Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 13/10/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

Qual é o melhor método para escrever? - I

Gustavo Bernardo

A palavra “método” é formada por “meta”, que significa “através de”, e “odos”, que significa “caminho”. Portanto, “método” é o caminho através do qual se chega perto de onde se quer chegar.

Para estabelecer um método de redação, antes preciso saber aonde quero chegar com ela. Diz-se que escrevemos para comunicarmos o nosso pensamento. Entretanto, antes de comunicarmos o nosso pensamento, precisamos pensar. Se transferimos o nosso pensamento exatamente como ele nos vem à mente, a nossa redação se mostra caótica. Precisamos organizar o pensamento, e uma das melhores formas de fazê-lo é escrevendo.

Logo, o primeiro objetivo da redação é o de organizar o próprio pensamento: escrevemos para pensar melhor. Comunicar o que pensamos para os outros se mostra, assim, o segundo objetivo da redação. Para atender o primeiro objetivo, precisamos pensar como pensar melhor. Para atender o segundo objetivo, precisamos pensar sobre os nossos leitores, tanto ideais quanto reais.

Deixo os leitores para uma próxima crônica. Falemos hoje de métodos de pensamento. Identificamos na tradição ocidental dois métodos fundamentais de raciocínio: o indutivo, que caminha do particular para o geral, e o dedutivo, que caminha na direção inversa, do geral para o particular.

A indução se apoia na observação. Ora, nós só podemos observar o que for particular, isto é, o que estiver à volta de nossa existência particular. Também só podemos observar o que for concreto, isto é, o que nossos sentidos limitados podem captar. Relacionando nossas observações particulares e concretas, porém, podemos abstraí-las e generalizá-las. Podemos tecer conclusões abstratas e gerais.

Os dados concretos são conhecíveis, e se os observarmos tornam-se conhecidos. A conclusão que desejamos é desconhecida, mas podemos elaborá-la e assim fazê-la conhecida. Logo, pode-se dizer também que no método indutivo partimos do conhecido para o desconhecido.

Observamos não somente coisas. Observamos igualmente fenômenos, acontecimentos. No entanto, não podemos observar as causas dos acontecimentos. Observamos tão somente os seus efeitos. Logo, pode-se dizer ainda que no método indutivo partimos da observação dos efeitos para chegarmos a suas causas.

O par causa-efeito deve ser sempre expresso no plural. A causa, em todos os fenômenos que valem a pena ser investigados, não é uma: são sempre muitas causas. Da mesma maneira, diversos efeitos de diversas causas se conectam entre si. Do que se conhece até hoje das investigações indutivas, chegamos nunca a uma causa apenas, mas sempre a um conjunto complexo de causas, tão complexo que as causas do fenômeno A podem ser ao mesmo tempo efeitos do fenômeno B. Este conjunto complexo de causas e efeitos forma a estrutura dos acontecimentos.

Podemos então esboçar um pequeno esquema dos caminhos indutivos:

 

·        particular              →           geral

·        concreto               →           abstrato

·        conhecido             →           desconhecido

·        efeitos                  →           causas

 

Há dois recursos indutivos básicos: a observação direta e o testemunho autorizado.

No primeiro, a pessoa confia nos seus próprios sentidos para observar o que a cerca e daí extrair conclusões sobre o que ainda não sabia. No segundo, a pessoa elege alguém que já tenha feito observações pertinentes ao que lhe interessa, considerando seus testemunhos como autorizados.

O segundo recurso é indispensável, uma vez que ninguém pode observar tudo em todos os tempos e em todos os lugares. Para investigar questões históricas, não podemos contar apenas com a nossa observação, a menos que dispuséssemos de um bom túnel do tempo. Sem esse túnel, só podemos recorrer aos testemunhos dos outros. Naturalmente, devemos fazê-lo de forma crítica e atenta, duvidando sempre – como aliás devemos duvidar sempre das nossas próprias observações.

Vamos desenvolver os dois recursos através da investigação rápida de um determinado tema: violência.

Para fazê-lo indutivamente, primeiro se observam os dados particulares conhecidos – os efeitos. Os efeitos imediatos da violência são suas vítimas. Olho à volta, procurando momentos em que eu, parentes, amigos e conhecidos nos tenhamos considerado vítimas de violência. Na presente história urbana brasileira, certamente vários de nós teremos sido assaltados ou agredidos de alguma forma. Na aparente maioria das vezes, os assaltantes e agressores pertencem às camadas despossuídas da sociedade – provavelmente, são negros e pobres. Logo, são eles a causa da violência.

Mas... calma. O caminho do particular para o geral não se atravessa em apenas dois passos. Dois passos apenas servem àquela pessoa que precisa de uma opinião qualquer  para gastar no bar à noite. Quem se dispõe a articular sua expressão dá estes dois passos, volta a dúvida sobre eles e deles desconfia. Assim, permitam-me desconfiar das observações acima.

O meu olho e o olho de meus parentes e amigos não seriam, por acaso, o mesmo olho? O olho de uma mesma classe, média, com poucas posses mas com posses, cujo ponto de vista vem marcado pelo medo de perder, ou seja, de roubarem, este pouco que ainda tem?

Se tentar ampliar e estender o olho de minha classe através dos meios de comunicação, ainda não estarei me ampliando muito. O olho da televisão, por exemplo, embora em cores, é a soma dos olhos dos homens concretos que a dirigem e que nela trabalham – ainda homens daquela mesma classe.

Porém, se mudo a perspectiva coleto fatos novos e diferentes daqueles. A saber: das 600 mil crianças que morrem anualmente no Brasil, 69% são vítimas diretas ou indiretas da subnutrição. Das 600 mil crianças que morrem anualmente no Brasil, uma porcentagem ainda maior é composta por crianças negras e pobres. Logo, descobrimos que a subnutrição é uma cruel assassina e descobrimos também que os negros e os pobres se encontram no outro lado: o lado dos efeitos da violência. O lado das vítimas.

Os fatos e as mortes acima foram pinçados do livro “Política da repressão”, de Luigi Moscatelli. Tive necessidade de recorrer a outros testemunhos, para pensar em mais de uma perspectiva. A minha perspectiva limitada é isso mesmo: limitada e insuficiente. No primeiro momento, identifiquei nos miseráveis a causa da violência. No segundo momento inquieto, precisei me perguntar se não será a miséria efeito ainda – efeito de violências mais amplas.

Se o método indutivo se apoia na observação dinâmica dos fatos, as conclusões que dele se extraiam estarão melhor fundamentadas quanto maior o número de fatos colhidos e quanto melhor a qualidade das relações que estabeleçamos entre os fatos. Entretanto, por mais extensa que seja a nossa investigação, nunca o será o bastante para nos garantir a verdade absoluta.

O método indutivo tem os seus limites. Ao raciocinar a partir dos fatos, ele nos entrega conclusões provavelmente verdadeiras, mas não necessariamente verdadeiras. No mais das vezes, existem hipóteses alternativas àquelas com as quais nos apegamos, indicando caminhos diversos para a solução.

Demonstrei a aplicação do método no tema "violência". Demonstro os seus limites com exemplo diferente, para aliviar a barra. Que tal verruga? Verruga é um problema para muita gente, e problemas estão à cata de soluções. Muitos acreditam em eliminar as verrugas friccionando-as com cebolas. Acreditam, porque viram muitas curas dessa espécie de fato acontecerem, confirmando a crença. Fatos objetivos nos levam a conclusões objetivas, certo?

Atenção: levam-nos a conclusões objetivamente prováveis. Se exercitarmos de novo a dúvida, e duvidarmos das propriedades terapêuticas das cebolas, poderemos lançar uma hipótese alternativa, do tipo: as verrugas talvez sejam meros sintomas psicossomáticos. Neste caso, como as urticárias, elas representariam o aflorar na pele, na superfície, de problema interno profundo, como medo do fracasso, ou de rejeição, ou de ser feio.

Daí, como a maioria dos sintomas psicossomáticos (explosão no corpo, através de problemas físicos aparentes, de doenças psicológicas reais e inconscientes), elas seriam passíveis de cura por meio da sugestão. Qualquer método de tratamento passa a ser eficaz, desde que o paciente nele acredite. Seria acreditar no tratamento, e não propriamente o dito cujo,  que produziria a cura.

A hipótese alternativa checa o grau de probabilidade das cebolas, mas também precisa de fatos para confirmá-la. Um modo seria levar tantos pacientes a acreditarem num outro tratamento, tipo friccionar uvas verdes. Ou propor diretamente o enfrentamento do problema psicológico subjacente. Se as uvas verdes ou o conscientizar do medo resolverem, derrubando as verrugas, então mostrou-se muito fraca a conclusão anterior e fortalecida esta nossa – por enquanto.

Na próxima crônica, andaremos pelo outro caminho do pensamento e da redação: o método dedutivo.

 

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