Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 25/04/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

Por que cobrar a leitura de livros de literatura no vestibular?

Gustavo Bernardo

No Rio de Janeiro, os candidatos que prestam vestibular não precisam ler previamente nenhum livro. Isto acontece há pelo menos duas décadas. 

É assim em todo o país? Na verdade, não. Por exemplo: para o ano letivo de 2016, no Brasil, os vestibulares de 26 universidades, públicas e particulares, indicaram listas de livros de literatura. A quantidade de livros indicados pelas universidades variou entre 3 e 16 livros, mas a maioria delas indicou 5 livros.

Isso significa que os vestibulares do Rio de Janeiro, com esta lacuna, acabam por promover: o desprestígio crescente da literatura no ensino médio; o desenvolvimento insuficiente da habilidade de leitura, e já há bem mais de uma geração.

Há alguns argumentos fracos e pelo menos um argumento forte para sustentar que não se cobre a leitura de livros de literatura no vestibular.

Um dos argumentos fracos é o comercial: uma lista de livros pode beneficiar apenas uma ou duas editoras grandes, que aumentariam substancialmente as vendas dos seus títulos. O argumento é fraco porque: mais da metade dos autores selecionados costuma pertencer ao domínio público, portanto são ou podem ser publicados por diversas editoras; a elaboração da lista pode levar em conta o problema, buscando, dentre os autores que não pertencem ao domínio público, diversificar as editoras.

Outro argumento fraco é o do autor vivo: o escritor ainda vivo pode reclamar da interpretação dada pela prova à sua obra. Tornaram-se famosas as reclamações de Carlos Drummond de Andrade e de Millôr Fernandes. No entanto, o argumento também é fraco, porque: nenhum escritor detém o monopólio sobre a interpretação da sua obra; na verdade, nenhum escritor costuma ser o melhor analista da sua própria obra; por fim, a possibilidade da crítica do escritor vivo estimula os professores a elaborarem melhor as suas questões.

Na prática, ainda se pode rebater o argumento do autor vivo indicando apenas autores falecidos. Essa solução, porém, é igualmente fraca, porque afasta as escolas, e, portanto os jovens, da literatura que lhes é contemporânea. O problema do autor vivo deve ser enfrentado elaborando bem as provas e, caso algum autor não concorde com a interpretação dada à sua obra, discutindo-se publicamente com ele, até porque a polêmica não deixa de ser uma maneira de estimular o interesse pela literatura.

Reconhecemos, porém, um argumento forte contra a indicação de livros no vestibular: a elitização do exame. Uma vez que os livros costumam ser caros, logo, se privilegiariam os candidatos de maior poder aquisitivo. 

Em tempos de internet, entretanto, esse argumento também se enfraquece. Hoje, quase tudo que já foi escrito se encontra reproduzido na rede. Além disso, para sanar aquelas consequências que apontamos acima, a saber, o desprestígio crescente da literatura e o desenvolvimento insuficiente da habilidade de leitura, a universidade, a escola e a sociedade não podem se conformar com o problema do preço do livro. Deve-se, ao contrário, insistir na necessidade da leitura de literatura, recuperando soluções tradicionais, como as bibliotecas escolares, e criando soluções alternativas, como eventos de leitura solidária.

Discutidos os argumentos contra a indicação de livros para o vestibular, podemos agora pensar os argumentos a favor dessa indicação. 

Há muito tempo, filósofos e cientistas admitem que nos encontramos sempre presos na nossa limitadíssima perspectiva: só vemos o mundo pelo nosso próprio olhar, do lugar e no tempo em que estamos. Tudo o que achamos que sabemos é tão parcial que se torna suspeito. Só podemos superar a prisão da nossa perspectiva quando conseguimos olhar pelo olhar do outro. 

Ora, na vida real, é extremamente difícil pensar com a cabeça ou olhar com os olhos de outra pessoa, por causa das diferenças de tempo, contexto, gênero, raça, idade e tantas outras variáveis. A façanha se torna possível, porém, quando acompanhamos por dentro a perspectiva ora do narrador ora do protagonista de um romance: neste momento, conseguimos enfim pensar com a cabeça e olhar pelos olhos de um outro. Por isso se diz que a literatura perspectiviza: ela nos oferece a riquíssima experiência de vivenciarmos perspectivas diferentes da nossa. 

Dessa maneira, tornamo-nos outros, ou, como queria Fernando Pessoa: nós “nos outramos”. Assim, tornamo-nos maiores e melhores do que somos, e ao mesmo tempo aprendemos que não somos o centro do mundo, ou seja, que há várias verdades e vários ângulos para cada verdade. Nesse sentido, a literatura constrói uma escola virtual de sensibilidade, curiosidade, admiração, relatividade e tolerância – tudo o de que tanto precisamos e cada vez mais. 

Acresce que, como já sustentou Roland Barthes, a literatura, no seu sentido estrito, é o próprio “giro dos saberes”, ou seja, ela é pura interdisciplinaridade. Os livros indicados para um exame vestibular servem de base para as provas de língua portuguesa e literatura, é claro, mas também podem provocar questões em todas e não menos do que todas as demais provas.  

Por isso, propomos que o vestibular da UERJ para 2018 indique 5 livros de literatura. Para chegar aos 5 títulos, compomos uma lista com um número bem maior de títulos e a divulgamos na Enquete da nossa Revista, solicitando a votação dos leitores até dezembro de 2016. Por sugestão do professor Ruy Marques, Reitor da UERJ, a Enquete ainda tem um campo para que o leitor sugira um outro livro que não esteja na listagem.  

No final de 2016, processaremos o resultado da Enquete para compor a lista final do Vestibular Estadual 2018, divulgando-a no início mesmo de 2017, de modo a que as escolas e os candidatos possam se preparar.

Boas escolhas e boas leituras, portanto.

 

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