Revista do Vestibular da Uerj
Uerj DSEA SR-1
Rio de Janeiro, 20/04/2024
Ano 12, n. 32, 2019
ISSN 1984-1604

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Colunas

A política pode ser perversa?

Gustavo Bernardo

Na atual crise do Estado do Rio de Janeiro e das universidades estaduais, defendemos a importância da UERJ por conta das suas conquistas acadêmicas e científicas, sim, mas também por sua importância social. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pioneira no sistema de cotas, comprova o acerto da política de inclusão, a ponto de ser reconhecida como a universidade inclusiva por definição.

Nos últimos anos, muitas pessoas se orgulham de serem as primeiras de sua família a entrarem numa universidade. Corrigem-se injustiças históricas, ao mesmo tempo em que se amplia sobremaneira a expectativa dessas pessoas: “quer dizer que a condição de negro, de índio, de pobre, não me torna pior do que ninguém?”. Elas então se liberam para se dedicar com renovado afinco aos estudos, à carreira e aos próprios sonhos. 

Olhar seus olhos brilhando, perceber seu deslumbramento por encontrarem professores “que leem tanto”, notar como melhoram muito rápido seu texto e seus argumentos, se afinal se convenceram de que podem ser boas e de que têm o direito de ser boas, seguir as lágrimas dos familiares nas cerimônias de formatura – tudo isso não tem preço. O professor que as acompanha se sente feliz e orgulhoso, por tomar parte, pequena que seja, nesse processo de inclusão social e de resgate histórico. 

Por tudo isso, o que ora acontece no Estado do Rio de Janeiro mostra-se muito mais grave do que parece. A destruição das universidades estaduais afeta gravemente a vida de milhares de professores e servidores, levando cada um de nós a cogitar se ainda é possível mudar de carreira, de cidade, quiçá de país. Entretanto, a destruição das universidades estaduais afeta, de maneira mais grave ainda, a vida não apenas de dezenas de milhares de estudantes, que veem abortado o seu tímido sonho de inclusão, mas também a vida de milhões de possíveis futuros estudantes, porque eles não podem mais sequer começar a sonhar.

O prejuízo pessoal, familiar, social e histórico é gigantesco. O aborto do processo de inclusão social é capaz de gerar consequências catastróficas para toda a cidade. Como a cidade, no caso, é um dos mais importantes centros culturais e políticos do país, essas consequências atingem toda a nação. Acordamos gerações de pessoas dizendo que elas podem ser muito mais do que são, elas provam a si mesmas que sim, que elas podem atender a esse chamado, para depois interrompermos tudo o mais bruscamente possível, como se decretássemos cruelmente: “voltem para o lugar de onde nunca deveriam ter saído”.

Todavia, esse fenômeno não é repentino nem isolado. Trata-se, ao contrário, de processo profundamente perverso. Assemelha-se muito de perto à política das UPPs, que deixou apenas na mão dos policiais a complexa tarefa de pacificação das chamadas comunidades. Como repetiu sempre o delegado José Beltrame, que assumiu a Secretaria Pública por ocasião da implantação dessa política, ela só funcionaria se todos os agentes do Estado assumissem a sua responsabilidade, ocupando as comunidades não somente com policiais, caveirões e armas, mas principalmente com serviços, repartições, hospitais, escolas, ginásios, água, esgoto, enfim, condições mínimas de infraestrutura e cidadania.

De maneira irresponsável, o Estado finge que não é com ele. O relativo sucesso inicial das UPPs basta para garantir a reeleição dos políticos, os mesmos que nunca souberam olhar para a frente, apenas para baixo – para o próprio bolso. Garante-se aos moradores das comunidades e de toda a cidade que a vida pode ser melhor, mais segura, mais decente, para deixar que ela aos poucos volte a ser ainda pior do que antes. Ao mesmo tempo, o risco de vida para os policiais, a maioria deles oriunda das mesmas comunidades, aumenta exponencialmente: os poucos meses de 2017 já registram mais de 50 policiais assassinados. Que a polícia do Estado, de alvo fácil, também se torne a mais letal do país, é consequência lógica de ter sido jogada numa guerra para a qual não foi e não é minimamente preparada.

Para mostrar a estreita relação do processo da segurança com o da educação, acompanhamos a estatística do vestibular da UERJ, que disponibiliza 45% das suas vagas para os cotistas. Constata-se, ao longo dos últimos anos, o preenchimento cada vez menor das vagas reservadas às cotas. Em 2014, apenas 31,92% das vagas dos cotistas são preenchidas; em 2015, a porcentagem cai para 29,75%; em 2016, a porcentagem continua caindo, embora menos, para 29,43%; em 2017, com a crise da UERJ, o número cai drasticamente, porque apenas 22,16% das vagas dos cotistas, ou seja, metade delas, são preenchidas. 

Por que isso acontece? Ora, a população percebe a hipocrisia da política: fala-se em pacificação, mas se promove uma guerra com mais vítimas do que nas guerras declaradas; fala-se em inclusão e democratização, mas se promove o esfacelamento das escolas e das universidades; criam-se as cotas, mas não se pagam as bolsas-permanência, indispensáveis para os cotistas não precisarem escolher entre tomarem o ônibus, se alimentarem ou comprarem um livro, ainda que usado. 

A política afirmativa das cotas é uma política de reparação e compensação: ela não pode ser eterna. Precisa se associar à melhoria radical do ensino público, tanto fundamental quanto médio, para garantir que as cotas não sejam mais necessárias. Essa melhoria radical, entretanto, só o será se cuidar da raiz da educação, ou seja, do professor. 

O governo federal anterior até tentou ações tímidas nesse sentido, estabelecendo um piso salarial nacional do magistério. Só que nem este piso, ainda muito baixo, foi obedecido por diversos estados da federação, o que o tornou letra morta. A profissão de professor não só não atrai os melhores alunos das escolas, como ensinam os países que cuidaram direito do problema, como ainda empobrece, humilha, agride, adoece e mata aqueles que ainda tentam resistir nas salas de aula. 

Que país é este, podemos perguntar mais uma vez. Ora, se olharmos o nível intelectual e cultural dos nossos políticos e dos nossos dirigentes, respondemos com segurança: é um país, para dizer o mínimo, que tem raiva de professor, ódio da educação e nojo de livros.

 

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