Inicial » Colunas » Como se faz literatura comparada? – II
O romance O seminarista, de Bernardo Guimarães, publicado em 1872, tem várias “peles” de leitura, à semelhança da cobra venenosa que aparece logo no seu segundo capítulo:
“A pequena Margarida, apenas na idade de dois anos, estando a brincar no quintal, desgarrou-se por um momento da companhia da rapariga que a vigiava e da de seu camarada de infância. Quando este deu pela falta e foi procurá-la, encontrou-a assentada na relva junto de uma fonte a brincar... com que, Santo Deus!... a brincar com uma formidável e truculenta jararaca. A cobra enrolava-se em anéis em volta da criança, lambia-lhe os pés e as mãos com a rubra e farpada língua, e dava-lhe beijos nas faces. A menina a afagava sorrindo, e dava-lhe pequenas pancadas com um pauzinho que tinha na mão, sem que o hediondo animal se irritasse e lhe fizesse a mínima ofensa. Se o Gênesis não nos apresentasse esse terrível réptil como cheio de astúcia e malícia seduzindo a primeira mãe da humanidade e fazendo-a perder para si e para toda a sua descendência as delícias do paraíso terreal, dir-se-ia que até a serpente tem seus impulsos generosos e também sabe respeitar a fraqueza e a inocência da infância.”
Na primeira “pele”, o romance decorre através de uma narrativa romântica ingênua, recheada de adjetivos melodramáticos. Refere-se a seus personagens misturando os clichês tanto do romantismo quanto do realismo e mostrando-os como marionetes determinados ora pelo destino ora pelo instinto. Fala da igreja, dos padres e dos seminaristas com especial enlevo, atribuindo-lhes as qualidades mais sublimes. O autor parece ainda mais reacionário do que José de Alencar, que já o era de sobra.
Na segunda “pele”, no entanto, o romance revela uma agressividade intensa, voltada especialmente contra a igreja, os padres e a família burguesa do seu tempo. Disfarçando-os através dos muitos adjetivos ora sublimes ora patéticos, na verdade faz seus personagens confessarem desabridamente os desejos que não podiam confessar, ao mesmo tempo que enfrentam desesperadamente o destino que não podem superar. Realiza a melhor tradição do romance anticlerical, embora a uma leitura desatenta pareça muito carola.
O escritor brasileiro, mais conhecido pelo romance A escrava Isaura, talvez usasse as duas “peles” para se proteger da censura e da mentalidade dominante do seu tempo. Entretanto, o efeito é tão canhestro que reconheço antes forte intenção irônica. Suas frases nem beiram o ridículo, elas chafurdam no ridículo! Com isso, no entanto, terminam por ridicularizar o pensamento pseudo-religioso da burguesia que o envolvia.
Este jogo irônico transparece no trecho que escolho para abrir a segunda parte de “Como se faz literatura comparada?”. O trecho acima traz o símbolo judaico-cristão do mal, a serpente que fez de Eva uma serpente para Adão, e o transforma em um fofíssimo animal de estimação com o qual brinca uma criança de apenas dois anos de idade. É certo que o narrador chama a cobra primeiro de “formidável e truculenta jararaca” e depois de “hediondo animal” e “terrível réptil”, mas as ações do animal são ao contrário suaves e doces, e como tal as reconhece a igualmente doce e suave Margarida. O truculento réptil chega a beijar o rostinho da menina, como se isso não fosse completamente inverossímil.
Margarida é filha de uma agregada na fazenda do capitão Antunes, pai do Eugênio que vem a ser o seminarista do título. No episódio da hedionda jararaca, o menino, pouco mais velho que ela, é o primeiro a ver o que acontece e grita chamando a mãe. A mãe do garoto chega junto com a mãe da menina, ambas armadas com inúteis pedaços de madeira: não podem atacar o animal com medo de que ele morda a garota.
Depois de alguns instantes de “cruel ansiedade”, a cobra se desenrosca e vai embora tranquilamente, sumindo na moita. Enquanto a mãe de Margarida abraça a filha e derrama lágrimas de gratidão pelo que lhe parece um milagre, a senhora Antunes chama os escravos e lhes ordena que achem e matem o animal.
Nesse momento, as duas mulheres empreendem um desigual debate teológico: enquanto a mãe de Margarida, dona Umbelina, defende a cobra porque não fez mal à sua filha, a mãe de Eugênio lembra-se piamente de que “sempre é um bicho que Deus excomungou” e recorda à comadre a tentação que Eva sofreu por parte de uma serpente igual ou parecida.
Dona Umbelina retruca que aquela cobrinha, em vez de morder, lambeu e afagou sua filha, para ouvir que “também a serpente do paraíso não mordeu Eva; arrastou-se a seus pés e afagou-a para melhor enganá-la”. A mãe da menina diz que ela é ainda muito pequenina para ser tentada pela serpente, portanto pelo mal, ao que a mãe do menino adverte: “é que já o bicho maldito a está pondo de olho para mais tarde fazer-lhe mal”.
Claro que a senhora Antunes vence a discussão, quer pela sua posição social na fazenda quer porque defende a doxa religiosa. Também é claro que um dos seus escravos mata a cobra. O episódio, no entanto, não apenas reaparece várias vezes na narrativa como a comanda. O jogo irônico de Bernardo Guimarães, jogando os adjetivos contra as ações dos personagens, mostra sub-repticiamente um mal bem diferente, a saber, exatamente aquele que fez da serpente o símbolo do mal.
Como todo romance, este também começa in media res, com várias idas e vindas no tempo. Fazendo o caminho inverso, voltamos nós do capítulo dois para o capítulo um, quando Eugênio tinha “de doze a treze anos” (a imprecisão lembra recurso usado à exaustão por Machado de Assis) e Margarida, pouco menos. A apresentação dos dois é emblemática:
“A menina era morena, de olhos grandes, negros e cheios de vivacidade, de corpo esbelto e flexível como o pendão da imbaúba. O rapaz era alvo, de cabelos castanhos, de olhar meigo e plácido e em sua fisionomia como em todo o seu ser transluziam indícios de uma índole pacata, doce e branda.”
O contraste entre a menina “morena” e o “alvo” rapaz sugere o primeiro adjetivo como um eufemismo para “negra” ou “mulata”. A condição de filha de uma agregada que se chama “Umbelina”, nome que significa “pequena sombra”, reforça essa interpretação. Esse contraste na verdade atravessa toda a literatura brasileira do século XIX, como sintoma expressivo das relações de poder e sexo no Brasil do período.
Se quiséssemos ampliar nosso exercício de literatura comparada, veríamos esse contraste reaparecer na história de Dom Casmurro, de Machado de Assis, quando encontramos mais um personagem seminarista. Como disse em trabalhos anteriores, vejo em Capitu também uma bela mestiça, apesar dos olhos claros com que o escritor a disfarçou. No entanto, deixemos Capitu para outra oportunidade.
Os dois pré-adolescentes de Bernardo Guimarães conversam sobre o destino de Eugênio, traçado pelos pais: tornar-se padre. A princípio, aceitam bem esse futuro, mas a conversa aos poucos se torna perigosamente sensual. Eles não parecem perceber isso, mas o narrador garante que os leitores percebam.
Quando o rapaz diz que a mãe já mandou fazer “batina, sobrepeliz, barrete e tudo”, a menina retruca que ele “há de ficar um padrinho bem bonitinho”. Quando Eugênio lhe cobra que ela assista à sua primeira missa, Margarida vai além e promete fazer sua primeira confissão somente a ele, porque “não tenho ânimo de me confessar a padre nenhum... Deus me livre!, tenho um medo... uma vergonha!, mas com você é outro caso, estou pronta”. A futura confissão anuncia um desejo de intimidade que desta forma já se confessa.
Esse desejo de intimidade total é recalcado durante os anos de seminário, o que só o faz crescer mais ainda. A chegada de Eugênio à instituição é retratada pelo narrador como uma passagem da claridade para a escuridão, do riso para a monotonia, da liberdade para a prisão: “eis o nosso herói transportado das livres e risonhas campinas da fazenda paterna para a monótona e austera prisão de um seminário no arraial de Congonhas do Campo, de barrete e sotaina preta, no meio de uma turba de companheiros desconhecidos, como um bando de anus-pretos encerrados em um vasto viveiro”.
O latim da escola dos padres reforça o vínculo que construo entre o Eugênio de Bernardo Guimarães e o José de Rubem Fonseca. Eugênio é inteligente mas sofre para aprender o latim, que lhe parece tão escuro e morto como o lugar em que se sente enterrado vivo: “aquelas definições e classificações tão frias e áridas, aquelas enfiadas enfadonhas de declinações e conjugações, como um bando de morcegos e corujas, recusavam-se obstinadamente a penetrar no cérebro inflamado do adolescente, onde como em um santuário ardente e luminoso fulgurava incessantemente a imagem de Margarida”.
O menino, um pouco mais velho, tenta sublimar a saudade que sente de Margarida ora dedicando-se ardorosamente aos estudos, ora arriscando ingênuos poemas bucólicos dedicados à sua paixão recolhida. Ora, claro que os poemas são encontrados e considerados provas de um crime abominável. O padre-diretor o chama para humilhá-lo, demonstrando uma enorme indignação que decerto esconde sua própria perturbação: o religioso chama o jovem de mascarado, de hipócrita, de libertino!
O narrador tenta defender seu personagem, ao lamentar: “que sermão para um menino de quinze anos e para uma alma tímida, boa e sensível como a de Eugênio”. O próprio rapaz se defende, dizendo não saber que fazer versos era proibido e que, mesmo assim, nem os enviara para a Margarida. O padre-diretor retruca, apoplético:
– Porque não pôde... e que importa isso?... bastava pensar em tais coisas para cometer um grande pecado, e Vm. não só pensou como escreveu. Essas paixões pecaminosas e torpes não se devem aninhar no coração de ninguém, e muito menos no de um menino que se destina ao estado eclesiástico. Meu amiguinho, se pretende continuar com estas abominações, arranque já do corpo essa batina, deite fora esse barrete que está profanando e vá-se com Deus para a casa dos seus pais. Não consentiremos que esteja aqui pervertendo os outros com seu pernicioso exemplo. Pode estar certo, que puniremos mais severamente a hipocrisia do que o escândalo. Este não é tão perigoso.
Como vemos quase 150 anos depois, a igreja continua achando escândalos, como o dos padres pedófilos, não muito perigosos, tanto que os acoberta. No romance do século XIX, o rapaz cai de joelhos aos pés do padre para lhe pedir desesperadamente perdão. O religioso decide dar mais uma chance a Eugênio, não sem antes lhe prescrever uma semana de jejum e o pior de todos os castigos: queimar com suas próprias mãos aqueles versos sacrílegos.
Nesse momento começamos a entender porque o seminarista de Rubem Fonseca se torna um matador: para vingar o seminarista de Bernardo Guimarães. Não imagino outra razão para dar a seu romance exatamente o mesmo título do romance do seu antecessor ultrarromântico.
O padre-diretor, portanto a religião burguesa do seu tempo, ataca violentamente o menino por seus pensamentos, por seus desejos e por sua poesia, atacando desse modo, por extensão metonímica, a juventude, o amor e a própria literatura! Logo, é preciso defendê-lo criando um personagem vingador, melhor ainda: um seminarista matador.
A literatura assim se vinga da condenação que sempre sofre por parte da religião, esta religião que começa queimando livros para depois levar pessoas vivas à fogueira. O padre-diretor realiza, com o jovem Eugênio, uma mini-inquisição, no entanto tão devastadora quanto aquela que matou tantos homens e tantas mulheres. Queimar o poema que escreveu para Margarida representa, para Eugênio, queimar vivo e quente o seu próprio coração – que o leitor me perdoe o clichê melodramático!
Eugênio, esmagado pelas palavras do padre-diretor, tenta tirar a sua amiga de infância da mente e do corpo. Seu confessor ajuda-o dizendo que a menina é para ele o que a serpente foi para Eva, para que ele resista como Eva não resistiu, se afinal era fraca como todas as mulheres.
Assustado, o rapaz se lembra da cobra que se enleou no corpo de Margarida quando ela era ainda bem criança, bem como das palavras terríveis que sua mãe proferiu então. O que antes parecera milagre agora se afigura uma ação do próprio diabo. Ele então se martiriza, machucando o próprio corpo: para atender à expectativa dos padres e dos pais, precisa negar o físico, a mente, a alma, enfim, a si mesmo.
O narrador não economiza adjetivos para mostrar a destruição que a igreja promove naquele jovem: mostra-o “magro, pálido, alquebrado”, uma verdadeira “múmia ambulante”. O brilho dos grandes olhos azuis do menino fica de todo amortecido: “o adolescente de dezesseis anos parecia um ancião às bordas da sepultura”. Seu espírito se torna “moroso e pesado”. A imaginação, antes “viva e risonha”, logo queima “as asas de ouro na luz da candeia fumacenta do estudo e da oração”. O caráter benigno vira “seco e frio, desconfiado e sorumbático”.
O narrador conclui, deprimido, preparando o final trágico do próprio romance: “eis como uma educação fanática e falseada, abusando de certas predisposições do espírito, lança naquela alma o germe de uma luta íntima e cruel, que fará o tormento de toda a sua vida e o arrastará talvez à última desgraça, se a misericórdia divina dele não se amercear”, isto é, não se compadecer.
Um cientista já disse que homens bons costumam fazer coisas boas enquanto homens maus costumam fazer coisas más. No entanto, a religião existe para que homens bons façam coisas más. O comentário é ferino, mas a história o corrobora. Há melhor exemplo de homens bons fazendo coisas más em nome da religião do que a educação celibatária de Eugênio? A crítica à igreja e à religião não podia ser mais categórica, mas ela ainda atinge a própria divindade: o narrador observa que a “misericórdia divina” não dá o ar da sua “graça”, com o perdão do ímpio trocadilho.
Depois de quatro anos de martírio, o rapaz tem permissão de voltar à casa dos pais. Seu corpo e sua alma se encontram devidamente arrasados pela palavra dos padres, palavra esta que eles supõem ser também a de Deus. A figura mortificada de Eugênio contrasta violentamente com a beleza esfuziante de Margarida, apresentada como “o tipo mais esmerado da beleza sensual, mas habitado por uma alma virgem, cândida e sensível. Era uma estátua de Vênus animada por um espírito angélico”.
A combinação de inocência e sensualidade é fatal, jogando por terra todo o trabalho dos padres. A paixão e o desejo retornam maduros. Acabam se encontrando no lugar preferido da infância e se declarando um ao outro. Eugênio confessa não querer mais ser padre, porque “para ser padre é preciso que eu não olhe mais para você, que não te queira mais bem, e que nem me lembre de você... e isso é coisa que eu não posso, é teimar à toa, não posso fazer”.
Margarida fica contente com a mudança porque não queria mesmo ser mula sem cabeça, o que desconcerta o rapaz. Ela então lhe conta a crendice popular, segundo a qual as amantes dos padres, ao morrer, transformam-se em mulas sem cabeça e assombram os viajantes à noite. Riem-se muito daquilo e logo trocam juras de amor.
O narrador, porém, tantaliza o leitor, não deixando que se beijem dessa feita, principalmente por causa da timidez do menino: “os beijos apenas lhes estremeciam na ponta dos lábios, como tenros passarinhos batendo as asas implumes à beira do ninho, ansiando, mas nunca ousando desprender o voo pelo espaço”.
Eles se encontram outras tantas vezes, despertando a preocupação das mães de ambos, que tentam pôr limites. As admoestações maternas, no entanto, só jogam lenha na fogueira do desejo, como aliás sempre acontece. Os jovens passam a se encontrar escondidos, à noite, no meio do mato, dando finalmente livre expansão ao desejo reprimido:
“... aqueles beijos, que à luz do sol apenas esvoaçavam tímidos à flor dos lábios e morriam no limbo dos desejos, soltaram o voo, encontraram-se através das grades, e imprimiram-se férvidos e trementes nos lábios de um e outro amante. As meigas falas que ali se ciciaram em segredo, os arrulhos estremecidos, os suspiros abafados que ali se exalaram, a noite e a solidão os receberam em seu seio segredoso, e os dispersaram nos ares de envolta com o sussurro da folhagem.”
Os “suspiros abafados” são suficientes para sugerir muito mais do que beijos. O romancista não precisa “descer” a mais detalhes. O segredo, porém, não permanece segredo por muito tempo, chegando aos ouvidos do pai. Ele o manda de volta para o seminário por mais muitos anos, e ainda ameaça despejar Umbelina e Margarida de suas terras.
No seminário, os padres tentam novamente dobrar sua alma a favor do Crucificado, como dizem, mas o rapaz se mostra cada vez mais triste e distante da vocação sacerdotal. Os educadores então se comunicam com o pai, insistindo que ele case a jovem Margarida com quem quer que seja, para não perder Eugênio para a tentação do mundo.
O pai de Eugênio tenta atender à demanda dos padres, mas Margarida não aceita de modo algum a imposição, enquanto sua mãe parece ficar a seu lado. Enraivecido e achando que ambas estão de olho nas suas posses, o capitão Antunes cumpre a ameaça e as expulsa da fazenda.
O nosso melodramático narrador compara a expulsão da menina da fazenda a nada menos do que à expulsão de Eva do paraíso. A expulsão de Margarida da sua casa, todavia, é ainda pior do que aquela que sofreu a primeira mulher do mundo: enquanto Eva “sentia na sua a destra do esposo, que a afagava, e lhe sustinha os passos vacilantes pelas tristonhas e escabrosas sendas do exílio”, Margarida “porém, ai dela!... despedindo-se daquele éden saudoso da sua infância, dizia também eterno adeus ao bem-querido de seu coração”.
Fica claro que Bernardo Guimarães retoma a narrativa fundadora da religião judaico-cristã para reescrever suas bases e assim solapá-la.
No seminário, passam-se os anos e Eugênio não tem quaisquer notícias de sua amada. Mostrar-se-ia (a mesóclise é condizente com esta narrativa) um excelente seminarista, se ainda não lutasse contra a sua paixão. Quando acha que começa a vencer a si mesmo e à serpente que o atormenta, Eugênio recebe a notícia, na verdade mentirosa, de que Margarida se casara.
O falso casamento da amada, ao invés de destruir de vez a sua paixão, volta a acendê-la. Sente-se traído e espelha-se no seu narrador, comparando-se ao próprio Adão: “eu te acompanharia de bom grado pelos ásperos e tenebrosos caminhos do desterro, como Adão acompanhou a sua Eva; suportaria alegre todos os trabalhos e tribulações da vida, se sentisse tua mão enlaçada com a minha e o teu coração palpitando junto ao meu!”.
O amor puro se mistura ao ciúme, o que só reforça a paixão. Decide de vez se tornar padre, mas antes por ódio do que por amor a Deus.
Vivendo sozinha com a mãe agora doente numa casa muito pobre, Margarida não se casa nem esquece seu amor, embora fosse muito difícil preservá-lo no Brasil daquele tempo: “desprotegida como se via, sua pureza navegava entre mil riscos em um mar semeado de cachopos e sirtes traiçoeiras e, como lâmpada exposta a todos os ventos, mantinha-se como por um milagre”. Muitos aparecem querendo ora casar com ela ora arrastá-la para a prostituição.
Nessa luta contra o mundo, a bela jovem resiste, mas não sem consequências: aos poucos, adoece. Nesse ínterim, sua mãe morre. Meses depois, chega-lhe a informação de que Eugênio tomara ordens. Perdendo as esperanças, perde também o fio de saúde que ainda tinha. Certo dia, sente-se tão mal que manda chamar um padre, porque quer se confessar. Na tarde desse mesmo dia chega na vila um jovem sacerdote melancólico, com duas rugas prematuras lhe formando uma cruz no meio da testa.
Claro, tinha de ser Eugênio, o autor não deixaria por menos. Naturalmente, ele é que é chamado para ministrar a extrema unção a uma mulher à beira da morte. Quando encontra a jovem deitada e a reconhece, o rosto do padre “cobriu-se de medonha palidez e suas feições se transtornaram de modo horrível”.
Tomado por sentimentos contraditórios, pergunta onde está o marido de Margarida, para então descobrir a terrível mentira de que ambos eram vítimas. Enquanto ele se desespera, a mulher alegra-se de vê-lo pelo menos uma última vez, como se um Deus irônico atendesse ao desejo da menina que ela fora um dia: confessar-se apenas a seu amiguinho de infância.
Eugênio, todavia, não quer confessá-la, sentindo-se menos padre do que nunca. Confiante de que ela não está tão mal, sai e diz que voltará no dia seguinte. Longe daquela moradia paupérrima, percebe que trocou um tesouro incomensurável pela coroa do martírio que não se vê com forças de suportar. O desejo o assola como nunca antes, mais ainda do que o horror da armadilha que os pais e os padres lhe pregaram.
Quando volta à casa da moça, no dia seguinte, encontra-a aparentemente melhor, mas ela lhe assegura que se trata daquela última visita da saúde que recupera as forças da pessoa para matá-la com mais tranquilidade. Acabam se abraçando, alucinados, sem que ele a confesse.
Na verdade, ambos parecem “pecar”, porque vivem “um momento de suprema felicidade!... depois o inferno!, que importa!... ”. Novamente, com poucas e sugestivas palavras, o narrador nos conta que os jovens tiveram outro momento de amor, a despeito de Deus, da religião e da família.
No dia seguinte, um domingo, antes de rezar a sua primeira missa, alguém pede ao jovem padre para encomendar um cadáver a Deus. O corpo já se encontra na igreja. Ao chegar na cabeceira do caixão, Eugênio quase cai por terra, se não fosse o sacristão a escorá-lo: o corpo é de Margarida!
Sem saber direito o que faz e como faz, desempenha a fúnebre tarefa e volta à nave para celebrar a sua primeira missa. É nesse momento que Bernardo Guimarães dá o fecho de ouro, ou de horror, para o seu romance:
“A missa do padre novo, que gozava de uma grande nomeada de sabedoria e santidade, tinha atraído à igreja um numeroso e brilhante concurso. O pai e a mãe de Eugênio estavam no auge do contentamento. Chegando à escada que sobe para o altar-mor o padre parou, e quando já todos de joelhos esperavam que rezasse o “introito”, com assombro viram-no arrancar do corpo um por um todos os paramentos sacerdotais, arrojá-los com fúria aos pés do altar, e com os olhos desvairados, os cabelos hirtos, os passos cambaleantes, atravessar a multidão pasmada e sair correndo pela porta principal! Estava louco... louco furioso.”
Esse final dramático nos traz de volta ao romance de Rubem Fonseca, para torcermos pelo sucesso da vingança literária perpetrada pelo matador que se intitula “o Seminarista”.