e Ele de fato não existe, quando você morrer seu ganho é finito, a saber, o tempo de vida que não perdeu acreditando numa quimera; [4] mas, se você não acredita em Deus e Ele existe, então quando você morrer sua perda é infinita, a saber, nada menos do que a danação eterna no inferno.

A oposição entre o melhor e o pior resultado da aposta – ganho infinito versus perda infinita – não deixa alternativa senão apostar que Deus existe. Deste modo, mesmo quem não consegue acreditar deve agir como se acreditasse, por via das dúvidas. Com o tempo, é provável que a prática da fé leve à fé verdadeira. Na verdade, para o filósofo cristão o primeiro ganho da aposta se dá ainda em vida, com a conquista da fé verdadeira, única capaz de levar o indivíduo à felicidade plena.

A aposta de Pascal é um argumento do século XVII. Podemos dizer que se trata de um argumento forte por ser discutido até hoje, por ter sido pioneiro no campo da teoria das probabilidades, por marcar o primeiro uso formal da teoria da decisão e por fundar na prática o pragmatismo moderno.

Posso contestá-lo, no entanto, a partir das suas premissas implícitas e explícitas. O argumento contempla apenas duas possibilidades: ou Deus existe ou Deus não existe. Se Deus existe, ele é necessariamente o criador, o governador e o juiz de tudo o que existe, bem como infinito, onipotente, onipresente, onisciente e benevolente.

Entretanto, outras religiões que não a cristã admitem, por exemplo, vários deuses. Ou acreditam que haja um só Deus e que ele é benevolente, mas para preservar sua bondade não o aceitam como criador do universo, já que assim ele também teria criado o mal que há no universo. Encontramos quem postule a existência do Deus único e onipotente, sim, mas essencialmente mau; é o caso de Descartes, que disfarça sua hipótese herege com o nome de Gênio Maligno. Ainda há quem acredite em Deus mas não o considera infinito, o que significa que Ele pode não estar mais lá quando você “passar desta para a melhor”, que então não seria tão melhor assim.

Todas estas outras premissas são tão válidas ou tão descartáveis quanto aquelas em que a aposta de Pascal se baseia.

Posso contestar o argumento, também, por sua estrutura se basear pragmaticamente nas consequências do gesto de acreditar. Acreditar em Deus apenas porque o benefício possível dessa atitude é potencialmente maior do que as outras opções implica tanto um ponto de partida desonesto quanto supõe um Deus bem pouco onisciente, se O podemos enganar.

Talvez a crítica mais forte ao argumento de Pascal seja moral. Como disse Einstein, “se as pessoas são boas só por temerem o castigo e almejarem uma recompensa, então realmente somos uma espécie desprezível”. Para o filósofo Immanuel Kant, que escreveu no século XVIII, o ser humano deve, ao contrário, agir como se não existisse Deus, seguindo apenas suas convicções sobre o que considera certo.

Ele formulou o imperativo de que cada pessoa deve agir de tal modo que a sua ação possa ser eleita como lei universal, ou seja: eu só posso fazer aquilo que por sua vez possa ser aceito como lei universal para os outros. Mesmo que eu deseje muito, não posso matar alguém ou avançar o sinal de trânsito (que pode me levar a matar alguém) simplesmente porque nem se fosse um assassino aceitaria que todos pudessem matar à vontade, o que significaria que alguém poderia me matar (ou me atropelar) daqui a pouco.

Para Kant, Deus não entra na equação moral, até porque historicamente encontramos muitas pessoas que acreditam em Deus mas mesmo assim fazem todo o mal possível a seu semelhante. Da mesma forma, historicamente encontramos muitas pessoas que não acreditam em Deus mas mesmo assim fazem todo o bem possível a seu semelhante. Logo, não deveria bastar apostar que Deus existe para ganhar a vida eterna no céu – a menos que Deus de fato exista, mas seja tão vaidoso que sobreponha a crença Nele a qualquer outra consideração moral.

Como lembra José Geraldo Gouveia, a aposta de Pascal é considerada há séculos um argumento mortal contra o ateísmo, mas, como toda bala de prata, ela só funciona se o monstro for um lobisomem. A aposta funciona apenas se o apostador acredita num deus específico, o Deus judaico-cristão. O apelo às consequências “eternas” de se acreditar ou não em Deus é eloquente tão somente para pessoas que pensam com medo de pensar, ou seja: que preferem acreditar, o que implica recalcar a dúvida, a pensar, que sempre implica duvidar.

De todo modo, considero que a aposta de Pascal é sim um argumento forte, inclusive porque suscita contestações igualmente fortes. Se o relacionamos com o que Blaise Pascal desenvolve em todos os seus Pensamentos, o argumento se torna mais forte ainda, porque o filósofo francês fala da necessidade da religião em termos bem mais amplos, propriamente simbólicos. Não posso considerá-lo, porém, o argumento definitivo contra o ateísmo e a favor de Deus, até porque não me parece haver argumento definitivo contra ou a favor de nada: tais como as hipóteses em que se baseiam, argumentos são sempre provisórios e, consequentemente, geram contra-argumentos igualmente provisórios, que por sua vez geram...

Assim, continuamos duvidando, pensando e argumentando.

 

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