Inicial » Colunas » Por que os professores acham que os alunos não leem nada?
Uma das reclamações mais repetidas dos professores em geral,
de literatura em particular, é a de que os seus alunos não leem nada. A
reclamação procede?
A minha resposta é: “não procede”. Aceito que muitos alunos
não leiam a maioria dos textos que seus professores exigem que eles leiam, mas
isso não significa que eles não leem nada.
Sabemos há muito que todo discurso que se repete configura
sintoma de outra coisa. A repetição esconde essa outra coisa, mas ao mesmo
tempo a revela. Claro, é mais difícil percebê-lo quando é o nosso próprio
discurso que se repete, mas façamos um certo esforço.
Quando um professor diz que os alunos da sua turma não leem,
comete uma generalização apressada. Na verdade, ele só pode afirmar que os
seus alunos não leram os textos que ele mandou que eles lessem. Para sustentar
sua reclamação, seria preciso ainda averiguar se eles também não leram os textos
que todos os demais professores daquele período mandaram que os mesmos alunos
lessem.
Parece-me que a maioria dos alunos lê alguma coisa, fazendo
suas opções de acordo com sua possibilidade de tempo, de acordo com sua
necessidade de atender primeiro os professores de mão mais pesada, e de acordo com
seu próprio gosto. Além disso, muitos alunos querem e precisam ler outras
coisas, diferentes daquelas que os professores exigem. As melhores leituras são
as leituras autônomas.
Estou há várias décadas na profissão, mas não me lembro de
uma discussão séria a respeito de um limite razoável para a quantidade de
leituras, de provas e de trabalhos de que um aluno daria conta. No caso
específico do nosso curso de Letras na UERJ, em especial quando noturno, esquecemos
facilmente que muitos de nossos alunos trabalham 8 horas por dia em profissões
que nem lhes permitem ler, nem veem com bons olhos essa atividade, que tão de
perto lembra o ócio ou o lazer.
Como ser “exigente” é uma qualidade muito apreciada em nosso
meio, cada professor se considera mais exigente quanto mais leitura exija de
seus alunos. Entretanto, somos bem pouco exigentes, me parece, quanto a nós mesmos
e quanto à avaliação da circunstância que nos envolve e aos alunos. Não
percebemos, por exemplo, que alguns alunos até leem, mas não entendem o que
leem, o que deveria aumentar a nossa responsabilidade de professor.
Cabe-nos sempre, desde a classe de alfabetização até o
doutorado, ensinar a ler. Para fazê-lo, precisamos: dar o exemplo, lendo junto
com os alunos, em sala; oferecer leituras que levem o aluno a níveis cada vez
mais complexos de compreensão. No fundo, dizer que os alunos não leem nada
equivale a afirmar que nós ensinamos, eles é que não aprendem.
Ora, se os alunos não aprendem nada, é porque nós não lhes ensinamos
nada – acaciano, diria o conselheiro que motivou a criação do adjetivo. Logo,
se os alunos não leem nada, é porque os professores não ensinamos esses alunos
a ler coisa alguma.
Por que essa obviedade não é óbvia? Talvez porque o professor,
esmagado pelas múltiplas exigências da profissão, devidamente somadas ao
desrespeito social crescente, se sinta bastante ressentido: nem seus queridos
alunos o respeitam!
O lugar do professor é sem dúvida um lugar de poder, mas o
poder do professor é cada vez menor. Sentindo seu poder progressivamente
diminuído, reduzido às vezes a proporções liliputianas, o professor não
comemora o fato de que alguns alunos sempre leem o que ele pede, preferindo
generalizar o mal estar a partir daqueles que não leram porque não quiseram,
porque não puderam, ou porque não conseguiram. Escolhendo ver apenas por lentes
negativas, o professor reclama repetidamente das consequências do problema, o
que bloqueia e recalca a reflexão mais calma sobre suas verdadeiras causas.
No instituto de letras em que trabalho, alguns alunos se
organizaram para pedir disciplinas de prática artística da escrita. Ao
contrário de outros faculdades de artes, como música, teatro ou dança, no curso
de letras alunos e professores somos fortemente desestimulados a “fazer”
literatura, como se essa prática atrapalhasse o estudo “sério” da disciplina.
Ora, muita gente escolhe o curso de letras antes porque
gosta de escrever poesia e ficção, menos porque quer ser professor algum dia.
Se o desejo de escrever literatura dessa gente for devidamente recalcado, não é
absurdo pensar que ao final todos se transformem em professores frustrados,
naturalmente aptos a descontarem sua frustração em quem, senão nos alunos futuros?
Reparem que não mudei de assunto. A primeira reação de
alguns professores àquela demanda dos alunos foi recorrer a uma variante da mesma
reclamação que abre o meu artigo: como esses meninos e meninas querem escrever,
se não leem nada do que a gente manda eles lerem?
Já disse que essa generalização é apressada e equivocada.
Acrescento que a concepção de leitura que subjaz ao comentário é mecanicista e
atrasada. Ler muito não leva necessária e mecanicamente a escrever. Ler muito
leva, no máximo, a ler muito. Já disse há décadas, num livro chamado “Redação
inquieta”, que o ato de ler é metonímia da vontade de entender o mundo,
enquanto o ato de escrever é metonímia da vontade de mudar o mundo.
Querer entender o mundo, e mesmo entendê-lo, não implica nenhuma
vontade de mudá-lo. Querer mudar o mundo, no entanto, parte do entendimento
prévio de que as coisas não deveriam permanecer assim. Em outras palavras: ler
não leva necessariamente a escrever, mas escrever supõe necessariamente leitura
– não necessariamente a nossa leitura, que fique claro (até pela repetição insistente
do mesmo advérbio). Em outras palavras: quem quer escrever o quer porque já leu
o mundo, já leu textos, já leu livros, ainda que não aqueles que lemos ou que
mandamos os alunos lerem.
Em nossas sofisticadas teses, comentamos embevecidos “a
poética da escrita como leitura” em autores como Cervantes, Machado, Borges,
Clarice e tantos outros, sem estabelecer nenhuma relação disso com a nossa
prática pedagógica. Ora, a leitura analítica, filológica, acadêmica, é uma
leitura válida, mas não é a única leitura possível. Se ela se torna, ao
contrário, a única leitura admissível, torna-se também uma leitura excludente,
autoritária e, em última análise: chata pra caramba.
Sabemos que as adaptações de um texto literário para outra
linguagem, como a dos quadrinhos, da televisão ou do cinema, implicam leituras
refinadas. O que fez Luiz Fernando Carvalho, ao trazer “Dom Casmurro”, de Machado
de Assis, para a televisão, na minissérie “Capitu”, senão uma belíssima leitura
do romance?
Ora, por que nós não pedimos aos nossos alunos que releiam
literariamente os textos literários, transformando-os em crônicas, contos,
poemas, peças, esquetes, músicas, desenhos, quadrinhos, imagens, sites, quiçá
pequenos filmes? Decerto porque a avaliação desses trabalhos fica mais difícil.
Entretanto, toda avaliação é por definição injusta. Logo, a nossa prioridade
deve ser antes ensinar melhor do que avaliar melhor.
Como disse o escritor e cartunista Ziraldo, uma vez: “ler é melhor do que estudar”. Eu o parafrasearia, com o mesmo espírito polêmico, dizendo que “escrever é melhor do que ler”, simplesmente porque: escrever já implica ler, e ler melhor.