Inicial » Colunas » Qual é a diferença entre ética e moral? - II
Na primeira crônica publicada com este mesmo título, eu contava a história de como Maomé salvou a vida de um homem.
Esse homem, perseguido por assassinos, pede ajuda ao profeta. O profeta, sentado à beira do caminho, orienta-o a continuar fugindo e muda de lugar, sentando-se em outra direção. Quando os assassinos chegam, eles sabem que o profeta só pode dizer a verdade e por isso lhe perguntam se viu o fugitivo. Maomé responde que, desde que está sentado ali, não viu passar ninguém. Os perseguidores acabam indo pelo caminho errado.
Se o profeta seguisse as regras morais sem pensar, ele teria de dizer a verdade, mesmo que a verdade tivesse como consequência a morte de uma pessoa inocente. Mas ele encontrou uma maneira esperta para cumprir a regra moral de dizer sempre a verdade e, ao mesmo tempo, ajudou o fugitivo.
Uma situação muito semelhante foi usada pelo filósofo alemão Immanuel Kant. Ele escreveu um livro fundamental sobre a tensa diferença entre ética e moral, chamado Crítica da razão prática. O texto kantiano não é de fácil leitura, mas tentarei explicá-lo, devido à sua importância para qualquer discussão sobre justiça e direito.
A situação é a seguinte: eu estou tranquilo na minha casa. O meu irmão bate à minha porta, apavorado. Agentes de um regime fascista estão atrás dele para prendê-lo e provavelmente torturá-lo e matá-lo, embora ele seja inocente de quaisquer acusações.
Logo depois, são esses agentes que batem à minha porta. Meu irmão corre a se esconder no banheiro. Atendo os agentes, que me perguntam educadamente se o meu irmão está escondido na minha casa.
Encontro-me perante um dilema ético: se falar a verdade e assim atender à regra moral de dizer sempre a verdade, entrego meu irmão à morte; se mentir e assim salvar o meu irmão da morte, desobedeço à regra moral, que tanto prezo, de dizer sempre a verdade.
Pois bem: para Kant, eu deveria dizer a verdade sempre e em qualquer situação, porque a consequência moral de se mentir é sempre mais grave do que qualquer consequência prática. Portanto, eu deveria revelar aos agentes fascistas que meu irmão está escondido no banheiro.
O leitor provavelmente se escandaliza com o exemplo. Primeiro, porque a narrativa parece ter um furo: agentes fascistas não perguntam educadamente nada a ninguém, saem logo quebrando portas e pessoas. Segundo, porque a filosofia moral que costuma orientar os nossos gestos é antes consequencialista ou utilitarista, e não universalista como a de Kant.
Primeiro, peço para o leitor relevar a inverossímil educação dos agentes fascistas. A narrativa é apenas uma experiência de pensamento do tipo “o que você faria se...”. Situações reais devem ser discutidas caso a caso, mas essa é uma situação hipotética, posta justamente para nos orientar quando temos de enfrentar situações reais.
A situação hipotética constitui o que Kant chama de “ideia reguladora”. Trata-se de uma ideia posta pela razão, com o objetivo de melhor regular os pensamentos, as palavras e as obras, à maneira de um horizonte desejado que jamais se deva perder de vista, sabendo-o, todavia, sempre horizonte. Precisamos tomar o horizonte como meta ideal, mas também sabemos que todo horizonte se afasta quando dele tentamos nos aproximar.
Segundo, reconheço que a lógica utilitarista é, como diz o nome, útil para enfrentar situações como a do meu irmão perseguido. Se eu mentir para os agentes fascistas, eu os engano e ainda salvo a vida do meu irmão.
A primeira consequência da minha mentira não é tão ruim assim, se os agentes fascistas mentem o tempo todo eles mesmos, para não lembrar que fazem coisa pior. A segunda consequência, porém, é muito boa, se salvo a vida de um homem que, ainda por cima, é o meu irmão.
Kant, entretanto, não concorda com esse raciocínio e essa atitude. Como um bom universalista, ele parte da ideia reguladora do dever puro. Ele desdobra a ideia desse dever puro em dois imperativos: o imperativo categórico e o imperativo prático.
O imperativo categórico estabelece: aja apenas segundo a máxima de que a sua ação, qualquer que seja ela, se torne uma lei geral e universal.
O imperativo prático, por sua vez, estabelece: aja de tal maneira que a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa de qualquer outro, seja usada sempre como um fim em si e nunca como um meio para atingir qualquer outro objetivo.
Os dois imperativos se complementam, na intenção de orientar todas as escolhas morais. Não se aplicam, porém, com facilidade. Ao contrário, exigem o máximo de rigor.
O primeiro imperativo é o mais geral e o mais importante, por isso deve ser tomado categoricamente como absoluto. Não devo agir desta ou daquela maneira apenas porque o tirano ou a sociedade mandam. Uma ação que somente obedece a outrem é apenas uma reação que não tem qualquer valor moral.
Para o cristão Kant, não devo agir assim ou assado nem mesmo porque Deus manda. Uma ação que somente obedece a Deus continua a ser apenas uma reação sem valor moral. Mesmo o cristão deve fazer o que é certo porque ele acha certo, e não porque a igreja ou Deus lhe deram essa ordem.
Não devo matar porque é um dos principais mandamentos de Deus ou porque se matar eu vou preso, mas sim porque a ação de matar não pode em caso algum se tornar uma lei geral e universal. Até mesmo um assassino convicto sabe que o assassinato não pode se tornar uma regra geral.
Para lembrar os casos de Maomé e do meu irmãozinho querido, não devo mentir porque papai me disse que não se deve mentir, mas sim porque a ação de mentir não pode em caso algum se tornar uma lei geral e universal. Por definição, a mentira não pode se constituir em regra universal: mesmo que eu minta o tempo todo para enganar os outros, não posso admitir que os outros mintam para mim, se eu não quero ser enganado. Logo, nem o mentiroso contumaz admite a mentira como lei universal das relações humanas.
Matar e mentir, portanto, são sempre transgressões à lei e não podem ser outra coisa. Caso se tornem leis universais, nenhuma sociedade sobrevive. Consequentemente, nenhuma lei se torna possível.
O segundo imperativo é prático porque chama a atenção para o fato de que o Outro, com maiúscula porque representa todos os meus “outros”, não deve jamais ser meio, e sim sempre o fim de qualquer ação que o envolva.
Não devo, por exemplo, dizer “eu te amo” para a pessoa com quem estou apenas para que ela me responda de volta “eu também te amo” e assim amenize um pouco a minha enorme carência afetiva. Ao contrário, posso dizer “eu te amo” quando e somente quando eu queira demonstrar o meu amor por alguém, jamais para sugerir que estou carente e preciso desesperadamente de alguém que diga que me ama.
O próprio Kant admite, como seria de se esperar, que os imperativos são ideais tão difíceis de atingir quanto os horizontes, mas ao mesmo tempo são tão necessários quanto os mesmos horizontes.
Quando lhe perguntaram o que faria se ele próprio estivesse na situação que descrevi, sua resposta foi humana: não sei o que eu mesmo faria, mas o que eu deveria fazer era dizer a verdade fosse qual fosse a consequência.
Naturalmente, essa conversa não termina aqui. Os argumentos que sustentam os imperativos kantianos são muito fortes, mas tanto a realidade quanto a linguagem humana são muito complexas.
As variáveis que produzem a chamada realidade são tantas que nenhum argumento humano é capaz de dar conta delas sempre. Do mesmo modo, a linguagem humana é que produz o que chama de verdade. Ora, a linguagem humana é eminentemente metafórica, ou seja, ela se encontra na ordem da ficção. Logo, a Verdade maiúscula e as verdades particulares se encontram no campo da ficção.
Por isso, precisamos continuar pensando, escrevendo e argumentando, para podermos caminhar na direção do horizonte das ideias e dos ideais. Claro, esse horizonte continuará se afastando de nós, como sempre.