Revista Eletronica do Vestibular da UERJ - Feed RSS http://www.revista.vestibular.uerj.br/rss.php DSEA - UERJ pt-br QUEM TEM MEDO DA METONÍMIA? ( 09/04/2025 )

]]> <![CDATA[Artigo - <b>QUEM TEM MEDO DA METONÍMIA?<b/>]]> http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seq_artigo=76

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Wed, 09 Apr 2025 16:42:08 -0300 http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seqArtigo=76
QUINCAS BORBA: ou por que não devemos venerar Machado de Assis ( 03/02/2025 )

]]> <![CDATA[Artigo - <b>QUINCAS BORBA:</b> ou por que não devemos venerar Machado de Assis]]> http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seq_artigo=75


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Mon, 03 Feb 2025 12:59:14 -0300 http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seqArtigo=75
QUEM TEM MEDO DA DIALÉTICA? ou Nenhuma pergunta a menos II ( 03/02/2025 )

]]> <![CDATA[Artigo - <b>QUEM TEM MEDO DA DIALÉTICA?</b> ou Nenhuma pergunta a menos II]]> http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seq_artigo=74 A RECEPÇÃO DO ARTIGO “NENHUMA PERGUNTA A MENOS”, QUE PUBLIQUEI NA REVISTA DO VESTIBULAR DA UERJ, configura um sintoma da falta que a dialética faz. As reações negativas àquele artigo partiram tanto dos estudantes que participaram do movimento de ocupação em 2024, quanto de alguns professores da universidade.

Reza a ética da Academia, ou rezava, que artigos se retrucam com outros artigos, isto é, com argumentos. Com uma exceção, o meu artigo não mereceu contra-argumentos, mas sim ofensas na rede, solicitações formais de exoneração da minha pessoa e atos de protesto.

O embate argumento versus argumento define o sentido lato de dialética: a arte do diálogo. Em termos mais específicos, a dialética é um método de pensamento e um tipo de discurso que se baseia na contraposição de ideias, a qual, por sua vez, nos conduz à reconciliação de contradições, de modo a se estabelecer uma verdade. Esta verdade, por sua vez, será sempre provisória.

Em termos esquemáticos: o pensamento dialético formula uma tese; a seguir, constrói a anti-tese, isto é, a antítese daquela tese; do confronto honesto entre tese e antítese, chega-se à síntese; a síntese, por sua vez, torna-se uma tese, que gera uma antítese, que nos leva a uma nova síntese, ad infinitum (ou: enquanto conseguimos pensar).

A palavra “dialética” vem do grego; pode-se traduzi-la como “caminho entre as ideias”. Jogando com a palavra, diríamos que a dialética configura uma ética-a-dois. Esses dois (interlocutores) não precisam concordar com tudo – mas devem ler, ouvir e discutir tudo.

A exceção a que me referi acima foi o artigo “Quem são as pessoas necessárias à universidade pública?”, do professor Lincoln Tavares Silva, publicado na Revista Fórum. O artigo do Lincoln é dedicado a criticar o meu artigo. Seria uma honra, se os seus argumentos não fossem ora irrelevantes, ora falaciosos, elaborando apenas tautologias e sofismas ad hominem, ou seja, contra a pessoa.

Lincoln faz uma blague com nossos sobrenomes: Krause e Silva. A blague seria engraçada se a intenção não fosse apenas me desqualificar. Se eu sou Krause, então sou branco – o que, nesse caso, é verdade. Se ele é Silva, então é negro – o que, no caso, também é verdade. O problema é que ser Krause ou Silva, branco ou negro, não nos torna nem mais nem menos qualificados para discutir a questão. O corolário implícito é que, eu, como branco, não deveria falar de um problema que afeta tão somente aos negros.

Esse corolário é uma falácia. O racismo e a desigualdade social se retroalimentam e afetam a todos nós. Somos todos responsáveis por pensar sobre a nossa circunstância.

Em outro trecho, o ex-pró-reitor de graduação afirma que eu, como membro integrante da gestão atual, não poderia publicar, numa Revista da UERJ, um “instrumento de propaganda contrária” à política de cotas. Essa restrição, reconheço, é compartilhada por colegas que participam da atual gestão – o que me deixou, também reconheço, bastante triste.

Sim, participo da gestão da Reitora Gulnar, como editor executivo da EdUERJ – assim como participei das gestões dos professores Ruy, Lodi e Mário. Na gestão desses três Reitores, fui diretor do DSEA, que organiza e aplica o Vestibular da UERJ. Como diretor do DSEA, eu era subordinado ao pró-reitor de graduação – nas gestões de Lodi e Mário, justamente o professor Lincoln Silva.

A subordinação, contudo, não implica subserviência. Lincoln gostava de me chamar, quando eu não estava presente, de “meu zangado”. Não acho que eu fosse “dele”, mas com certeza era um pouco “zangado”: nunca me abstive de criticar ou de escrever sobre o que achasse problemático. Meu senso crítico não adormece quando exerço um cargo, o que não me torna menos leal ou menos competente.

Claro, sempre assino o que escrevo. Por óbvio, nunca falei ou escrevi em nome desta ou daquela gestão. Não tenho a menor vocação para porta-voz ou eminência parda; se eu puder escolher a metáfora, prefiro me considerar um grilo falante.

Também não fiz “propaganda” contra a política de cotas. Antes, no artigo “Nenhuma pergunta a menos”, procurei analisar dialeticamente esta política. Minha análise não seria dialética, como tentam ser meus artigos e também minhas aulas, se eu fosse somente contra ou a favor disto ou daquilo.

Repetindo: a dialética é um método de pensamento e um tipo de discurso que se baseia na contraposição de ideias e na reconciliação de contradições para melhor estabelecer a verdade. Vejamos no caso em tela: a política afirmativa e seus desdobramentos, incluindo a ocupação estudantil em 2024. Nesse caso, eu posso dizer que sou, ao mesmo tempo, a favor e contra, sem que isso implique esquizofrenia.

Escrevi anos atrás, e repeti nesse artigo que gerou a polêmica, que sou a favor da política de cotas, por algumas boas razões, entre as quais:

    [1] o bem que fez e faz a um número enorme de pessoas que, de outro modo, não entrariam na universidade;

    [2] o bem que fez e faz à própria universidade, tornando-a muito mais inclusiva e diversificada;

    [3] o mérito de chamar a atenção de toda a sociedade não apenas da falácia meritocrática do liberalismo, como da responsabilidade de todos nós na manutenção dos privilégios e na consequente injustiça social.

No entanto, também sou contra a política de cotas, em particular no estágio em que ela se encontra agora, por razões igualmente boas, entre as quais:

    [1] a política de cotas ataca apenas as consequências do problema, facilitando a que se “esqueça” de se enfrentar as causas;

    [2] o sucesso da política de cotas gera o fenômeno dos “surfistas” de cotas, ou seja, daqueles que as defendem menos por razões sociais, mais por ambição eleitoral;

    [3] o sucesso da política de cotas provoca o afã de ampliar as cotas para outros grupos, “ignorando” que a UERJ oferece 45% das suas vagas no vestibular pelas cotas, mas nunca preencheu nem metade disso;

    [4] a energia dedicada à política de cotas (e a surfar nas suas ondas) desvia a universidade das suas obrigações acadêmicas, impedindo-a de resolver problemas crônicos, como o crescimento desordenado da universidade, os currículos anacrônicos de tantos cursos e a flagrante disparidade entre a oferta de vagas e as demandas da sociedade.

Onde se encontra a dialética? Ora, cada argumento apresentado a favor da política de cotas constitui uma tese inicial, que se deve articular às demais teses. Cada argumento apresentado contra a política de cotas constitui uma antítese que, por sua vez, se deve articular às demais antíteses.

Mas, onde se encontra a síntese? A síntese, no meu entender, se encontra na admissão de que a política de cotas não enfrenta o problema da desigualdade social e racial deste país, apenas o reconhece e o ameniza – o que não deixa de representar um avanço.

O avanço, porém, não é suficiente, porque esse país tem o péssimo hábito de perdoar e anistiar senhores de escravos, capitães do mato, bandeirantes genocidas, generais assassinos e presidentes milicianos. A política de cotas, então, funciona antes como um potente analgésico, que ameniza a dor mas não cura a doença.

Analgésicos são necessários, concordo. O abuso de analgésicos, entretanto, pode gerar muito mais dor, como bem sabe quem já sofreu de enxaqueca. Esse raciocínio, aliás, é um exemplo clássico de dialética, mostrando a transformação de quantidade em qualidade – no caso, qualidade negativa.

A síntese se encontra na admissão de que cabe à universidade, sim, estudar o problema da desigualdade social e racial deste país, mas não assumir a sua solução. Por quê? Porque corre o risco de camuflar as causas da desigualdade, ao mesmo tempo em que posterga o enfrentamento dos problemas da própria universidade.

Em resumo: a síntese são sempre sínteses. A síntese é sempre plural. A pluralidade, como condição da democracia, sente falta do diálogo permanente entre as pessoas, as ideias e as contradições que nos cercam, nos deformam e nos formam. A democracia, portanto, sente muita falta da dialética.

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Mon, 03 Feb 2025 12:42:14 -0300 http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seqArtigo=74
Nenhuma pergunta a menos ( 25/09/2024 )

]]> <![CDATA[Artigo - <b>Nenhuma pergunta a menos</b>]]> http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seq_artigo=73 EU SOU PROFESSOR DA UERJ HÁ 46 ANOS. Gostaria de comentar a longa ocupação de estudantes no campus Maracanã da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no segundo semestre de 2024. Por quê? Porque vejo esse acontecimento como sintoma de problema mais grave.

O movimento dos estudantes exigiu a revogação do Ato Executivo da Reitoria que limitava valores da bolsa de vulnerabilidade social, criada, de maneira provisória, para conter a evasão de alunos no período da pandemia. A exigência se acompanhou, desde o primeiro instante, da palavra de ordem “fora Gulnar”, sem levar em conta que a Reitora, eleita em pleito legítimo, estava no sétimo mês do seu mandato.

Apenas essa palavra de ordem já abalaria as bases da democracia universitária, conquistada a duras penas. No entanto, para piorar, o movimento daqueles estudantes também era contra a direção do Diretório Central de Estudantes e os representantes dos Centros Acadêmicos – portanto, eles não representavam ninguém a não ser eles mesmos.

Quais eram as motivações dos manifestantes? Suponho que pelo menos duas: a primeira, prosseguir com a luta pela hegemonia no campo da esquerda, flagrante na campanha eleitoral do ano anterior; a segunda, defender a gestão anterior, que implantou a bolsa de vulnerabilidade social.

Essa crise poderia ter sido evitada? Há quem diga que sim: bastava a Reitora não publicar o Ato Executivo que gerou a ocupação, deixando o problema nas costas do Governo do Estado. Quando a universidade não tivesse mais dinheiro, deixaria de pagar a bolsa de vulnerabilidade social e apontaria o dedo para o Palácio Guanabara.

No entanto, a crise estava contratada desde o começo, por três razões: uma, o ex-Reitor não se conforma com a sua derrota (ou melhor, com as suas derrotas); duas, o machismo entranhado na universidade não aguenta uma Reitora mulher; três, a origem do problema se encontra no desvio de função que a UERJ promoveu para si mesma.

Que desvio é este? Digamos que a função de uma universidade pública e gratuita é entregar ensino e pesquisa de qualidade para todos os seus alunos, independentemente de classe social, cor, sexo ou religião. Digamos também que a função de uma universidade pública e gratuita não é fazer justiça social, reparar injustiças históricas ou remunerar seus estudantes por quaisquer meios. Caso se aceitem essas premissas, conclui-se que o desvio de função da UERJ começou quando se implantaram as cotas no vestibular, há mais de 20 anos.

Entretanto, antes que me joguem ovos podres, lembro que sempre defendi as cotas. A política de cotas teve o mérito de escancarar o mito liberal da meritocracia; fez a justa fama da UERJ como universidade inclusiva; permitiu que centenas de alunos fossem os primeiros de suas famílias a entrarem na universidade; e expôs as inconsistências do ensino médio, ao revelar estudantes cotistas com desempenho universitário igual ou melhor do que aqueles que entram pela livre concorrência.

Fui defensor das cotas, mas me preocupava, o que pode ser visto em artigos anteriores nesta mesma Revista do Vestibular, que elas se cristalizassem e funcionassem como álibi para manter a desigualdade. Lá atrás, eu dizia: “o sistema de cotas, favorecendo quem foi historicamente desfavorecido pela sociedade, como negros, índios e pobres, ataca as consequências do problema, mas não suas causas. Ao fazê-lo, pode ajudar a perpetuar essas causas negativas, escondendo-as sob a novidade das cotas”.

Talvez por isso o sucesso das cotas tenha estimulado oportunistas de diversas cores, todos ansiosos para surfar na onda da reparação histórica e, assim, ganhar likes, votos e cargos. Esqueceu-se que a lei das cotas as estabeleceu como provisórias: não haveria mais cotas quando o ensino público no Rio de Janeiro deixasse de ser o pior do país.

Ora, o ensino público no Rio de Janeiro continuou tão ruim quanto antes, senão pior ainda. Ao invés de se denunciar esse estado de coisas, promove-se a demanda por mais cotas, sem se notar que a UERJ oferece 45% de suas vagas para as cotas – mas os cotistas não ocupam, em nenhum exame vestibular, nem metade disso.

A gestão do ilustre professor Ricardo Lodi criou a CPVA, ou seja, a Comissão Permanente de Validação da Autodeclaração, na esteira das universidades federais. O adjetivo “permanente”, no nome da Comissão, já indica a desqualificação do princípio da provisoriedade da lei das cotas. Além disso, a CPVA se transforma, pouco a pouco, numa espécie de tribunal racial.

O Artigo 9º da Deliberação que cria a CPVA na UERJ afirma que ela “utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelos candidatos pretos e pardos (negros)”. A exclusividade do critério fenotípico, porém, favorece a que alguns pretos sejam considerados mais pretos do que os outros, no melhor estilo George Orwell.

A mesma gestão, aproveitando a emergência da pandemia, cria a PR-4, a saber, a Pró-Reitoria de Assistência Estudantil. Dessa maneira, entroniza e institucionaliza o assistencialismo como norte político. Nesse espírito, cria a bolsa de vulnerabilidade social. Esta bolsa não apenas se sobrepõe à bolsa para os cotistas, como ainda a enfraquece, uma vez que este novo grupo de bolsistas não precisa passar por todo o rigoroso processo do vestibular de avaliação das cotas, nem precisa apresentar contrapartidas óbvias, como frequência e desempenho acadêmico.

Esta bolsa se cria sem lei que a respalde e sem base orçamentária que a sustente. Como a gestão do ilustre professor Ricardo Lodi perde a eleição (ou melhor, as eleições), deixa uma bomba de retardo para a chapa vencedora. Esta bomba explode no colo de toda a universidade.

Então, apenas a gestão anterior é responsável pela atual crise da UERJ? Não. Seria mais simples se tivéssemos apenas um grupo coeso de culpados, mas a realidade não costuma ser simples. A responsabilidade deve ser dividida com os estudantes que integraram o movimento de ocupação no campus Maracanã da UERJ – mas não somente. Diversas entidades, como a ASDUERJ, jogaram lenha na fogueira, repetindo o slogan “nenhum direito a menos”. Ora, não havia direito algum, nem garantido em lei, nem conquistado em luta política.

Além disso, o slogan “nenhum direito a menos” não se sustenta sozinho – depende do direito que se encontre em questão. Por exemplo, o “direito” à legítima defesa da honra de maridos traídos deixou de ser um direito masculino há algum tempo. Nem mesmo o “direito” à concorrência através das cotas pode ser considerado um direito em si e para sempre, porque a lei que o instituiu estabeleceu seu caráter provisório.

A bolsa de vulnerabilidade social não reforça, antes enfraquece, a política de cotas, por se lançar sem as mesmas exigências e contrapartidas. Em nome da luta por “nenhum direito a menos”, o que se estimula é o desrespeito da administração à coerência, do aluno ao professor, do estudante à instituição, e do cidadão à sociedade. De fato, o movimento dos estudantes primou por esse desrespeito: aos cotistas, aos colegas, aos professores, à universidade, aos mais velhos, às lutas da esquerda, aos trabalhadores da segurança patrimonial da UERJ, por fim, aos trabalhadores da limpeza que precisaram arrumar e limpar tudo, como empregados de adolescentes mimados.

Sempre tive muito orgulho de ser professor. Há 9 anos, a vida reconheceu que eu já tinha uma certa idade, como se diz, e me ofereceu terminar a carreira em cargos de gestão, que tenho assumido também com orgulho. Hoje, entretanto, olho no espelho e vejo um homem amargurado – porque já não se vê mais dentro de sala de aula. O que eu poderia conversar com esse aluno raivoso que ocupa a UERJ e chama todo mundo de fascista, sem saber direito o que é fascismo, nem conhecer a história acadêmica e política daqueles que acusa de fascistas?

Então, o que você defende, me perguntam os poucos que ainda me leem? O que defendo não é fácil de realizar, reconheço – o que não me impede de fazê-lo. Defendo que a universidade pública e gratuita volte a se dedicar, apenas , a entregar ensino e pesquisa de qualidade para todos os seus alunos, independentemente de classe social, cor, sexo ou religião. Não nos cabe fazer justiça social, reparar injustiças históricas ou remunerar nossos estudantes por quaisquer meios. Somos, apenas , professores.

Também porque nos desviamos da nossa função, não conseguimos tempo para nos dedicarmos a resolver os nossos problemas crônicos, como o crescimento desordenado da universidade, os currículos anacrônicos de tantos cursos e a disparidade entre a oferta de vagas e as demandas da sociedade.

Defendo, enfim, que a universidade reaprenda a desconfiar de todos os slogans, mesmo os politicamente corretos, e volte a fazer perguntas e a proteger as perguntas, evitando gritar suas certezas em panfletos, postagens, notas de apoio, notas de repúdio, manifestações e assembleias – quando todos nos tornamos os fascistas que dizemos que os outros é que o são.

Se ainda quiserem em forma de slogan, o que defendo é: nenhuma pergunta a menos.

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Wed, 25 Sep 2024 13:50:34 -0300 http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seqArtigo=73
A responsabilidade da ficção: o caso do romance de John Boyne ( 11/12/2023 )

]]> <![CDATA[Artigo - <b>A responsabilidade da ficção:</b> o caso do romance de John Boyne]]> http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seq_artigo=72 A escolha, através de uma consulta pública, do romance O menino do pijama listrado (2006), do escritor irlandês John Boyne, como o livro indicado para a prova de Redação do Vestibular 2024 da UERJ, gerou algumas críticas. Pretendo discuti-las e, a seguir, contestá-las.

As críticas afirmam que escolas e universidades não devem ensinar sobre o Holocausto através desse romance, entre outras razões, porque o volume conteria imprecisões históricas. Os principais personagens, os meninos Bruno e Shmuel, por exemplo, ambos com nove anos de idade e nascidos no mesmo dia, do mesmo mês, e do mesmo ano, não podiam conversar através da cerca que separava a casa do comandante do campo de concentração de Auschwitz, se todas as cercas eram duplas e eletrificadas. De fato, a conversa quase diária entre os dois meninos, um de cada lado da cerca, sem que fosse observada por nenhum soldado do campo, seria improvável, assim como seria igualmente improvável que Shmuel, “o menino de pijama listrado” do título, tivesse tempo livre para bater papo com um menino alemão.

Outra crítica observa que nem crianças haveria naquele campo de concentração, porque as crianças pequenas seriam todas assassinadas assim que chegavam aos campos. Entretanto, de acordo com os registros dos próprios nazistas, em 30 de agosto de 1944 havia 619 crianças vivas, do sexo masculino, de um mês a 14 anos de idade, em Auschwitz-Birkenau. Em 14 de janeiro de 1945, 773 crianças do sexo masculino foram registradas como vivas, das quais 52 tinham menos de 8 anos de idade. Ainda que, todo dia, muitas crianças fossem realmente assassinadas nas câmaras de gás, algumas eram usadas como mensageiras dentro do acampamento, enquanto outras chegaram a servir em filmes de propaganda dos campos, nos quais se mostravam diversas crianças brincando alegremente.

Critica-se, ainda, que uma tragédia dessa magnitude seja abordada com olhos infantis, porque assim se minimizam as graves consequências da Endlösung, a solução final dos nazistas para a questão judaica. O que mais incomoda os críticos, porém, é que a história seja narrada sob a perspectiva do menino alemão, filho do comandante do campo, e não sob a perspectiva do menino judeu. Incomoda que a história seja narrada na perspectiva do filho dos opressores, e não do filho das vítimas, ele também vítima. O protagonista Bruno ainda se mostra ignorante do que ocorre, quer na Alemanha, quer no campo de concentração comandado pelo seu pai, situado na Polônia. Ele só pensa nos amigos que deixou em Berlim e no novo amigo que encontrou em Auschwitz – o menino do pijama listrado –, embora não consiga pronunciar direito nem o nome do campo, nem a palavra “líder” em alemão: Führer. Manifestando o desejo de ser um explorador quando crescer, o que sugere que ele é uma criança curiosa, Bruno despreza, contudo, os livros de História que mostram a Alemanha como a nação superior, preferindo, no lugar, ler apenas romances de aventuras.

As críticas ao livro dobram de intensidade quando se referem à adaptação cinematográfica do romance, lançada em 2008 e dirigida por Mark Herman, com Asa Butterfield no papel de Bruno e Jack Scanlon no papel de Shmuel. Se o livro já era um best-seller, a história ganhou um destaque ainda maior com o filme, o que decerto aumentou a indignação daqueles que não gostaram da abordagem.

Que eu tenha lido, apenas o escritor brasileiro Márcio Pitliuk, especialista no Holocausto, com vários estudos publicados a respeito, também considera o filme muito ruim – mas ressalva que, para ele, o romance é bom. Eu assisti ao filme primeiro, só depois li o livro. Gostei muito do filme, embora eu seja um pouco suspeito: gosto de melodramas e o filme carrega nas tintas melodramáticas, provocando rios de lágrimas nos espectadores que gostam de chorar – como este que vos fala, por exemplo. Depois, li o livro e gostei mais ainda. Para mim, o filme já me pareceu bom, enquanto o romance me pareceu ainda melhor – o que, de resto, costuma acontecer: o livro original ser melhor do que o filme que o adapta.

Apesar de as observações sobre as imprecisões históricas serem em parte procedentes, importa observar que o romance se baseia em dados da realidade – como o faz, aliás, qualquer romance histórico. O comandante do campo e pai de Bruno, que se chamava Ralf, é inspirado no verdadeiro comandante do campo de Auschwitz, Rudolf Höß. Ele de fato viveu, com esposa e cinco filhos, numa casa colada ao muro do campo. Depois da guerra, foi julgado em Nuremberg e na Polônia, sendo condenado à morte por enforcamento. A sentença foi executada, numa espécie de justiça mórbida, na entrada de Auschwitz. Durante o julgamento, Höß se descreveu como um homem de “grande virtude e obediência militar”, com “grande senso de dever”. Também explicou que os filhos lhe perguntavam “quem eram aquelas pessoas” no campo, quando ele lhes respondia que os judeus não eram pessoas, mas sim Untermenschen, isto é: sub-humanos. Decerto motivado por esse testemunho, John Boyne, no capítulo 5 do romance, fez Bruno perguntar ao pai quem eram aquelas pessoas, todas com a mesma roupa (o mesmo pijama listrado), do lado de fora da nova casa. O pai e novo comandante do campo responde que “aquelas pesssoas... bem, na verdade elas não são pessoas, Bruno”.

É difícil haver denúncia mais expressiva da alienação, da coisificação, da desumanização promovida pelos nazistas em relação às suas vítimas preferenciais, a saber, todos os judeus.

As críticas ao romance se intensificam, porque ele foi lançado como uma obra infanto-juvenil, ganhando prêmios nessa categoria. Os críticos questionam a adoção desse romance nas escolas – consequentemente, a indicação de leitura para o vestibular –, porque todos os alemães que não fossem oficiais nazistas poderiam alegar inocência. Segundo esses críticos, os estudantes, ao lerem sobre um menino alemão fazendo amizade com um prisioneiro judeu da mesma idade, poderiam acreditar que os campos de concentração não eram assim tão maus. Essa leitura favoreceria um certo revisionismo histórico da extrema-direita, que questiona, do número de judeus assassinados – não seriam seis milhões de mortos, mas “apenas” uns quatro milhões –, à própria realidade histórica do Holocausto.

Passo agora a contestar as críticas apresentadas. Primeiro, explico porque considero adequado indicar esse livro para a prova de Redação do Vestibular 2024 da UERJ, assim como considero adequado que ele seja adotado, em todos os níveis de ensino, tanto nas aulas de Literatura quanto nas aulas de História.

O Holocausto foi o acontecimento crucial do século XX, mostrando como todo o conhecimento, progresso e ciência da humanidade não tornou a humanidade mais evoluída. O progresso moral se encontra anos-luz atrás do progresso científico. Rediscuti-lo é um imperativo pedagógico e político, inclusive para combater o revisionismo ignorante da extrema-direita. Restringir essa discussão apenas à responsabilidade dos nazistas e do povo alemão implica tomá-los como bode expiatório da violência presente em todos os seres humanos. O problema do Holocausto não é um problema apenas dos alemães e dos judeus. O Holocausto ainda é um problema de e para toda a humanidade, como o comprova o retorno das técnicas nazistas de propaganda, no Brasil e no mundo. O final dramático do romance, com o assassinato tanto de Shmuel quanto de Bruno na câmara de gás, deixa claro que os campos de concentração eram, na verdade, campos de morte, portanto, terrivelmente maus – para as vítimas judias, é óbvio, mas também para a alma dos algozes alemães.

Nos últimos anos, as provas de Redação do Vestibular da UERJ têm partido de romances para apresentar, aos candidatos, questões-tema. Cada candidato pode abordar a questão-tema pelo viés que tiver mais a ver com a sua própria opinião a respeito, desde que apresente argumentos que a sustentem. É essencial, para esse tipo de proposta, que a questão-tema parta de um texto literário, quer porque a literatura faz girar todos os saberes, exigindo sempre uma leitura interdisciplinar, quer porque a literatura faz conversar a razão com a emoção, ajudando em muito a que cada leitor pense sobre o seu sentimento e, assim, construa uma opinião de fato própria.

Não há um gabarito fechado. Não há uma resposta única. Importa, antes, que o candidato tenha uma opinião e a defenda com argumentos. Já demonstramos outras vezes que qualquer pessoa escreve muito melhor quando defende uma opinião realmente sua, e não a opinião que ela acha que querem que ela escreva. Por isso, as críticas ao livro e ao filme que aqui elencamos podem fazer parte das redações dos candidatos, desde que sustentadas com argumentos e corretamente relacionadas ao livro indicado. Os professores que corrigem a redação sabem bem que o seu trabalho é avaliar, tão somente, a qualidade dos argumentos dos candidatos, não se a opinião deles é “correta”. É irrelevante que os candidatos gostem ou não gostem do livro indicado, por qualquer que seja a razão.

Em segundo lugar, e essa é a refutação mais importante que me cabe fazer, considero que os críticos ao livro e ao filme desconsideram que ambas as obras são obras de ficção. O romance não é um livro didático de História, assim como o filme não é um documentário sobre o nazismo. No romance, essa condição é reforçada no título original em inglês: The boy in the striped pyjamas: a fable. O subtítulo a fable – em português, “uma fábula” – reforça que o romance é uma ficção. O compromisso maior do escritor é menos com a realidade e mais, muito mais, com a problematização ou a recriação da realidade. Nem o romance nem o filme podem se dizer realistas – ainda bem. Já disse algures que realismo literário é uma contradição nos próprios termos. Nesse sentido, deixa de ser um defeito a conversa de Bruno e Shmuel através da cerca do campo, porque, entre os objetivos do romance e do filme, não se encontrava retratar fidedignamente um campo de concentração nazista.

O romancista, primeiro, e o diretor, depois, não retrataram, mas criaram essa conversa entre os meninos, para melhor representar uma possibilidade e uma esperança de paz e concórdia dentro do próprio horror. Pela mesma razão, a coincidência de Bruno e Shmuel terem nascido no mesmo dia, mês e ano não é uma mera coincidência, mas sim a representação proposital de gêmeos simbólicos, artificialmente tornados opostos por conta do preconceito, do medo e da guerra. Se aquelas crianças podiam se comunicar e brincar através de uma cerca de arame farpado, por que os adultos não poderiam?

A opção pela perspectiva de Bruno, uma criança de nove anos de idade, não implica a minimização das graves consequências da Endlösung. Os olhos de Bruno são metaforicamente olhos fenomenológicos, capazes de ver o fenômeno como se o vissem pela primeira vez, e não contaminados pelo passado, pelo rancor e pelo ressentimento. Os olhos de Bruno são, portanto, os olhos da ficção, capazes de abrir os nossos próprios olhos para ver e sentir acontecimento tão dantesco de outra maneira. Essa outra maneira, no meu entender, não minimiza a violência absurda da solução final nazista, mas, ao contrário, a reapresenta para nós outros que não vivemos nem sofremos naquela época.

Que os críticos não desejem que a história seja narrada sob a perspectiva dos opressores significa que eles não querem que se faça literatura desse acontecimento. Ora, não pode haver perspectiva proibida para a literatura de ficção. Perspectivizar é de todas talvez a tarefa mais nobre da literatura, porque ela nos permite olhar o mundo pelos olhos do outro – mesmo que o outro seja um monstro, ou o filho de um monstro. Sabemos muito bem que olhar pelo olhar do outro é extremamente difícil – por isso mesmo, precisamos tanto da literatura.

Rubem Fonseca já nos permitiu acompanharmos os acontecimentos pelos olhos de um assassino profissional, em O seminarista. Antes dele, Guimarães Rosa nos fez olhar o mundo pelos olhos do seu Riobaldo Tatarana, em Grande sertão: veredas, apesar de ele ser também, pela ordem: jagunço, estruprador e assassino. Antes dos escritores brasileiros, o inglês Graham Greene, católico, escolheu o personagem Maurice Bendrix, um ateu, para narrar o seu maravilhoso Fim de caso, que também traz a Segunda Grande Guerra como pano de fundo.

O próprio escritor, John Boyne, me ajuda nessa contestação àquelas críticas a seu livro, ao escrever e publicar, em 2022, o romance Por lugares devastados. Nesse romance, uma continuação de O menino do pijama listrado, a narradora é Gretel, justamente a irmã de Bruno. Ela sobreviveu à guerra, mas não sem dor, sofrimento e culpa. Gretel, já com 91 anos de idade, nos conta como fugiu da Alemanha com a mãe, e como passou toda a vida tentando esconder que era a filha do monstro de Auschwitz. Esse esforço se dava quer para não sofrer retaliações, quer porque a cada ano aumentava a sua culpa por ter participado, ainda que de maneira passiva, do Holocausto.

O primeiro capítulo de Por lugares devastados se chama “A filha do diabo”. A primeira frase já é um soco no estômago do leitor: “se todo homem for culpado por todo bem que ele não fez, eu passei a vida inteira convencendo-me de que sou inocente de todo mal”. Ela não consegue se convencer, mas convence o leitor da sua humanidade, não apenas por exibir as suas fraquezas, mas, principalmente, pela sua luta contra a herança que lhe deixaram o passado e o pai.

Já na última página do romance, Gretel é presa, não por ter sido cúmplice em Auschwitz, quando tinha somente 12 anos de idade, mas sim por ter matado, já muito idosa, um homem que espancava e aterrorizava a esposa e o filho. Deitada na cela, Gretel sonha em morrer para poder se reencontrar com o irmão: “quando eu puder dizer a ele o quanto eu lamento. Quando puder dizer a todos eles o quanto eu lamento”. Gretel sente que finalmente matou o Monstro – que finalmente matou o fantasma do pai, na pessoa daquele marido e pai abusivo.

No “Pós-Escrito”, John Boyne diz que o seu novo romance é “sobre culpa, cumplicidade e luto, um livro que se propõe a examinar até que ponto uma jovem pode ser culpável, dados os fatos históricos que se desdobram ao seu redor, e se tal pessoa alguma vez pode se purificar dos crimes cometidos pelas pessoas que ela amava”. O escritor reconhece que “escrever sobre o Holocausto é um trabalho complicado e qualquer romancista que o aborda assume um enorme fardo de responsabilidade. Não o fardo da informação, que é tarefa da não-ficção, mas o de explorar verdades emocionais e experiências humanas autênticas, enquanto lembra que a história de cada pessoa que morreu no Holocausto merece ser contada. Por todos os erros que cometeu na vida, por toda a sua cumplicidade com o mal e por todo o seu arrependimento, acredito que a história de Gretel também merece ser contada. Cabe ao leitor decidir se vale a pena lê-la”.

Em 2009, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie proferiu uma palestra que se tornou famosa, intitulada O perigo de uma história única. Ela se referia ao perigo de as crianças negras lerem apenas histórias com príncipes e princesas brancas, como se os negros, desde crianças, precisassem se acostumar a serem vistos como menos do que humanos. O alerta de Chimamanda serve para toda e qualquer narrativa. Não se pode admitir contar apenas um único lado da história. Considerar apenas a versão dos algozes – no nosso caso, os nazistas – é um erro, sem dúvida. Entretanto, também é um erro considerar apenas a versão das vítimas – no caso, os judeus.

Os judeus não são e não podem ser vistos como sub-humanos, como infra-humanos. Eles foram, são e serão sempre humanos. Por outra lógica, os nazistas não são e não podem ser vistos nem como Übermenschen, ou seja, super-homens – nem apenas como monstros. Eles foram, infelizmente, humanos também. Considerá-los menos do que humanos contribui para não enxergarmos o ovo da serpente dentro do corpo de cada um de nós. Como diz o professor Gregory Stanton, especialista em estudos sobre genocídio, “o Holocausto nazista está entre os genocídios mais perversos da história. Mas o bombardeio de Dresden pelos Aliados e a destruição nuclear de Hiroshima e Nagasaki também foram crimes de guerra”.

Em última instância, a guerra é tão humana quanto absurda. Não há guerra limpa. Pode haver guerras inevitáveis, mas não há guerra justa. As guerras atuais, com mísseis e drones, são tão sujas e tão injustas, talvez apenas mais covardes, quanto as guerras antigas. Em todas as guerras, ainda mais no nosso tempo, quem declara a guerra não vai para a frente de batalha – apenas manda os outros matarem quem não conhecem, ou serem mortos por quem não os conhece.

Cabe à ficção contar todas as histórias, sob todos os pontos de vista. Cabe ao professor, principalmente o de literatura, facultar o acesso de seus alunos a todas as histórias, sob todos os pontos de vista.

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Mon, 11 Dec 2023 12:09:20 -0300 http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seqArtigo=72
A dança do amor de Paulina Chiziane ( 21/11/2022 )

]]> <![CDATA[Artigo - <b>A dança do amor de Paulina Chiziane</b>]]> http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seq_artigo=71 A escritora Paulina Chiziane nasceu em uma aldeia de Moçambique, na África, em 1955, numa família protestante onde se falavam as línguas Chope e Ronga. Aprendeu a língua portuguesa numa escola católica. Apesar, ou por causa, da influência do cristianismo, não se sente presa a nenhuma religião, inclusive para poder falar de religião. Seu romance Balada de Amor ao Vento , de 1990, é o primeiro livro publicado por uma mulher naquele país. Em 2002, publicou o romance Niketche: uma história de poligamia . Em 2021, Chiziane tornou-se a primeira mulher africana a ser distinguida com o Prêmio Camões, patrocinado pelos governos de Brasil e Portugal.

Niketche conta a história de Tony, um alto funcionário da polícia, e sua mulher Rami, casados há vinte anos. Certo dia, Rami descobre que o marido é polígamo: ele tem outras quatro mulheres e vários filhos. As esposas de Tony estão espalhadas pelo país. Rami decide ir atrás das mulheres do marido – pela ordem, Julieta, Luísa, Saly e Mauá. A busca de Rami é uma tentativa de lidar com a diferença, simbolizada pelas outras esposas do marido. Narrado em primeira pessoa por Rami, o livro alterna humor e tragédia, apresentando-se cômico e trágico quase que ao mesmo tempo, à semelhança de autores tão diferentes como Machado de Assis e Woody Allen.

Antes de comentar o romance, admito que eu talvez não seja a pessoa mais indicada para falar sobre Niketche . A escritora é mulher, africana, moçambicana e negra, enquanto eu sou homem, sul-americano, brasileiro e branco. Aproximo-me de Paulina apenas pelo ano de nascimento, 1955 – temos a mesma idade. Fora isso, nascemos em países diferentes com um oceano no meio, embora ligados pela mesma língua portuguesa.

No entanto, apesar de ser a pessoa menos indicada para falar sobre Niketche , insisto em falar a respeito, porque o romance me deixou comovido e devastado – logo, eu preciso fazer alguma coisa com as emoções provocadas pela leitura. Além disso, a literatura sempre gera uma espécie de outramento : a literatura nos leva a ver o mundo por olhos diferentes dos nossos, a entender a realidade por uma perspectiva diferente da nossa – logo, pode ser interessante que alguém, de perspectiva bem diferente de Paulina, fale sobre o seu romance, até para gerar mais discussão e mais críticas.

Há quem diga que, ao lermos um texto de literatura, não devemos nos preocupar com a mensagem do autor, apenas com a estrutura e a forma da narrativa. No caso desse romance em particular, porém, a forma é também parte da mensagem. Destacar a mensagem da escritora, a partir da sua identidade de mulher, africana, moçambicana e negra, se mostra importante, porque o romance é também um manifesto feminista, mais propriamente, antimachista, além de antirracista e anticapitalista. Esse múltiplo manifesto constitui a mensagem do livro.

Enfrentamos, os leitores brasileiros, uma dificuldade: o livro é escrito na nossa língua, a língua portuguesa, mas em uma das suas variantes africanas. Essa dificuldade exige mais atenção na leitura, mas também oferece mais recompensa para os leitores, gerando envolvimento e entregando beleza.

Ao ler e comentar os trechos, sinalizo as páginas da edição da editora Companhia de Bolso, datada de 2021. Começo com um pequeno trecho mais próximo do final do livro, na página 188, porque esse trecho me parece o coração do romance. É um dos muitos trechos em que a narradora toma emprestada a voz da própria autora, enunciando suas opiniões sobre a realidade que nos cerca e, ao mesmo tempo, sobre a realidade que nós mesmos construímos à nossa volta. O trecho, definindo o que é ser mulher, se compõe por duas frases pequenas:

Mulher é ser solitário na marcha da multidão .

Mulher é a dor coletiva que cobre o mundo inteiro .

São duas pequenas frases com enorme importância no romance, sinalizando uma série de metonímias aninhadas, uma dentro da outra. No romance, a narradora, Rami, é metonímia das mulheres do seu país, assim como cada mulher, por sua vez, é metonímia de todas as mulheres do mundo, representando tanto a solidão no meio da multidão, quanto a dor coletiva que cobre todo o mundo. 

Os homens podemos argumentar que todos, homens e mulheres, somos seres solitários no meio da multidão, mas precisamos reconhecer que perceber a mulher como “a dor coletiva que cobre o mundo inteiro” faz todo o sentido, considerando tanto sua maior resistência à dor, haja vista a dor do parto que só elas enfrentam, quanto a história do sofrimento feminino ao longo do tempo. Essas circunstâncias, existenciais, justificam que a mulher seja vista e se veja como metonímia concentrada dos dramas e dos impasses da própria humanidade. 

Que a narradora e protagonista seja uma metonímia também explica que ela passe por tantas dificuldades e sofra tantas agressões no decorrer do romance, já que as dificuldades e agressões não atingem apenas determinada mulher, mas sim todas as mulheres de Moçambique, quiçá do mundo. O leitor e a leitora podem achar que não é verossímil que apenas uma mulher sofra tanto assim – mas, como metonímia, Rami existe para nos lembrar do sofrimento do mundo inteiro.

Retorno agora ao primeiro parágrafo do romance, na página 9, quando a narradora se refere a um estrondo, que se ouve ao longe: 

Uma bomba. Mina antipessoal. Deve ser a guerra a regressar outra vez.

O pano de fundo histórico do romance são as duas guerras que assolaram Moçambique na segunda metade do século XX. Primeiro, a guerrilha do país contra a dominação de Portugal, liderada pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), que teve início em 1964 e terminou em 1974. A vitória da Frelimo foi facilitada pela Revolução dos Cravos em Lisboa, em 25 de abril de 1974, que acabou com o regime ditatorial em Portugal. Paulina Chiziane, assim como Mia Couto, o escritor mais conhecido do país, foram militantes da Frelimo.

Em 1977, foi deflagrada a guerra civil em Moçambique, entre a Frelimo e a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), espelhando o contexto da guerra fria, no mundo, entre esquerda e direita. Durante o conflito, um milhão de pessoas morreram em combate e muitas outras sofreram amputações por minas terrestres. O conflito terminou apenas em 1992. Até hoje, as minas terrestres remanescentes em solo moçambicano são um grande problema, matando e mutilando centenas de pessoas. Essas minas fazem com que a dor da guerra sempre retorne. 

Os efeitos da guerra são muito diferentes para os homens e para as mulheres. Para os homens, a guerra faz parte da brincadeira de matar – como nos mostrou, aqui no Brasil, nos últimos 4 anos, certo capitão reformado. Para as mulheres, a guerra não é nenhuma brincadeira, mas sim ocasião nefasta para perderem os filhos e serem vítimas da pior de todas as armas de guerra: o estupro. Direta e indiretamente, é disso que Niketche fala todo o tempo.

A narradora aproxima as vítimas mulheres umas das outras, e assim combate a solidão, ao procurar, uma por uma, as outras esposas do seu marido, expondo uma história de poligamia, como mostrava o subtítulo. No encontro com Julieta, a segunda esposa, ambas saem no tapa. Rami leva a pior, mas se surpreende, porque a suposta rival cuida dos seus ferimentos. Elas então, na página 21, começam a conversar e Rami se surpreende:

A minha rival abre-se e conta-me a sua longa história. A sua cama é fria como a minha. Vive numa solidão pior do que a minha. Tem cinco filhos como eu e agora espera o sexto.

Rami, esperando encontrar, na rival, uma vilã a quem pudesse odiar e, quem sabe, eliminar, espanta-se encontrando alguém com a mesma história e padecendo de uma solidão ainda pior, com tantos filhos quanto ela e ainda esperando mais um bebê. Na época em que se passa a história, no final do século XX, a contracepção já seria bem mais facilitada, mas não tanto na África profunda. De um lado, o homem ainda quer espalhar o máximo possível “as suas sementes”, ou seja, o seu sêmen, como se com cada filho gerado se convença de que ainda é homem, ou de que é mais homem do que os outros. De outro lado, o da mulher, que tem muito menos oportunidade de trabalho decente, cada filho é garantia de sobrevivência, quer quando pequeno, porque estimula o pai a sustentar também a mãe, quer quando adulto, porque pode apoiá-la na velhice, que chega tanto mais cedo quanto mais filhos ela gera.  

Na conversa depois da briga, Rami pergunta à Julieta, na página 23: “como podes andar à pancadaria por um marido que nem sequer é teu?”. A resposta de Julieta é outra pergunta, ainda mais perturbadora: “E o que significa a palavra teu, quando se trata de um homem?”. A narradora, então, reflete a respeito, provocando, no leitor, uma reflexão equivalente:

Gera-se um momento de pausa, grave, profundo. Desafiamo-nos, olho por olho. A Julieta revela-me uma verdade mais cáustica que uma taça de veneno. Ter é uma das muitas ilusões da existência, porque o ser humano nasce e morre de mãos vazias. Tudo o que julgamos ter, é-nos emprestado pela vida durante pouco tempo. Teu é o filho no ventre. Teu é o filho nos braços na hora da mamada. Mesmo o dinheiro que temos no banco, só o tocamos por pouco tempo. O beijo é um simples toque e o abraço dura apenas um minuto. O sol é teu, lá do alto. O mar é teu. A noite. As estrelas. Cada ser nasce só, no seu dia, na sua hora, e vem ao mundo de mãos vazias. Penso naquilo que tenho. Nada, absolutamente nada. Tenho um amor não correspondido. Tenho a dor e a saudade de um marido sempre ausente. A ansiedade. Ter é efemeridade, eterna ilusão de possuir o intangível. Teu é o que nasceu contigo. Teu é o marido quando está dentro de ti.

A reflexão reforça o caráter de manifesto do romance – nesse caso, um manifesto de cunho filosófico. Entrando na velha discussão da diferença entre ser e ter, Rami percebe que “ter é uma das muitas ilusões da existência”: da casa ao carro, do marido ao filho, tudo é fluido e fugaz como a água, efêmero e intangível como a verdade e a beleza.

O discurso de Paulina/Rami, misturo a escritora e a narradora de propósito, faz jus à concepção, popularizada por Roland Barthes, que enxerga na literatura um giro dos saberes . A literatura gira todos os saberes porque não sabe tudo, mas sabe de tudo um pouco. Ao pensar sobre as relações, no tempo, entre os homens e as mulheres, a narrativa navega, ao mesmo tempo, na história e na religião, nos lembrando que a população moçambicana é composta, na base, por povos bantus, mas a religião com o maior número de adeptos é o cristianismo. Diz a narradora, na página 36, convidando-nos a navegar com ela:

Navego numa viagem ao tempo. Haréns com duas mil esposas. Régulos com quarenta mulheres. Esposas prometidas antes do nascimento. Contratos sociais. Alianças. Prostíbulos. Casamentos de conveniência. Venda das filhas para aumentar a fortuna dos pais e pagar dívidas de jogo. Escravatura sexual. Casamentos aos doze anos. Corro a memória para o princípio dos princípios. No paraíso dos bantu, Deus criou um Adão. Várias Evas e um harém. Quem escreveu a Bíblia omitiu alguns factos sobre a génese da poligamia. Os bantu deviam reescrever a sua Bíblia.

Um dos modos de se fazer e de se estudar literatura se concentra numa palavra, embora grande: “intertextualidade”. Chiziane pratica a intertextualidade quando estabelece relação direta com a Bíblia; os leitores praticamos a intertextualidade quando relacionamos um romance a outros romances. Podemos, por exemplo, comparar Niketche ao romance da canadense Margaret Atwood, intitulado The Handmaid’s Tale – em português, O conto da aia – e à série televisiva do mesmo nome.

No livro e na série, um movimento fundamentalista baseado no Antigo Testamento derruba o governo dos Estados Unidos e cria a República de Gilead, na qual as mulheres não têm direitos, nem mesmo o direito de ler livros. A história é contada em primeira pessoa por uma mulher chamada Offred – literalmente Of-Fred , isto é, “do Fred”, que pertence, literalmente, a um homem chamado Fred Waterford. Offred foi sequestrada para servir como aia – no caso, apenas para reproduzir os filhos do homem a que pertence, na presença e com a ajuda da própria esposa desse homem. Aqui não se trata apenas de poligamia, mas de estupros em série, apresentados como rituais sagrados. 

Na quinta temporada de The Handmaid’s Tale , Offred, que na série tem o nome de June, fica desesperada atrás da filha, Hannah.  Hannah está sendo preparada, em Gilead, para se casar, com 12 anos de idade, com um homem muito mais velho. Ora, o romance de Chiziane falou de “casamentos aos doze anos”, assim como de “venda das filhas para aumentar a fortuna dos pais”. Ambos os romances sugerem, então, que os abusos cometidos contra as mulheres através do tempo não se restringem ao passado – eles continuam acontecendo até hoje.

Os personagens homens das duas escritoras parecem monstros, mas não se veem como monstros, como mostra uma fala de Tony, o marido polígamo de Rami, já na página 246:

Sou um homem bom, Rami, há homens piores do que eu. Faço tudo bem feito. Ter muitas mulheres é o direito que tanto a tradição como a natureza me conferem. Nunca maltratei a Lu, bati nela algumas vezes, apenas para manifestar o meu carinho. Também te bati algumas vezes, mas tu estás aí, não me abandonaste para lugar nenhum. A minha mãe sempre foi espancada pelo meu pai, mas nunca abandonou o lar. As mulheres antigas são melhores que as de hoje, que se espantam com um simples açoite.

A resposta de Rami é bem humorada: “tens razão, Tony, as mulheres de hoje já não têm juízo. Por que não te casas com a minha avó?”. Tony parece acreditar realmente que há justificativa plausível não apenas para a violência doméstica quanto, no limite, para o feminicídio, isto é, para o assassinato de mulheres pelo simples fato de serem mulheres. Essa justificativa é procurada no início dos tempos, embora ninguém possa saber, ao certo, como eram as coisas no início dos tempos. Os livros sagrados – como a Bíblia, que significa “conjunto de livros” –, no entanto, acham que sabem e nos contam, revoltando a nossa narradora, na página 61:

Até na bíblia a mulher não presta. Os santos, nas suas pregações antigas, dizem que a mulher nada vale, a mulher é um animal nutridor de maldade, fonte de todas as discussões, querelas e injustiças. É verdade. Se podemos ser trocadas, vendidas, torturadas, mortas, escravizadas, encurraladas em haréns como gado, é porque não fazemos falta nenhuma. Mas se não fazemos falta nenhuma, por que é que Deus nos colocou no mundo? E esse Deus, se existe, por que nos deixa sofrer assim? O pior de tudo é que Deus parece não ter mulher nenhuma. Se ele fosse casado, a deusa – sua esposa – intercederia por nós. Através dela pediríamos a benção de uma vida de harmonia. Mas a deusa deve existir, penso. Deve ser tão invisível como todas nós. O seu espaço é, de certeza, a cozinha celestial.

Deus, de fato, não tem mulher nenhuma na sua vida – nem esposa, nem mãe, nem irmã. A ausência de uma mulher na vida de Deus, nas religiões cristãs, é parcialmente compensada, no catolicismo, com o culto à Maria, mãe de Jesus – o que já não acontece entre os protestantes, que repudiam, como idolatria, o culto tanto à Nossa Senhora quanto a quaisquer santos. É conhecida a cena de um bispo da Igreja Universal, em 1995, chutando a imagem de Nossa Senhora Aparecida justamente no dia da padroeira do Brasil. Chiziane talvez dissesse que aqueles chutes foram dados em todas as mulheres do país.

Claro, o que Paulina Chiziane diria é especulação minha. Mas, em entrevista concedida à BBC Brasil em 2016, a escritora africana disse textualmente: 

Todos acham que a África não conhece Deus. As igrejas evangélicas estão exatamente com a mesma filosofia da inquisição: não pode haver mais nada, só aquilo que eles pensam. É só ver no que a inquisição acreditava: na força do diabo. Que pena, porque deveria ser na força de Deus. As igrejas evangélicas também acreditam muito na força do diabo, e acreditam que esse diabo vem da África. Portanto, é uma religião mais voltada ao culto ao diabo e à demonização africana. Matam tudo em nome de alguma coisa sobre a qual nem têm certeza.

A alusão às igrejas evangélicas, no romance como na entrevista, não é irrelevante, porque elas são as que mais crescem, na África como no mundo. O romance não esquece que as religiões dominantes no planeta são fundamentalmente patriarcais, o que explica seu machismo intrínseco. A opção pela poligamia, fortemente presente no Antigo Testamento, não implica direito à poligamia para todas e todos – mas apenas para os homens. Como explica a narradora, na página 81:

Porque poligamia é poder, porque é bom ser patriarca e dominar.

Subjaz à poligamia menos o direito ao prazer irrestrito – mas restrito apenas aos homens –, mais o direito ao poder absoluto, principalmente sobre o Inteiramente Outro do homem, representado, é claro, por cada mulher e por todas as mulheres. 

Mais adiante, na página 92, Rami lembra que o termo “primeira-dama”, tão discutido recentemente nos nossos jornais, por causa da Janja, esposa do presidente Lula, esconde vestígios de poligamia antiga:

Não há primeira sem segunda. Os reis tinham uma rainha só para inglês ver, e afogavam-se de prazer nas belas cortesãs, favoritas, nos haréns, concubinas e todas essas coisas.

Todo o enfrentamento do machismo e do racismo, por Rami e pelas mulheres de Tony, está contido numa única palavra, que por sua vez é o título do romance: “niketche”. Na página 138, Mauá, uma das mulheres de Tony, explica o que significa a palavra “niketche”:

Uma dança nossa, dança macua, uma dança do amor, que as raparigas recém-iniciadas executam aos olhos do mundo, para afirmar: somos mulheres. Maduras como frutas. Estamos prontas para a vida! Niketche. A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem o corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri, celebrando o mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se perdeu. As mulheres desamadas reencontram no espaço o príncipe encantado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos jovens desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha de toda a sensualidade. Quando a dança termina, podem ouvir-se, entre os assistentes, suspiros de quem desperta de um sonho bom.

A melhor resposta ao machismo e ao racismo, segundo a autora moçambicana, se encontra na dança – na dança do amor.

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Mon, 21 Nov 2022 18:45:18 -0300 http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seqArtigo=71
Competências e habilidades cognitivas: como executar essas operações na construção das respostas do exame discursivo. ( 04/12/2019 )

]]> <![CDATA[Artigo - <b>Competências e habilidades cognitivas:</b> como executar essas operações na construção das respostas do exame discursivo.]]> http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seq_artigo=68 À luz de concepções recentes, as avaliações de acesso ao ensino superior, como o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e os vestibulares das universidades estaduais, como a UERJ, têm chamado a atenção para uma capacidade humana apontada como fundamental à vida acadêmica, social e profissional do futuro estudante universitário: as habilidades cognitivas. Talvez não tenhamos notado, mas muitas de nossas atividades cotidianas, como ler, escrever, planejar, argumentar, avaliar, abarcam competências e habilidades mentais. No entanto, há ainda outras capacidades que são aprendidas e estimuladas durante nossa vida escolar, no contato com os livros, com o outro, com o mundo físico e social. Elas são consideradas essenciais pelos avaliadores dos exames, pois nos ajudam a compreender fenômenos, a enfrentar e resolver situações-problemas, a tomar decisões, analisar e interpretar dados, informações, textos escritos e imagéticos, organizar ideias, elaborar propostas, enfim, tudo aquilo que é esperado no processo de construção do conhecimento da formação média.

É importante lembrar que, para os organizadores dos vestibulares, explicitamente, não interessa mais, como antes, quantificar a capacidade de memorizar os conteúdos para solucionar os problemas propostos. Para a banca examinadora dos concursos, hoje, o importante é uma educação voltada para o desenvolvimento do raciocínio, capaz de preparar o estudante para a vida, para o exercício da cidadania e para o aprendizado permanente. Além disso, em linhas gerais, espera-se que o vestibulando, ao longo dos 12 anos da Educação Básica, esteja apto a ler e a compreender um texto (seja qual for o gênero), um enunciado, uma questão e a escrever um texto inteligível (coeso, coerente e claro), adequado a uma situação específica real de uso que corresponda à modalidade escrita formal da língua.

Em suma, o vestibular da UERJ é um concurso de mensuração de inteligência abstrata, isto é, os produtores deste exame desejam medir, do candidato, as operações mentais do pensamento, como criar, avaliar, analisar, interpretar, observar, interpretar, ter ideias sobre os fatos do mundo e relacioná-las entre si, comprovando-as ou refutando-as, mostrando, assim, que são capazes de transcender a aparente fragmentação dos acontecimentos e de ligar esse aparentemente disperso em totalidades significativas.

Algumas questões práticas de análise dos enunciados de questões discursivas

Ao se verificar o conteúdo programático das provas de acesso ao vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), apontam-se habilidades e competências cognoscitivas (identificar, indicar, reconhecer, nomear, apontar, justificar, calcular...) usadas para aprender, compreender e integrar as informações de forma significativa. Nos anos de nossa experiência em sala de aula, atuando como professores da educação básica, pudemos detectar as dificuldades que os alunos têm em corresponder ao que se pede nas questões discursivas. A partir daí, nasce este material, fruto da tentativa de levar o alunado a entender e a assimilar os comandos exigidos nos enunciados das provas, já que as respostas esperadas e precisas deverão atendê-lo.

Muitas podem ser as solicitações presentes nos enunciados (exercícios, perguntas, provas, testes, etc.) de análise dos textos (qualquer gênero) e imagens. As mais comuns podem ser identificadas através dos verbos a seguir:

• Identificar: é ter a capacidade de reconhecer, de encontrar um elemento entre outros.

• Apontar: assinalar, direcionar para aquilo que se quer chamar atenção. Indicar mostrando. Geralmente, aparece em enunciados que pedem exemplos a serem retirados do texto.

• Nomear: significa citar o nome de; dar nome a; denominar. Uma das funções da linguagem, cujo papel é fundamental, é a nomeação, já que ela representa os objetos, os seres, os processos e os fenômenos. Nomear ou designar algo denotam separar algum elemento para lhe dar destaque. Tomemos como exemplo uma questão da prova de Biologia do ano de 2017, do vestibular estadual:

• “Segundo estudos, a evolução de todos os eucariotos é o resultado da incorporação, em um passado remoto, de bactérias aeróbias de vida livre no interior de uma célula, em uma associação vantajosa para ambas. Essas bactérias originaram organelas celulares denominadas mitocôndrias”.

• Nomeie a teoria evolutiva que explica a formação da célula eucariótica por esse processo. Nomeie, também, a relação ecológica estabelecida entre as bactérias e a célula.

• A questão solicita os mesmos comandos. Para responder ao primeiro, o candidato deverá denominar qual a teoria pedida. Em seguida, deverá dar o nome da relação estabelecida entre as espécies diferentes.

• Relacionar/ Comparar: é estabelecer os pontos comuns e/ou diferentes entre dois elementos do texto ou entre elementos do texto e da realidade (do autor, do leitor, etc.). É arrolar as peculiaridades de dois ou mais objetos, fenômenos ou processos. A comparação é uma excelente habilidade para apreensão das características fundamentais do processo, do objeto ou do ser, de modo a distinguir as suas diferenças e semelhanças.

Tomemos como exemplo o edital 2019 do programa da prova de História do exame discursivo da UERJ. Nele, constam os seguintes conteúdos: [...] comparação entre processos de independência afro-asiáticos; pan-africanismo, neocolonialismo e soberania nacional; industrialização e desenvolvimento na América Latina [...]. Para atender a essa questão, pensemos: que relações existem entre a descolonização na Ásia e na África? Ou quais as diferenças e semelhanças do processo de independência desses dois continentes? Uma dica: ao responder, você poderá começar com as diferenças, depois com as semelhanças. Desta forma, você fugirá do senso comum e deslocará o foco da argumentação para os pontos dissonantes, de forma a persuadir o leitor.

• Correlacionar: é estabelecer uma relação, uma analogia, uma semelhança entre. Relação mútua entre dois termos, por exemplo. É a capacidade que nos permite assimilar conhecimentos de forma mais rápida.

• Estimar: significa calcular, fazer o cálculo do valor ou da quantidade de, avaliar. Pode-se estimar a velocidade, a distância, o percurso ou o tempo gasto. Esse é um processo mental especificamente exigido nas provas da área de exatas, sobretudo, na Física e que nos permite prever ou criar uma resposta. Tomemos como exemplo uma questão da prova de Física do ano de 2019, do vestibular estadual:

“Uma estudante, para chegar à UERJ, embarca no metrô na estação São Cristóvão. Ao sair dessa estação, a composição acelera uniformemente até atingir a velocidade de 22 m/s e, após ter atingido essa velocidade, percorre 1200 m em movimento uniforme. A partir daí, desacelera uniformemente até parar na estação seguinte, Maracanã”.

Estime, em metros, a distância total percorrida pela composição entre as duas estações.

Nesse tipo de questão, uma particularidade do vestibular atual, sobretudo da UERJ, é notória a passagem de princípios gerais (a forma geral de resolver problemas da disciplina) para a sua aplicação à situação real de uso. Percebe-se que o objetivo da questão é conseguir com que o alunado adquira uma capacidade mental para lidar com os conceitos e aplicá-los a situações de sua realidade, além do enfrentamento dos desafios hoje postos pela sociedade.

• Comentar: significa discutir acerca de. É, geralmente, tecer comentários (observações) gerais sobre o conteúdo do texto, o que supõe uma leitura atenta. Comente empregando palavras próprias e demonstrando seu conhecimento sobre o assunto construído ao longo de sua vida escolar.

• Interpretar: pode significar comentar ou analisar, dependendo do contexto. É o processo da escolha de informações, fatos, opiniões e argumentos a fim de se posicionar criticamente. De qualquer forma, é uma tarefa que deve se ater aos limites do texto, evitando-se, sempre que possível, misturar as afirmações do texto com aquilo que achamos. Segundo alguns autores, interpretar consiste em saber o que se infere (conclui) do que está escrito. Nesse caso, o enunciado normalmente é encontrado da seguinte maneira:

O texto possibilita o entendimento de que...

Com apoio do texto, infere-se que...

O texto encaminha o leitor para...

Pretende o texto mostrar que o leitor...

O texto possibilita deduzir-se que...

• Diferenciar: estabelecer, perceber diferença ou distinção entre seres ou objetos; distinguir. Mostrar o que não é igual.

• Organizar: é hierarquizar informações, fatos, opiniões, após selecioná-los, observando o grau de importância de cada um. É importante começar sempre pelos elementos mais importantes, para, em seguida, elencar os elementos complementares ou secundários. Essa poderá ser a maneira mais estratégica de apresentá-los, sem se perder nas ideias.

• Classificar: é a ação de agrupar, organizar em categorias de acordo com o pertencimento a um grupo ou classe. A classificação reitera a ideia de que o desenvolvimento das habilidades contribui para que o aluno tenha o domínio do todo e das partes, para que se determine a interdependência entre elas.

• Analisar: é separar as partes, compará-las e tirar conclusões lógicas, coerentes com o texto. É a capacidade de decompor o todo em suas partes constitutivas, entendendo a inter-relação existente entre elas (as partes).

• Avaliar: é posicionar-se criticamente frente ao texto ou a algum aspecto dele; é emitir um juízo de valor a respeito das ideias essenciais de um texto, desde que comprovadas com argumentos lógicos ou com passagens do texto. Esse juízo pode ser baseado em critérios quantitativos ou qualitativos.

• Explicitar: tornar explícito, claro, evidente; que não dá margens a interpretações extensivas nem ambíguas. Tomemos como exemplo uma questão da prova de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do ano de 2017, do vestibular estadual:

• Natividade, que em tudo via a inimizade dos gêmeos, suspeitou que o intuito de Pedro fosse justamente comprometer Paulo. Olhou para ele a ver se lhe descobria essa intenção torcida, mas a cara do filho tinha então o aspecto do entusiasmo. Pedro lia trechos do discurso, acentuando as belezas, repetindo as frases mais novas, cantando as mais redondas, revolvendo-as na boca, tudo com tão boa sombra que a mãe perdeu a suspeita, e a impressão do discurso foi resolvida”.

• Nesse trecho, observa-se que Pedro, mesmo com posição política contrária à de Paulo, lê com entusiasmo o discurso do irmão, trocando de lugar com ele. Essa troca de papéis sugere uma crítica acerca da política daquela época. Explicite essa crítica. Aponte, ainda, a relação de sentido que a oração sublinhada estabelece com a anterior.

No primeiro comando da questão, o candidato deve tornar claro qual a crítica sugerida sobre o sistema de governo da época em que se passa o texto. Em seguida, há outro comando a ser respondido: a habilidade mental de apontar. Nesse caso, as orações subordinadas adverbiais podem estabelecer diversas relações de sentido (causa, consequência, tempo, condição, concessão, etc.). Sua tarefa será indicar qual, dentre várias, é a relação estabelecida.

• Justificar: é demonstrar, provar. Apresentar motivos, razões, explicações.

• Citar: mencionar como prova, fazer referência a. Apontar, reportar-se a um texto ou às palavras de alguém como apoio ao que se diz. Por exemplo:

ENUNCIADO: Cite as causas principais do efeito-estufa.

RESPOSTA: As principais causas do efeito-estufa são: ..... /Os maiores causadores do efeito-estufa são ..... Esse fenômeno é causado principalmente por .....

Como citar: nem sempre é necessário citar o texto que se analisa para responder a uma questão sobre ele, pode-se e até se deve traduzir (paráfrase), com linguagem pessoal e com máximo de fidelidade, as ideias ou conteúdos do texto contidos na versão original. Mas há casos em que é necessário citar, ou porque isso foi solicitado (com comandos do tipo retire do texto, transcreva, justifique sua resposta...), ou porque se quer provar com as palavras do texto uma opinião a respeito de uma questão polêmica suscitada pela leitura, por exemplo. Assim, para citar, devemos proceder da seguinte maneira: sempre que for citar o texto integralmente ou parte dele, usar aspas.

Cabe ressaltar aqui que a citação é uma estratégia argumentativa valiosa que serve para fundamentar um ponto de vista, produzindo no texto um efeito de autenticidade; funciona como um argumento de autoridade, um elemento de prova. Entretanto, ela só é válida e produtiva se estiver vinculada à discussão levantada pela banca ou pelo candidato.

Considerações finais

Levando-se em conta o que foi dito ao longo deste artigo, fomos em busca de itens que dissessem respeito, em sua maioria, às habilidades envolvidas com a linguagem, o que não significa que nos ativemos só aos conteúdos de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Um item, por exemplo, pode abordar temas de História, mas requerer também a capacidade de interpretar, nomear, citar, diferenciar, etc. Portanto, o candidato deverá obedecer aos comandos das diversas provas, ou seja, não só na área de linguagens, mas também em Matemática, Física, História, Biologia, etc. Diante dessas situações, o futuro estudante universitário se vê desafiado a mobilizar um conjunto de habilidades e saberes para dar conta, de forma eficiente, das respostas ou soluções.

REFERÊNCIAS

BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Lucerna, 2002.

FAULSTICH, Enilde L. de J.  Como ler, entender e redigir um texto. RJ: Vozes, 2009.

GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo, Ática, 2004. (Série Princípios)

HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

MEYER, Bernard. A arte de argumentar. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

SANTOS, Leonor Werneck dos; CUBA RICHE, Rosa; TEIXEIRA, Claudia de S. Análise e produção de textos. São Paulo: Contexto, 2013.

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Wed, 04 Dec 2019 09:51:40 -0300 http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seqArtigo=68
Para pensar melhor: A redação da UERJ ( 09/01/2020 )

]]> <![CDATA[Artigo - <b>Para pensar melhor</b>: A redação da UERJ]]> http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seq_artigo=69 Este artigo expõe a concepção pedagógica, epistemológica e política que embasa a Redação da UERJ, desde a proposta que aparece para os candidatos até o processo de correção das redações.

O artigo é construído a partir de duas palestras ministradas em 2019: a primeira, em outubro, para cerca de 200 candidatos ao Vestibular Estadual 2020, no Auditório 11 no Campus Maracanã da universidade; a segunda, em dezembro, para os 130 professores da equipe de correção da prova de Redação do exame discursivo do mesmo vestibular, no mesmo Auditório.

As propostas e as práticas de correção definem a concepção de redação com que trabalhamos, até porque há pelo menos duas concepções bem diferentes, competindo entre si pelo coração dos candidatos e dos professores de português: a do vestibular da UERJ e a do Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM. Exploro essa diferença fazendo algumas perguntas para o leitor.

O artigo é dedicado a todos os professores que participam e que já participaram da correção das redações no exame discursivo do Vestibular da UERJ, o que significa centenas de profissionais da melhor qualidade.

Escrever é fácil?

Escrever é estar no extremo

de si mesmo, e quem está

assim se exercendo nessa

nudez, a mais nua que há,

tem pudor de que outros vejam

 o que deve haver de esgar,

de tiques, de gestos falhos,

de pouco espetacular

na torta visão de uma alma

 no pleno estertor de criar.

Quem conhece o meu velho livrinho, Redação inquieta, publicado no século passado, em 1985, sabe que os versos acima, de João Cabral de Melo Neto, compõem a sua epígrafe. Os versos ajudam a explicar por que os alunos correm para pôr a sua redação debaixo da pilha de redações, na mesa do professor, pedindo para não lermos na frente deles. Eles têm medo, não tanto da nota, mas principalmente do olhar e da opinião do professor — porque, ao escreverem, de algum modo sentem que chegaram perto do extremo de si mesmos.

Escrever não é fácil. Se acharmos que é fácil, desanimamos rápido. Escrever é difícil tanto para o iniciante quanto para o romancista consagrado. A rigor, ninguém aprende a escrever, porque todo mundo está sempre aprendendo, a cada texto e a cada momento. Não são apenas os candidatos ao vestibular e os nossos alunos que sofrem para escrever — nós também. Se não nos lembramos disso, não avaliamos bem as redações deles.

A dificuldade de escrever, que é natural, que é normal, deriva da dificuldade de ter opiniões próprias. Do mesmo jeito que escrever não é fácil, não é fácil ter uma opinião sobre qualquer que seja o assunto. Defendemos mal as nossas opiniões porque, comumente, elas não são de fato nossas — apenas as repetimos sem pensar, ou pensando muito pouco a respeito. Por isso, quando contestados ou ridicularizados, mudamos tão rapidamente de opinião.

A construção de uma opinião pessoal ou de uma ideia própria é muito difícil, demandando pesquisa, reflexão, paciência, silêncio, introspecção e elaboração. É preciso reconhecer essa dificuldade para poder valorizar tanto as opiniões alheias quanto as nossas poucas boas ideias. Uma boa opinião é fruto de reflexão, maturação, paciência e tempo. Por isso, se o aluno ou candidato ainda não tem uma opinião bem formada sobre o tema, ele deve mostrar seu esforço de construir essa opinião.

Como? Levantando possibilidades de abordagem, elaborando hipóteses alternativas, e fazendo perguntas tanto ao tema quanto ao leitor quanto, ainda, a si mesmo. Usando, com economia, indicadores de que está pensando. Ora, qual é a palavrinha que indica bem que estamos pensando? A palavrinha “talvez”. Mostrar a sua dúvida mostra que você está pensando, porque pensar é simplesmente igual a duvidar.

Todos conhecem a frase de René Descartes, “cogito ergo sum”, ou seja: penso, logo, existo. Em geral conhecem, porém, apenas a metade da frase. A frase completa é: “cogito ergo sum vel quod item est dubito ergo sum” — ou, em português: “penso, logo, existo, ou, o que é o mesmo, duvido, logo, existo”. Esta sentença nos permite concluir que quem não duvida, não pensa; quem só tem certezas, as quais repete sem parar, já não pensa mais. O que nos leva à segunda pergunta.

 

Como definir a redação argumentativa?

A redação argumentativa, também conhecida como dissertação, pode ser definida como a ação de defender uma opinião própria por meio de argumentos articulados entre si. Os argumentos sustentam a defesa da opinião. O que constitui um argumento é um conjunto de evidências articuladas entre si. Os argumentos precisam ser tanto suficientes e pertinentes quanto válidos e verdadeiros.

Na redação, pode-se defender qualquer opinião, mas se e somente se ela estiver sustentada em argumentos, argumentos estes que devem ser apoiados em fatos. Temos direito à nossa própria opinião, mas não a nossos próprios fatos.

Se eu defendo que a Terra é plana, contra todas as evidências científicas, apenas porque alguns imbecis me mandam repetir isto, a minha opinião não é de modo algum válida. Se eu defendo que não há aquecimento global, eu preciso ter dados que sustentem a contestação da teoria vigente, bem como a elaboração de novas hipóteses nesta questão.

A primeira opinião é indefensável, porque não há qualquer evidência que a sustente. A segunda opinião é muito difícil de defender, mas não impossível, porque os piores efeitos do aquecimento global ainda não se fizeram sentir. Eu posso ler uma redação que defenda essa posição e discordar de todos os seus argumentos, mas, ainda assim, lhe dar a nota máxima, porque ela tem argumentos e eles estão bem articulados entre si.

Essa é uma regra das nossas correções de redação: nós avaliamos apenas e tão somente a qualidade da argumentação, porque não importa se concordamos ou não com a opinião ali expressa. Essa também já é uma diferença capital entre as propostas de redação da UERJ e do ENEM.

 

Como se avalia redação num concurso vestibular?

Avaliar alguém ou o trabalho de alguém é extremamente difícil, senão impossível, porque quem avalia nunca sabe tudo o que precisa saber sobre a pessoa que avalia, ou sobre as condições em que ela fez este ou aquele trabalho. Não à toa a própria Bíblia já nos dizia, em Mateus 7: “não julgueis, para que não sejais julgados”. Por isso mesmo, é triste quando vemos tantos com a Bíblia debaixo do braço, mas julgando os outros com o rigor que não usam para julgar a si mesmos.

A despeito dessa regra de ouro, a avaliação é necessária, em especial na educação. A avaliação justa, na vida ou na escola, é um horizonte que devemos perseguir, mas sempre sabendo que todo horizonte, por definição, se afasta de nós na mesma velocidade com que andamos na direção dele.

Ora, se toda avaliação é muito difícil, a avaliação de uma redação é duplamente difícil, porque não é possível estabelecer para ela um gabarito fechado. Cada redação particular estabelece seus próprios critérios. A correção de redações é sempre um processo subjetivo e intersubjetivo que leva em conta muitos fatores, inclusive as outras redações da pessoa avaliada e a relação entre quem avalia e quem é avaliado. Cada professor precisa de estratégias para moderar a sua própria subjetividade, tentando, em termos ideais, comparar a redação de um aluno não apenas com as redações dos colegas ou com o seu modelo ideal de redação, mas, antes de tudo, com as outras redações deste mesmo aluno.

Assim como não é fácil escrever, também não é fácil dar aula de redação: envolve não somente muito trabalho, mas também muito estudo, muita habilidade e, principalmente, muita empatia. Nos concursos de massa, como o vestibular, a relação entre quem escreve e quem avalia é ainda mais complicada e subjetiva, porque quem avalia não conhece quem escreve, bem como vice-versa, o que gera uma impessoalidade perigosa, a qual, paradoxalmente, amplia a subjetividade: como ter empatia com uma pessoa que eu não conheço? Como escrever para alguém que vai me avaliar, mas que eu não sei quem é?

Nos vestibulares, costuma-se moderar a subjetividade através de dupla correção cega, pela qual dois professores avaliam as mesmas redações, sem que um avaliador saiba o nome do outro, nem que notas atribuiu. Se a diferença entre as notas é menor do que certo percentual, tira-se a média das duas notas. Se a diferença entre as notas é maior do que este percentual, configura-se uma discrepância. Convoca-se então um terceiro avaliador, ou da equipe de supervisão ou da própria banca, para rever as duas avaliações e atribuir a nota final. O processo de correção se torna uma discussão coletiva, para benefício dos candidatos e do exame, que assim fica um pouco mais justo.

 

Qual é a diferença entre a redação do ENEM e a redação da UERJ?

Faço esta comparação porque os candidatos passam mais tempo treinando para a redação do ENEM do que para a redação da UERJ. Faço esta comparação, também, porque muitos professores não só corrigem a redação do ENEM como preparam seus alunos para o ENEM.

Entretanto, as propostas de redação e da correção da redação do ENEM e da UERJ são opostas entre si. Primeiro, a proposta da redação do ENEM obriga os candidatos a defenderem a mesma opinião, inviabilizando a defesa de qualquer opinião realmente própria. Ou o candidato concorda com a opinião da banca, que fica clara na proposta da redação, ou corre o risco de ter a redação zerada.

Na redação do ENEM, cada corretor corrige em casa, com supervisão à distância – logo, o trabalho da correção é antes individual do que em equipe. A correção é feita por 5 quadros estanques de competências, atribuindo graus entre 0 e 2 a cada quadro.

Ora, a correção por quadros estanques de competências fragmenta a percepção da redação, fazendo com que o avaliador não enxergue a redação como um todo, mas apenas como um conjunto de aspectos técnicos desconectados entre si. Além disso,  a correção por quadros estanques de competências empurra as notas para a média, porque os avaliadores tendem a não atribuir nem a nota mínima nem a nota máxima a cada quadro.

A redação da UERJ, por sua vez, é elaborada a partir da leitura de um romance previamente indicado – no vestibular 2020, realizado em 2019, o romance indicado foi Vidas Secas, de Graciliano Ramos; no vestibular 2021, a ser realizado em 2020, o romance indicado será 1984, de George Orwell.

Na redação da UERJ, pede-se a discussão de uma determinada questão polêmica levantada pelo romance, deixando claro que se aceita qualquer opinião do candidato a respeito do tema, desde que esta opinião esteja apoiada em argumentos válidos, verdadeiros, pertinentes e suficientes. A leitura do romance e a sua discussão com colegas e professores facultam a cada candidato a possibilidade de escrever uma redação com argumentos previamente amadurecidos.

A correção da redação da UERJ é presencial, em equipe, no campus da universidade. A correção assume a subjetividade da tarefa e busca ser totalizante, atribuindo um grau geral a toda a redação, de preferência par, correspondendo aos conceitos: EXCELENTE (10); BOA (8); MÉDIA (6); FRACA (4); MUITO FRACA (2); e NULA (0). A cada ano, para cada proposta de redação, construímos um quadro para caracterizar os perfis de redação que justifiquem cada valor atribuído, bem como possibilidades de combinação de critérios.

Os avaliadores devem valorizar qualquer opinião, desde que ela conte com argumentos que a sustentem. Os avaliadores sempre devem se lembrar de que, se a redação de determinado candidato nos incomoda ou nos irrita, a releitura é imprescindível — porque há forte probabilidade de que a redação confronte as nossas convicções e, nesse sentido, ela tem efeito e pode estar tecnicamente boa, mesmo que defenda uma opinião oposta à nossa. Como já foi dito, não nos cabe avaliar a qualidade da opinião, mas sim a qualidade dos argumentos que sustentem a opinião.

 

O treinamento de redação ajuda a fazer a redação do vestibular?

Sim e não.

Sim, porque esse treinamento ajuda os bem iniciantes e os menos preparados a fazerem redações mais próximas da média geral.

Também devo responder “não”, porém, porque “treinar redação” é uma contradição nos próprios termos: se treino alguém a escrever, isto é, a pensar, acabo ensinando-o a não pensar.

O treinamento da redação tende a pasteurizar os textos dos candidatos, levando-os a usarem todos os mesmos recursos e as mesmas palavras, o que transforma eventuais qualidades em defeitos. Os corretores ficam cansados de ler as mesmas estruturas, os mesmos conectivos e as mesmas citações, o que os leva, com razão, a penalizar as redações que se repetem como se saíssem de uma máquina enguiçada, e não da cabeça pensante de um candidato.

Dessa maneira, o treinamento tende a prejudicar os candidatos medianos e, principalmente, os candidatos melhor qualificados, trazendo-os também para próximo da média — no caso deles, trazendo-os para baixo, logo, mediocrizando o seu trabalho e o seu valor.

Sugiro sempre aos candidatos que aproveitem o que for possível dos treinamentos e das dicas, mas, ao mesmo tempo, recomendo enfaticamente que protejam a sua própria opinião. Quando se defende uma opinião diversa da nossa, cometemos muito mais erros de todo tipo, da argumentação à gramática, simplesmente porque no fundo não concordamos com o que estamos escrevendo.

As próximas perguntas questionam as armadilhas desses treinamentos de redação.

 

Posso escrever na 1ª pessoa do singular?

Essa é uma questão nevrálgica. Sempre tenho vontade de responder: não só pode, como deve!

Uma das recomendações recorrentes é a de de não falar jamais na 1ª pessoa do singular, de nunca escrever “eu acho que”. Ao contrário, ensina-se o candidato a optar pelo plural de modéstia, “nós pensamos isso ou aquilo”, ou pela indeterminação do sujeito, dizendo “pensa-se isto ou aquilo”.

A primeira consequência dessa recomendação é a de o candidato se convencer de que não pode expressar a própria opinião, já que não pode falar em seu próprio nome. Essa recomendação, no meu entender absolutamente equivocada, é corroborada pelos professores, infelizmente, que orientam os alunos a esquecerem a própria opinião — o que gera contradição absurda, já que a dissertação é a defesa de uma opinião pessoal.

Se não posso ter opiniões, então não posso escrever uma dissertação, que é justamente a defesa de uma opinião.

Por isso, enfatizo que na verdade as três opções  — “eu penso”, “nós pensamos”, “pensa-se” — são válidas, nenhuma delas está errada. O candidato pode muito bem alternar as três pessoas, para deixar o texto mais dinâmico. Entretanto, a insistência no plural de modéstia ou na indeterminação do sujeito, excluindo a alternativa da 1ª pessoa do singular, tem como efeitos colaterais indesejados a mediocrização da redação, primeiro, e a atrofia do pensamento, a seguir, como se nos mandassem não pensar.

Eu — assumindo sempre que sou eu quem fala — recomendo que o aprendiz de redação procure escrever na 1ª pessoa do singular, porque: historicamente, os principais escritores dos séculos XX e XXI escrevem na 1ª do singular; pedagogicamente, escrever na 1ª do singular ajuda a pensar, portanto, a construir argumentos; politicamente, escrever na 1ª do singular ajuda a pensar pela própria cabeça, portanto, a não se deixar manipular pelo discurso alheio.

Evitar escrever “eu acho que” ou “penso que” induz a pessoa a não achar ou pensar mais nada, levando-a a não concordar com aquilo que ela mesma escreve — o que provoca erros graves de concordância verbal. Ninguém escreve ou fala “nós vai” porque não sabe que o certo é “nós vamos”, mas sim como sintoma do esmagamento da individualidade e da dignidade por esse tipo de recomendação esquizofrênica.

O adjetivo “esquizofrênico”, aqui, não é exagero: se mando escrever uma dissertação, que é a defesa de uma opinião, e depois mando não expressar a própria opinião, então eu dou duas ordens contraditórias — o que revela a minha esquizofrenia e, ao mesmo tempo, provoca esquizofrenia no outro.

Devo, no entanto, fazer ressalva óbvia: não basta escrever “eu acho que” — é preciso, primeiro, “achar” mesmo alguma coisa, ou seja, expressar realmente alguma ideia ou opinião, e depois, sustentar o que achou ou pensou com argumentos articulados e devidamente apoiados em fatos e evidências. Também é contraindicado escrever “eu acho que” ou “eu penso” repetidamente, por exemplo no início de cada parágrafo, porque passa a impressão de que o autor do texto está “enrolando”, porque não sabe o que dizer.

 

Citar opiniões de outras pessoas pode ser válido?

Sim, porque constitui parte do “argumento de autoridade”, quando citamos autoridades no assunto para apoiar o nosso pensamento. Entretanto, é necessário, primeiro, que o autor citado seja de fato uma autoridade no assunto (um político, por exemplo, não tem autoridade nenhuma em relação a questões sociais, científicas ou estéticas — às vezes, nem em questões políticas); segundo, é necessário que a citação se encaixe direitinho na redação, para não ficar deslocada no argumento; terceiro, e mais importante, é necessário que o candidato tenha de fato lido o autor citado ou a obra citada, para conseguir estabelecer as relações e as comparações corretas.

A citação forçada e aleatória tira a autoridade de qualquer argumento de autoridade. Os treinamentos de redação costumam orientar para citar filósofos e pensadores em geral, mas o resultado tende a ser muito ruim, porque os candidatos não leram os autores que citam e, em consequência, acabam citando muito mal.

Friedrich Nietzsche e Zygmunt Bauman, por exemplo, são autores muito citados, mas quase sempre de maneira inadequada ou simplesmente errada. Como este é um recurso usado por um número muito grande de candidatos, acaba cansando o avaliador e levando-o a desvalorizar as redações que o usam.

Considerando que a redação da UERJ parte das questões levantadas por um livro de literatura, recomendo enfaticamente fazer citações, se for o caso, ou do livro trabalhado, ou diretamente relacionada ao livro trabalhado — por exemplo, de comentários do autor ou de críticas feitas à obra.

Claro, não é obrigatório fazer citações, trata-se apenas de mais um recurso possível — entretanto, se o candidato fizer uma citação, que ela seja pertinente e consequente. A orientação é a de não penalizar quem não cita o livro, porque o candidato não precisa fazer uma crítica literária. Entretanto, valoriza-se quem cita o livro, tanto corretamente, porque o leu, quanto adequadamente, porque a citação reforça o seu argumento, não está ali apenas de enfeite para impressionar o corretor.

 

Devo escrever difícil para impressionar?

A resposta para o candidato é: por favor, não faça isto.

Ensinam-se os iniciantes a usar conectivos elaborados, mas não se ensina a fazer as conexões adequadas — proliferam conectivos ligando nada a coisa nenhuma, além da tendência desastrada de usar “onde” como conectivo coringa, mesmo sem estabelecer nenhuma relação de lugar, ou então de usar “então” para começar cada frase, o que é absurdo.

Ensinam-se os iniciantes, também, a usar mesóclises — dir-se-ia, falar-se-ia, por exemplo — como se estivéssemos no século retrasado, mas não se ensina a conjugar corretamente os verbos. Mesóclise, no século XXI, é um pecado mortal do estilo, prejudicando seriamente a clareza do texto e provocando, na melhor das hipóteses, algumas risadas.

Ensinam-se os iniciantes, por fim, a usar um vocabulário empolado, burocrático e de cartório, recorrendo a palavras como “destarte”, “decerto”, “supracitado” e “outrossim”, e não a escrever claro.

O próprio Graciliano Ramos, a propósito, teria proferido um veredito definitivo sobre o uso de “outrossim” e outros preciosismos, num ofício que escreveu quando foi prefeito de uma cidade do Nordeste. Ao receber um outro ofício, do Governador de Alagoas, Graciliano lhe respondeu educadamente, contestando algumas determinações, mas acrescentou: “em tempo: outrossim é a puta que o pariu!”.

Há quem diga, no entanto, que a condenação acima foi proferida quando ele trabalhou como revisor de um jornal, no Rio de Janeiro, ao se deparar com a barbaridade no texto de um repórter. O que importa é que não nos esqueçamos dessa condenação definitiva a todos os “outrossins” e pedantismos equivalentes.

 

Então, como impressionar a banca de correção?

A regra é: não tentar impressionar ninguém.

Apenas escrever, antes de tudo, com o máximo de clareza. Sempre sugiro imaginar um leitor ideal que seja inteligente, claro, mas que saiba menos do que quem escreve, para escrever explicando para esse suposto leitor, com o máximo de clareza, tintim por tintim, os principais aspectos da opinião de quem escreve e os principais pontos do seu raciocínio.

Recomendo, igualmente, que ninguém se coloque numa posição subalterna ou inferior, ou seja: que ninguém tente “puxar o saco” do avaliador, porque o efeito é muito ruim.

A postura contrária, porém, também não é recomendada. Não se deve ser arrogante, dizendo “minha opinião é esta e ninguém vai mudar”, escrevendo como se quem se atrevesse a discordar fosse um idiota. É preciso defender o próprio pensamento, mas não tentar impor o seu pensamento, nem escrever como se falasse apenas com os “iguais” nas redes sociais. Quem redige precisa convencer o interlocutor do que pensa, mas com elegância, discrição, educação, calma e, principalmente: bons argumentos.

Essas recomendações implicam avaliações compatíveis com elas. A avaliação da redação não deve valorizar preciosismos pedantes. O que se deve valorizar, ao contrário, é a clareza e, se for o caso, o humor fino.

José Ortega Y Gasset dizia que a gentileza do filósofo é a clareza. Eu prefiro dizer que a clareza é a obrigação de todos os que escrevem — a gentileza é o humor.

 

Como a leitura do livro indicado ajuda a fazer a redação?

Desde 2017, indicamos um livro de literatura como leitura prévia da prova de Redação. Em 2017, trabalhamos com Dom Casmurro, de Machado de Assis; em 2018, com O seminarista, de Rubem Fonseca; em 2019, com Vidas secas, de Graciliano Ramos. Em 2020, o livro indicado como leitura prévia da prova de Redação, no exame discursivo, será 1984, de George Orwell.

A indicação dessa leitura prévia ajuda os candidatos porque, antes de tudo, não se precisa mais adivinhar o tema: o tema é uma das questões levantadas pelo livro previamente lido pelos candidatos. Os candidatos podem discutir essas questões, ao longo do ano, com os colegas e os professores, o que lhes permite elaborar aos poucos as suas próprias opiniões a respeito, contando com o seu esforço consciente e com o trabalho, em segundo plano, do inconsciente.

Os candidatos não precisam mais fazer citações impertinentes, já que há um livro de onde tirar citações pertinentes, as quais, claro, não precisam ser citadas de memória — ninguém precisa decorar o livro, basta comentar uma passagem ou, se for o caso, uma fala.

É importante destacar que a ficção é fonte privilegiada de argumentos e de reflexões para todas as questões da humanidade. A literatura é uma escola de convivência, de civilização, de tolerância e de desmascaramento de preconceitos, porque ela nos permite o que de outra forma seria muito difícil: nos colocarmos no lugar e nas perspectivas dos outros.

Quando lemos um romance, nós também nos tornamos o narrador ou o protagonista, nós também pensamos como o narrador ou o protagonista. Mesmo que o protagonista seja, por exemplo, um matador de aluguel, como o ex-seminarista do livro de Rubem Fonseca que serviu à redação do vestibular 2019, ou um jagunço que rouba, mata e violenta, como o insinuante Riobaldo Tatarana, do romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, nós, os leitores, entramos na pele e na mente deles, e assim entendemos nossas próprias zonas de sombra.

Quando lemos Vidas secas, de Graciliano Ramos, para a redação do vestibular 2020, acompanhamos a mente e o coração de personagens encurralados pela seca, esmagados pela miséria e alienados pela falta de educação, de direitos e de oportunidades — tanto, que mal conseguem articular seus desejos, suas angústias e suas esperanças.

Este livro em particular, a literatura em geral, nos convidam sempre à empatia, à simpatia e à compaixão, sentimentos cada vez mais necessários  e urgentes frente à estupidez, à grosseria e à boçalidade, espalhadas nas principais instâncias de poder do país.

 

Qual conselho dar aos candidatos?

Aconselho os candidatos a lerem primeiro, no dia do exame discursivo, a proposta da redação, mas deixando-a de lado a seguir, para responder às demais questões do exame. A redação deve ser escrita no final, quando o inconsciente de cada um já teria trabalhado, em segundo plano, nos argumentos da redação.

Este conselho é reforçado pela própria proposta de redação da UERJ, que parte de um livro de literatura conhecido previamente. Ora, nada alimenta mais o inconsciente de uma pessoa do que a leitura silenciosa e solitária — em especial, a leitura de ficção. Desse modo, os candidatos podem deixar sua opinião e seus argumentos amadurecerem ao longo do ano, redigindo-a ao final com muito mais segurança.

O que estamos dizendo aos candidatos é que é preciso, antes de tudo, acreditar em si mesmos: no próprio estudo, na própria leitura, na própria consciência, no próprio inconsciente, na própria opinião. Muito mais do que aprender a fazer prova, cada um precisa aprender a confiar, antes de tudo, em si mesmo.

É preciso chamar a atenção para o forte efeito pedagógico do vestibular da UERJ nas escolas de ensino médio e fundamental do Estado do Rio de Janeiro. As concepções de redação e, consequentemente, de avaliação da redação que defendemos e que aperfeiçoamos já há muitos anos, supõem que, para os alunos escreverem melhor, eles precisam pensar melhor.

Ora, para eles pensarem melhor, é preciso antes de tudo que pensem pela própria cabeça, que não se conformem com a reprodução mecânica de modelos de redação, que não se conformem com a ordem absurda de escreverem dissertações sem expressarem as suas próprias opiniões.

O cumprimento dessa ordem absurda os leva a abdicar de construir o próprio pensamento, logo, a não duvidar e, portanto, a não pensar. Daí ao desastre pedagógico, acadêmico, científico, social e político, é apenas um passo — ou apenas um voto.

 

Como esses princípios afetam a correção das redações?

Lembro que a correção por quadros estanques de competências fragmenta a percepção da redação, fazendo com que o avaliador não enxergue a redação como um todo, mas apenas como um conjunto de aspectos técnicos desconectados entre si.

Ora, se entendemos que a redação do Vestibular da UERJ deve valorizar a construção da opinião e do pensamento próprios dos candidatos, então devemos entender também que a correção da redação do Vestibular da UERJ deve valorizar a opinião, o pensamento e a experiência dos professores que fazem este trabalho.

Por isso, propomos um processo de correção em que não se tente denegar a subjetividade dos avaliadores, mas, ao contrário, propomos um processo que assuma a subjetividade dos avaliadores — logo, que valorize sobremaneira as suas próprias reflexões.

Há um método de educação que se sobrepõe a todos os outros: o velho método do exemplo. Ensino a pensar, e portanto a escrever, se também penso, isto é, se também cultivo as minhas dúvidas, explorando todos os seus desdobramentos. A redação do Vestibular da UERJ, desde a sua proposta até o seu processo de correção, quer ser um exemplo, para o ensino médio e para a sociedade, de valorização do pensamento.

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Thu, 09 Jan 2020 17:12:14 -0300 http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seqArtigo=69
Não tem mistério, está no edital: uma orientação para a prova de Redação ( 31/08/2020 )

]]> <![CDATA[Artigo - <b>Não tem mistério, está no edital:</b> uma orientação para a prova de Redação]]> http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seq_artigo=70 Os temas das provas de redação no vestibular da UERJ apresentam possibilidades de respostas norteadas pelo posicionamento do candidato, diferentemente dos temas elaborados pelo Enem, cuja frase-tema apresenta um problema ora implícito, ora explícito, com abordagem direcionada pela coletânea, ficando ao estudante a função de constatar esse problema, analisar suas causas e apresentar soluções. Nesse sentido, é possível declarar que a prova de redação do vestibular da UERJ revela uma preocupação com a capacidade argumentativa do(a) candidato(a), uma vez que não há uma única abordagem a defender, como acontece no Enem, precisando o(a) estudante refletir sobre o seu posicionamento e defendê-lo a partir das suas perspectivas e suas experiências no mundo – o que lhe traz a possibilidade de se colocar como um sujeito ativo no processo de feitura da redação. Vejamos um exemplo da diferença entre os temas dessas duas provas:

1) a verdade pode ser estabelecida com base em uma única perspectiva? (Vestibular UERJ 2018)

2) Democratização do acesso ao cinema no Brasil (Enem 2019)

No primeiro tema, é possível escrever um texto a partir de três respostas possíveis a serem dadas à pergunta feita no tema da UERJ 2018: sim, é possível estabelecer a verdade com uma única perspectiva; não, não é possível; depende. Se você buscar a resposta-padrão, o gabarito, divulgada no site Vestibular UERJ, após a aplicação dessa prova, verá que a banca apresenta essas três possíveis respostas. Já no segundo tema, o do Enem 2019, poderíamos até dizer que seria possível escrever uma redação em que nos posicionemos sobre democratizar ou não o cinema. No entanto, ao exigir que sejam dadas soluções a um problema, o estudante precisa identificar, como já dito neste artigo, esse problema – que fica bem evidenciado pelo conteúdo presente na coletânea: o acesso ao cinema no Brasil é pouco democrático. A partir dessa questão, a redação deve ser escrita, explicando as possíveis causas para tal quadro, a fim de dar soluções que minimizem a situação problemática no Brasil.

Voltando ao vestibular da UERJ, nos documentos anexos ao seu edital, mais precisamente no Anexo 6, há uma orientação geral sobre o conteúdo programático de Redação que se mostra importante, pois há ali a possibilidade de compreender o projeto pedagógico da coordenação acadêmica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a partir do qual é possível inferir a expectativa de um perfil de estudante para a universidade: alguém com posicionamento crítico e com capacidade para defendê-lo, por exemplo, em um texto argumentativo.

A prova de redação dá prioridade à capacidade de argumentação do candidato, entendendo-a como um importante requisito da vida acadêmica, quer pela articulação de informações e ideias, quer pelos exercícios de recursos expositivos e persuasivos da linguagem. Na Redação, serão avaliados a habilidade de leitura e interpretação para reconstrução de textos em diversos níveis, o domínio de gênero “dissertação”, a construção de argumentação, e o emprego de formas e estruturas linguísticas de acordo com a norma padrão.

Nesse caso, existem alguns pontos que são levados em consideração quando nos deparamos com textos que têm como base a tipologia argumentativa:

(i) Articulação de informações e ideias;
(ii) Recursos expositivos e persuasivos da linguagem;
(iii) Habilidade de leitura e interpretação para reconstrução de textos em diversos níveis;
(iv) Gênero dissertação;
(v) Construção da argumentação;
(vi) Norma padrão.

Pensamos, então, que esses pontos levantados podem ser agrupados em dois tópicos, a partir dos quais direcionaremos a nossa discussão acerca da redação no vestibular da nossa universidade. Na primeira parte, falaremos sobre: habilidade de leitura e interpretação para reconstrução de textos em diversos níveis e articulação de informações e ideia, agrupando os tópicos (i) e (iii), compreendendo-os como parte de um processo anterior à escrita efetiva do texto na folha-resposta, ou seja, como a fase relacionada ao planejamento textual. Na segunda parte, pensando a escrita efetiva e o que entra em jogo nesse processo, falaremos sobre o gênero dissertação, com a construção da argumentação e o uso dos recursos expositivos e persuasivos da linguagem, a partir da exigência pela norma padrão – aqui ficam agrupados os tópicos (ii), (iv), (v) e (vi). Tal divisão pode nos levar a pensar inclusive que, embora dividamos em duas partes o processo de escrita, essas duas partes estão intrinsecamente relacionadas, uma vez que a reflexão acerca do texto não se encerra no planejamento textual. Enquanto escrevemos, damos formas às ideias que pensamos anteriormente, continuando a pensar quais melhores expressões se adequam ao que queremos transmitir ao interlocutor. Isso pode nos trazer também a importância de, àqueles(as) que fazem o rascunho, ficarem tranquilos(as) quando fazem modificações no texto ao passarem a limpo para a folha-resposta. Mas este é um tópico que pode ser desenvolvido em artigos posteriores. Por ora, ficamos com a divisão mencionada.

1. Habilidade de leitura e interpretação para reconstrução de textos em diversos níveis e articulação de informações e ideia

Decidimos manter o tópico tal como aparece no edital, a fim de elucidar o que apresentamos no título: não tem mistério, está no edital. Vamos pensar aqui, então, no seguinte: como escrever uma redação que deixe esses pontos bem evidentes? A clareza é parte fundamental da construção dessa resposta, que pode ter início, mas que, talvez, não se feche nesse texto.

Um dos critérios essenciais para uma boa dissertação é o de ela ser clara, de forma que seja lida por muitas pessoas, com distintas concepções de vida e posicionamentos, e seja compreendida. Muitas vezes, há uma confusão em relação a isso, porque existe a crença de que um bom texto para o vestibular é aquele que tem uma escrita rebuscada, por vezes até incompreensível. Essa crença não faz sentido.

Primeiro porque o que se avalia no vestibular é a sua capacidade de escrita de acordo com o nível de escolaridade em que você está – ou seja, exige-se um texto que seja possível para estudantes que completaram o ensino médio, já que esse é o perfil médio de candidatos(as) que estão tentando o vestibular. Com isso, tudo bem se você não escreve de modo rebuscado, não usa expressões como imbróglio, insofismável, fulcral, dessarte, destarte, entre outras.

Segundo porque parece que a preocupação de escrever uma redação para uma banca que te falaram ser mais exigente faz com que você, buscando usar expressões ou construir frases que não têm a ver com seu estilo de escrita, produza um texto que nem você nem a pessoa que avalia compreende.

É importante reforçar também que compreender não é concordar; o avaliador não precisa concordar com o posicionamento levantado no texto para reconhecer que ele é claro. E, para isso, pensar antes de começar a escrever e ter um roteiro em seu rascunho tendem a ser ações fundamentais antes de partir para a feitura definitiva da redação na folha da prova.

No caso de um tema que não apresente um único caminho argumentativo para seguir, a tomada de posicionamento do(a) vestibulando(a), antes de começar a redação, é o primeiro passo para o roteiro do seu texto. É importante entender que você não deve pensar qual posicionamento que a banca teria, mas, sim, aquele que você segue e, por isso, terá certamente mais propriedade para defendê-lo – lembre-se de que isso é um importante critério de avaliação da banca. A partir de uma análise de temas anteriores das redações do vestibular UERJ, é possível perceber que os assuntos que estruturam os temas estão em disputa no campo social, o que torna essa tomada de posição mais difícil para alguns candidatos. “Crime”, “verdade”, “cidade maravilhosa”, “memória”, “literatura”, “ciência” — são assuntos que exigem uma reflexão sua e, assim, a definição clara, para você, do sentido dessas expressões, antes de respondermos a qualquer pergunta do tema ou elaborarmos qualquer outro posicionamento.

Se, em uma turma, perguntarmos qual é a concepção desses assuntos, ou seja, os seus significados, certamente teríamos respostas distintas. Então, um primeiro passo seria entender quais são as produções de sentido dessas palavras. Vejamos um exemplo a partir do tema de redação do vestibular de 2015:

É preciso levar em conta a leitura de literatura para avaliar a formação e os valores de uma pessoa?

Podemos pensar na nossa concepção de literatura e na relação dessa concepção com a formação de valores de uma pessoa, chegando ao seguinte posicionamento:

A literatura pode ser compreendida como um direito fundamental do ser humano, uma vez que permite ao indivíduo a suspensão de realidades, cada vez mais duras na nossa sociedade. Nesse sentido, a leitura de ficções é um dos pilares da avaliação da formação e dos valores de uma pessoa, pois é nessa suspensão do real que conseguimos projetar-nos a fim de construir nossas utopias.

Ou seja, a sua concepção das expressões da frase-tema, junto à resposta da pergunta desse tema, é a construção do seu posicionamento, visto que há uma disputa de sentidos do assunto em questão, ou seja, as pessoas veem literatura de formas distintas, bem como entendem o que são “formação e valores” de formas distintas, por exemplo. Quando você reflete e entende a forma como você concebe essas expressões, poderá, então, decidir a resposta para a pergunta feita pela banca: É preciso levar em conta a leitura de literatura para avaliar a formação e os valores de uma pessoa?

A partir dessas decisões, começamos a construção de nossa argumentação, articulando informações e ideias, já que, ao decidir nosso posicionamento, lançamos mão de conhecimentos prévios, ou seja, daquilo que trazemos ao longo da nossa formação não só escolar, como também às nossas outras experiências sociais. Nesse sentido, compreendemos que as habilidades de leitura e interpretação e articulação de ideias nos são desenvolvidas não apenas nas aulas de português, por exemplo, e precisam entrar em jogo ao lermos o tema de redação das provas de vestibulares. É como se dialogássemos com o tema, permitindo-nos acessar os conhecimentos que trazemos a partir da análise dos elementos linguísticos que compõem a frase-tema e o texto de apoio relacionado a ela – que desde o vestibular de 2018 da UERJ é composto pelo romance a ser lido para a feitura da prova de redação.

Feita a análise do tema, pensado nas ideias que podem estar em seu texto, articulando-as às informações que você traz, chega o momento de materializar tudo isso por meio da escrita. Essa materialização não é arbitrária, já que existe um gênero cobrado. Então, é preciso pensar nisso tudo sendo concretizado por meio das características discursivas inerentes ao gênero dissertativo-argumentativo, tanto no que se refere à sua forma global (introdução, desenvolvimento e conclusão), quanto aos elementos linguísticos do campo da argumentação.

2. Gênero dissertação: a construção da argumentação e recursos expositivos e persuasivos da linguagem

Reforçando essa lógica de entendimento dos temas apresentados na prova de Redação no Vestibular da UERJ, certamente uma das dificuldades dos(as) candidatos(as) está na incerteza sobre posicionar-se diante da questão proposta, considerando que se pode fazer as escolhas pessoais diante das possibilidades de sentido das palavras que compõem uma frase-tema.

Há, nesse sentido, a dúvida recorrente em relação a qualquer redação e, em particular, em relação à redação da UERJ: eu posso dar a minha opinião? Não apenas pode como deve, porque é o que se pede, se a dissertação é justamente a defesa de uma opinião. É comum uma mistura equivocada entre impessoalidade e imparcialidade. Essa dificuldade é o sintoma de um ensino voltado para a reprodução de conhecimento, e não para a produção de conhecimento. Assim, os(as) alunos(as) ficam querendo adivinhar o que a banca pensa acerca da verdade, da ciência, da moral etc., em vez de se permitirem questionar, duvidar e colocar essa dúvida, por meio de processo argumentativo, no papel.

Nessa tentativa infrutífera para adivinhar o pensamento dos corretores ou das corretoras, muitos jovens buscam fazer textos que agradem às bancas, estimulados(as) por frases comumente repetidas em salas de aula de preparação para o vestibular: “a UERJ gosta disso” ou a “UERJ não gosta disso”. Diante de afirmações que constroem um imaginário sobre essa banca, “como a UERJ gosta de Bauman ou de Foucault, cite-os na prova”, “a UERJ gosta de textos com metáforas”, “ a UERJ é muito rígida com a gramática”, por exemplo, o que temos são aulas de redação que acabam se constituindo como um processo mutilador de expressividade de pensamentos no texto dissertativo argumentativo, e poucos são os que se arriscam a escrever o que pensam, como pensam e por que pensam; a maioria reprime suas questões em nome de agradar um(a) leitor(a) ideal, rígido(a), pronto(a) para descer a nota da redação.

Há três anos, o vestibular da UERJ usa como base para sua prova de redação um livro literário. Dom Casmurro, de Machado de Assis, e O seminarista, de Rubem Fonseca, já foram obras abordadas. No ano de 2020, o livro foi Vidas Secas, de Graciliano Ramos. É muito comum alunos que estudam exaustivamente os modelos de prova para o Enem perguntarem insistentemente sobre a necessidade de ler uma obra literária para escrever uma redação para o vestibular, visto que não é obrigatório usar o livro em seu texto. Uma resposta simples e talvez mais interessante para um(a) aluno(a) tão preocupado(a) com respostas prontas, obrigatoriedades, modelos de textos, poderia ser: o tema da prova está no livro que você lerá.

Uma resposta que viria de uma segunda preocupação desse(a) aluno(a) sobre o critério avaliativo do uso de repertório sociocultural como acontece no Enem: o repertório sociocultural pode ser retirado do livro, mesmo que não haja necessidade, pois, se entendemos que não existe originalidade depois de Adão, tudo o que vier a ser enunciado já foi dito antes. Assim, escrevemos sempre com base em outros textos, ou seja, nenhum texto é escrito sem base em algum repertório. Respondidas, as questões sobre o livro podem ganhar discussões mais profundas quando relacionadas à construção da argumentação. Afinal, colocaremos em prática nossa habilidade de leitura e interpretação para a reconstrução de textos em diversos níveis; articularemos informações e ideias; além de lançarmos mão de recursos expositivos e persuasivos da linguagem.

Como podemos pensar no livro para nossa argumentação? Considerando nossa habilidade de leitura e interpretação para formular nossos argumentos nessa prova, a verossimilhança se mostra como um elemento importante, uma vez que abre a possibilidade de relacionarmos ficção e realidade. Essa relação traz uma ferramenta eficaz na construção de uma argumentação: comparação. Relacionar ficção e realidade é estabelecer comparações, que podem ser construídas através de pontos comuns ou até mesmo distintos.

É muito comum que estudantes, em vez de fazerem suas leituras, fiquem dependentes das análises de professores de preparatórios para vestibulares. Essa dependência acaba sendo um erro, pois a análise será do professor(a), não de quem fará a prova — nesse sentido, o ponto de vista da pessoa que escreverá a redação já fica antecipadamente precário, porque ela terá de falar sobre um tema, posicionando-se, sem partir da sua percepção acerca dos personagens e das situações narradas no livro. É claro que as análises vistas em sala contribuem para as suas reflexões e até para o amadurecimento de determinados posicionamentos que você tem, o problema é quando se acredita que basta ouvir o que diz o(a) professor(a) e seguir, sem criticidade, o que ele(a) fala, sem abrir espaço para um pensamento autônomo que contribua para uma escrita também autônoma. Ou seja, a reflexão do(a) professor(a), a partir da leitura que ele(a) faz do livro, não pode ser encerrada por ela mesma, sem que você dê importância a sua reflexão.

Assim se explica, infelizmente, a “coincidência” de relações feitas, em inúmeras redações que nos foram apresentadas por nossos alunos e nossas alunas, entre Macabéa, de A hora da estrela, e Fabiano, de Vidas Secas, ou entre Fabiano e o poema “O bicho”, de Manuel Bandeira. Não nos surpreendeu descobrir que tais relações tinham sido feitas em aulas de redação disponíveis na internet. Qual é o problema dessas coincidências, ou seja, de tantas redações iguais entre si? Todas se desvalorizam, perante as(os) avaliadoras(es).

Voltando à comparação, vale recuperar a fala do professor Gustavo Bernardo em sua palestra sobre a redação do vestibular: a literatura é um exercício de tolerância porque te permite olhar o mundo pelas perspectivas dos personagens.

O que isso tem a ver com a comparação? Muita coisa. Sempre escrevemos um texto a partir das nossas experiências, atravessadas pelo que já lemos, analisamos, vivenciamos, conhecemos — tudo isso é repertório para produzir um texto, tudo isso forma as nossas maneiras de olhar o mundo, tudo isso forma a nossa perspectiva diante dos assuntos que nos são dados. Ao ler um livro, todos esses elementos entram em jogo e podemos relacioná-los aos elementos trazidos nas narrativas. Ao fazermos isso, um movimento cognitivo recorrente é a comparação com o que já trazemos das nossas experiências, ou seja, fazemos relações confrontando as nossas perspectivas com as dos personagens, que podem até nos proporcionar um exercício de tolerância e de potência de transformação.

Você pode se perguntar: como isso tudo entra no texto? No primeiro movimento, o de roteirização, você separou suas ideias, sabe de onde partirá sua perspectiva. Na escrita, isso se materializa com as expressões que você escolhe, aquelas capazes de marcarem sua opinião no texto, como os adjetivos, por exemplo. Toda essa bagagem que você traz, que chamamos de repertório, dá a você a condição de explicar seu posicionamento, utilizando-se de expressões explicativas, por exemplo, inserindo, a partir delas, fatos que contribuam para a solidificação do seu argumento, bem como elementos conclusivos que fechem o raciocínio construído nos parágrafos em que você defende seu ponto de vista. Isso quer dizer que seu conhecimento prévio sobre os textos argumentativos entra em cena também e devem ser usados por você a fim de escrever o gênero cobrado.

Para terminar, comentamos a prova de Redação do Vestibular 2020, realizada em dezembro de 2019. O tema da Redação partiu do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, e perguntava o que leva as pessoas, em condições semelhantes às do personagem Fabiano, a se considerarem inferiores às demais, isto é, a se considerarem “um bicho”?

A questão levantava uma breve discussão sobre servidão voluntária. Como um ser humano, uma nação, pode sofrer privações nas mãos de uma criatura? O que torna isso uma tradição? Qual tipo de vida têm aqueles que vivem para agradar o seu Outro?

Todas essas perguntas só serão respondidas, ou encaminhadas à reflexão, quando entendermos qual é “a condição de Fabiano” para cada um de nós. O que mais vemos e lemos os leitores de Vidas Secas apresentarem como condições de Fabiano é a precarização, a miséria... Entretanto, levantamos a possibilidade de olharmos, a princípio, essa condição não somente como uma precarização. Nesse sentido, Fabiano é, antes de tudo, um forte: inteligente, sagaz, sobrevivente. Mas, por viver numa sociedade que o discrimina e o diminui pela cor, pela condição econômica, pelo ambiente em que vive, é colocado dentro dessa condição precarizada. A precarização elaborada por um Outro estabelece uma condição de miséria e o faz se sentir miserável, eterno servo desse Outro.

A partir da possibilidade de leitura que levantamos sobre a condição de Fabiano, tentamos deixar claro como a construção de um posicionamento “honesto” não depende de uma citação solta ou do que pensa seu professor, mas depende sim de sua própria leitura de mundo: o que você vive? Onde vive? Como vive? Diante dessas perguntas, quais são as relações possíveis que você pode fazer com os personagens que você mesmo(a) encontra pelo caminho?

São respostas que deixamos para você dar a si próprio(a). Suas redações não precisam ser uma grande verborragia de coisa nenhuma que não tenha sido dita e/ou pensada por você. O texto é uma prática social, é o resultado do sujeito que você é neste mundo em que se dá a sua existência — não tem por que você não se permitir aparecer naquilo que você escreve.

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Mon, 31 Aug 2020 19:00:19 -0300 http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seqArtigo=70
Como não ler um texto: um estudo de caso a partir de uma questão do Vestibular Uerj 2009 ( 22/02/2011 )

]]> <![CDATA[Artigo - Como não ler um texto: um estudo de caso a partir de uma questão do Vestibular Uerj 2009]]> http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seq_artigo=14 O começo de tudo

A inspiração para este estudo surgiu durante a correção da prova de Língua Portuguesa Instrumental do Vestibular Uerj 2009, quando observamos grande número de respostas erradas de uma questão que, inicialmente, consideramos fácil.

Na tentativa de localizar o problema, analisamos 260 respostas selecionadas aleatoriamente, por região de aplicação de prova, dentre os 31.869 candidatos que compareceram à prova de Língua Portuguesa Instrumental com Redação do Vestibular Uerj 20091. Neste artigo, apresentamos os resultados parciais dessa pesquisa, com vistas a discutir a dificuldade de leitura.

Na próxima seção, apresentamos a questão que motivou este estudo. Em seguida, quantificamos e discutimos os tipos de respostas encontrados nas provas analisadas. Por fim, mostramos que lições obtivemos deste estudo em nossas palavras finais.

 

1. A questão

Assinado por Leonard Boff, o artigo intitulado "Do bom uso do relativismo" foi escolhido para abrir a prova de Língua Portuguesa Instrumental do Vestibular Uerj 2009. Depois de sua leitura, a primeira questão que os candidatos deveriam responder trazia o seguinte enunciado:

O título do texto de Leonardo Boff fala do bom uso do relativismo. Pode-se inferir, então, que haveria um relativismo negativo, que o autor condenaria. Transcreva o trecho em que o autor alude ao tipo de relativismo que ele rejeita. Em seguida, justifique por que, para o autor, esse uso do relativismo seria condenável.

Como se pode verificar, esse enunciado traz dois comandos: "Transcreva" e "justifique". Conforme divulgado no site do concurso, a resposta esperada deveria seguir as seguintes linhas gerais:

Uma das possibilidades:

• Então não há verdade absoluta?
• Vale o everything goes de alguns pós-modernos?
• Quer dizer, o "vale tudo"?

Não é o vale tudo. Segundo o autor, há uma regra básica que se contrapõe ao vale tudo: é preciso manter relações com os outros e respeitá-los em sua diferença.

O artigo de Leonardo Boff tematiza o "relativismo", entendido como a aceitação de múltiplas perspectivas sobre um mesmo fato. Ao mesmo tempo em que prega a tolerância e a aceitação das diferenças individuais, o autor faz duas críticas ao longo do texto: de um lado, ao "fundamentalismo visceral" baseado no pensamento único; de outro, ao "everything goes de alguns pós-modernos", que conduz à completa ausência de regras. Para acertar a questão 1, o candidato deveria, precisamente, reconhecer esse "everything goes" como o "relativismo negativo", subentendido no título do artigo e mencionado explicitamente no enunciado.

Nossa amostragem de 260 provas, no entanto, revelou que a grande maioria dos candidatos não identificou essa correspondência. Avaliando apenas o primeiro comando da questão - aquele que pedia a transcrição de um fragmento do texto -, verificamos que somente 18% dos candidatos (ou 46 em um universo de 260) transcreveram um dos três fragmentos considerados corretos segundo o gabarito oficial.

O que torna o quadro especialmente preocupante, contudo, não é meramente o índice de erros, mas o tipo de questão que está em jogo. Questões que pedem a localização de uma informação explícita na superfície textual são incrivelmente presentes no dia a dia escolar. Desse grupo, fazem parte as questões de transcrição, precisamente a categoria em que se enquadra o primeiro comando da questão.

Ao se debruçar sobre livros didáticos de português, Marcuschi (2001) constatou que questões exclusivamente fundadas no texto, dentre as quais se incluem as de cópia, são as mais recorrentes, correspondendo a 69% dos exercícios de "interpretação de texto" analisados pelo autor. Por isso mesmo e por não demandar mecanismos cognitivos mais complexos (como alguma forma de raciocínio inferencial), costumam figurar entre as questões consideradas fáceis. Todavia, se é assim, o que explicaria um índice de erros tão elevado na primeira questão de Língua Portuguesa Instrumental do Vestibular Uerj 2009?

 

2. As respostas dos candidatos

Na esperança de decifrar o mistério, decidimos mergulhar nas respostas de 260 candidatos. As 260 provas analisadas contemplam 24 regiões de aplicação de provas no estado do Rio de Janeiro. Nossa análise, reitere-se, limitou-se aos fragmentos transcritos pelos candidatos - não nos ocupamos da justificativa, que constituía a segunda parte da questão.

A análise das transcrições revelou de imediato os seguintes aspectos inesperados: mais instigante do que o elevado índice de erros era o fato de que algumas respostas, aparentemente despropositadas, repetiam-se com frequência espantosa. Mais especificamente, pudemos observar a existência de dois padrões bastante claros de respostas incorretas. Dessa maneira, pudemos dividir todas as respostas analisadas em quatro grupos: corretas, incorretas padrão 1, incorretas padrão 2 e outros.

O padrão mais frequente de respostas incorretas inclui todas as transcrições que, de alguma maneira, sugerem que o "relativismo negativo" residiria na perspectiva única, vale dizer, na negação da legitimidade do ponto de vista alheio. O trecho mais frequentemente transcrito para sugerir essa ideia foi o seguinte: "A ilusão do Ocidente é de imaginar que a única janela que dá acesso à verdade, à religião verdadeira, à autêntica cultura e ao saber crítico é o seu modo de ver e de viver".

O segundo padrão de respostas incorretas, menos frequente, inclui um dos dois sentidos de relativismo que o autor distingue no segundo parágrafo - ou o relativismo como a crença de que uma determinada visão de mundo não é absoluta, mas relativa ao ponto de vista do observador, ou o relativismo expressando o fato de que "todos estão de alguma forma relacionados". O trecho mais frequentemente transcrito foi o seguinte: "primeiro, importa relativizar todos os modos de ser."

Quase metade de todas as respostas analisadas trazem algum fragmento associado ao padrão 1. Isso significa que 49,6% dos candidatos da nossa amostragem associaram o relativismo condenável (a que se refere o enunciado) à postura de intolerância caracterizada pela rejeição do ponto de vista do outro2. Bem atrás, representando 20,7% dos dados (ou 54 das 260 respostas), estão as transcrições vinculadas ao padrão 2, que abarca os dois sentidos do palavra relativismo.

Esses números mostram, claro, que os fragmentos transcritos não são aleatórios. Apenas 15% das respostas não puderam ser incluídas em um padrão recorrente. Evidentemente, se 85% das transcrições incorretas reincidem em apenas dois padrões gerais, não estamos diante de um fato aleatório. Deve haver boas razões para que os candidatos apostem, insistentemente, nos mesmos fragmentos. Entender essas razões é uma maneira de compreender a natureza das dificuldades enfrentadas pelas estudantes da educação básica no processo de leitura. A partir dessa compreensão, torna-se possível, num segundo momento, desenvolver estratégias didáticas que permitam a superação desses problemas. Por isso, a pergunta fundamental é a seguinte: o que o padrão 1 (principalmente) e o padrão 2 (em segundo lugar) expressam a ponto de se tornar tão atraentes como opções de respostas?

Para responder a essa questão, o primeiro passo é estabelecer o seguinte: não há uma hipótese única para explicar a preferência pelos dois padrões. Cada um deles tem motivação própria. Comecemos pelo padrão 1.

A fim de explicar o que torna o padrão 1 tão atraente, devemos antes comentar um pouco acerca do processamento da leitura. É amplamente aceito que a leitura não consiste meramente na extração de informações. O bom leitor está longe de ser um receptor passivo de dados. Ao mesmo tempo em que se apropria das informações contidas no texto - processamento ascendente, ou "bottom-up" -, ele também projeta, sobre o texto, seu conhecimento prévio - processamento descendente, ou "top-down" (KATO, 1999; KLEIMAN, 2000; SOLÉ, 2006; FULGÊNCIO; LIBERATO, 2007). É isso que explica, por exemplo, a dificuldade causada pela leitura de um texto sobre um assunto que não dominamos - a falta de conhecimento prévio nos impede de ancorar a informação nova trazida pelo texto. A importância do processamento top-down mostra que o significado, longe de habitar o texto esperando para ser desvelado, é ativamente construído pelo leitor; mais do que entender o sentido de um texto, o leitor atribui a ele alguma significação.

Tal atribuição, todavia, não é sem limites. Evidentemente, não é qualquer significado que pode ser projetado sobre um texto. Se, por um lado, é inegável que o conhecimento prévio é fundamental para a leitura, também é fato que o processamento descendente, quando excessivo, prejudica a compreensão. Na prática, o recurso exagerado à leitura top-down leva o leitor enxergar no texto apenas o que ele já sabe, deixando de notar até mesmo alguma possível divergência entre o conteúdo do texto e suas próprias expectativas.

Claramente, o que emerge dessa discussão é uma concepção interacional da leitura. Para ler com proficiência, devemos levar a cabo, de maneira maximamente equilibrada, dois movimentos opostos: de um lado, precisamos projetar sobre o texto nosso conhecimento prévio, a fim de inferir palavras, fazer previsões sobre o assunto, compreender ironias etc.; de outro lado, devemos atentar para as informações efetivamente contidas no texto, sob pena de deixar o autor "falando sozinho".

Esse é um equilíbrio precário. Em alguns momentos, nossas expectativas podem divergir daquilo que o texto, de fato, nos apresenta. Diante de uma situação como essa, o leitor proficiente é capaz de flexibilizar suas expectativas, ajustando-as à realidade encontrada no texto. O leitor iniciante, contudo, corre o sério risco de não perceber o que está efetivamente escrito - ele assume que a informação textual converge com sua expectativa e, na continuação da leitura, não consegue detectar as contradições entre a interpretação produzida por ele e o restante do texto. Essa é uma diferença crucial entre o leitor proficiente e o iniciante: o primeiro é capaz de flexibilizar suas expectativas e previsões em função das informações que vai encontrando no decorrer da leitura; o segundo se aferra à sua expectativa inicial, o que acaba por gerar um problema de compreensão.

É aqui que entra nossa primeira hipótese. A nosso ver, foi precisamente esse tipo de dificuldade que levou muitos candidatos a optarem pelos fragmentos correspondentes ao padrão 1. O raciocínio é o seguinte: o que os candidatos efetivamente enxergaram no texto foi o discurso que eles já traziam em sua bagagem de conhecimentos acumulados. Trata-se do discurso - já convertido em clichê - de tolerância e respeito às diferenças. De fato, é inegável que esse discurso se materializa no artigo de Boff. A questão 1, no entanto, não se refere a ele, mas a um outro discurso, bem menos difundido, segundo o qual o relativismo (associado, em sua forma extrema, ao pensamento pós-moderno) não deve ser levado às últimas consequências.

A opção maciça pelos fragmentos ligados ao padrão 1 mostra que essa passagem não foi devidamente assimilada - o que provavelmente é reflexo de uma leitura excessivamente ancorada no conhecimento prévio. Ao se concentrar naquilo que já é conhecido e esperado (o discurso em defesa do respeito e da tolerância), muitos candidatos deixaram de observar aquilo que era novo ou, no mínimo, menos esperado (a ressalva que, em alguma medida, se faz a esse discurso). Por isso, retiveram apenas uma das críticas de Boff: aquela que se volta contra a intolerância e a perspectiva única. Prendendo-se a esse dado, deixaram de assimilar a outra crítica - aquela que se volta contra o relativismo radical. Dessa forma, ao serem confrontados com uma questão que pede a transcrição de uma referência a algo negativo, os candidatos recorrem à única crítica efetivamente assimilada por eles durante a leitura - aquela que coincide com as expectativas projetadas no processamento descendente. É interessante notar, ademais, como também a leitura do enunciado parece revelar um tipo de leitor pouco proficiente. A questão refere-se a um "relativismo negativo", mas as passagens que atendem ao padrão 1 sequer dizem respeito ao relativismo - antes, tratam do seu contrário, a visão de mundo que adota parâmetros absolutos. Tudo indica, porém, que essa inconsistência não foi notada, evidenciando, uma vez mais, os efeitos deletérios de uma leitura excessivamente baseada no processamento top-down.

Note-se que, entre as respostas corretas e as respostas associadas ao padrão 1, há pelo menos um ponto de contato: ambas dizem respeito a alguma crítica, ou seja, em ambos os casos, Boff alude a um comportamento que considera condenável. É precisamente esse ponto convergente que dá margem à leitura problemática: em função do excessivo ancoramento em suas próprias expectativas, o candidato se atém apenas à referência a alguma forma de comportamento negativo, deixando passar a informação de que se trata, especificamente, de um relativismo negativo.

Os fragmentos vinculados ao padrão 2, contudo, não contam com esse ponto de contato com as respostas corretas. Tais fragmentos consistem, em alguma medida, em um exercício informal de lexicografia: trata-se de tentativas de definir os dois sentidos em que a palavra "relativismo" pode ser empregada. Se é assim, a opção por esses fragmentos não pode ser explicada pelo desequilíbrio entre processamento ascendente e descendente. Então, como explicá-la?

Aqui, a sentença-chave parece ser a primeira oração do segundo parágrafo: "Deste fato surge, de imediato, o relativismo em dois sentidos". Essa passagem funciona como um marcador que organiza estruturalmente o parágrafo, dividindo-o claramente em duas partes (relativismo como respeito à perspectiva alheia e relativismo como relação).

No entanto, ao contrário do que acontece com o padrão 1, não há qualquer convergência propriamente semântica entre o "relativismo negativo" do enunciado e as duas acepções de "relativismo" contempladas no segundo parágrafo. A única semelhança aparente é mesmo estrutural: tanto o enunciado quanto o segundo parágrafo subdividem o relativismo, de alguma maneira, em dois grupos. Aqui entra a nossa hipótese. A nosso ver, foi essa coincidência puramente estrutural que induziu 54 candidatos da nossa amostragem (ou 20,7% do total) a selecionar, como resposta, um dos dois sentidos de "relativismo" mencionados no segundo parágrafo. Contudo, se a explicação parar por aqui, ela será insuficiente, porque não responde a uma questão fundamental: o que teria levado uma porção significativa dos candidatos a se ater a uma mera coincidência estrutural, sem sequer observar que a acepção de "relativismo" no trecho transcrito por eles não apresenta qualquer caráter negativo ou condenável?

Esse é o verdadeiro xis da questão, cuja resposta parece residir no tipo de atividade de "interpretação de texto" que, ainda hoje, é largamente praticado nas salas de aula da educação básica. No início deste trabalho, mencionamos o estudo de Marcuschi (2001), segundo o qual, nos livros didáticos de português, as questões objetivas (no sentido de questões fundadas na mera localização de informações explícitas na superfície textual) prevalecem sobre todas as outras. Questões desse tipo não chegam a ser irrelevantes: a localização de informações no texto é um tipo de competência que deve, sim, ser contemplado na escola. Na prática, porém, há dois grandes problemas com essas questões.

O primeiro problema está ligado à sua recorrência: como mostra o trabalho de Marcuschi, a incidência espantosa das questões objetivas quase não deixa espaço para que outras habilidades mais complexas sejam trabalhadas. O segundo está ligado à maneira como elas são trabalhadas. Sem outro objetivo que não meramente responder a pergunta, o aluno desenvolve um modus operandi peculiar, mas quase sempre eficaz: ele "escaneia" o texto em busca de marcas léxico-gramaticais que lhe permitam localizar o ponto exato onde se esconderia a sua resposta. Para isso, procura encontrar coincidências formais (palavras, construções) entre o texto e o enunciado do exercício. Localizado o fragmento relevante, procede à "extração" do trecho que não se encontra no enunciado e que, portanto, deve corresponder à resposta esperada.

Observe-se que este não é um procedimento de construção de sentidos, mas tão-somente uma operação formal (KLEIMAN, 1999). Infelizmente, porém, esse tipo de "leitura" é bastante incentivado pela escola - se não diretamente (com o professor explicitamente recomendando tal procedimento), ao menos indiretamente, na medida em que essa prática quase sempre se traduz em respostas corretas e boas notas - ou seja, ela é bastante eficaz em face dos objetivos de leitura propostos pela escola e do tipo de questão recorrente nos livros didáticos. Ao que tudo indica, foi a essa operação formal que recorreram os 54 candidatos que optaram pelo padrão 2. Ao escanear o texto à procura de marcas formais que lhes dessem pistas para encontrar a passagem relevante, foram iludidos pela passagem que abre o segundo parágrafo: "Deste fato surge, de imediato, o relativismo em dois sentidos". Em uma sondagem formal do texto, essa passagem parece corresponder aos dois relativismos referidos no enunciado: "O título do texto de Leonardo Boff fala do bom uso do relativismo. Pode-se inferir, então, que haveria um relativismo negativo, que o autor condenaria".

Note-se que Boff procede a duas distinções ao longo do texto. A primeira, no segundo parágrafo, diz respeito aos dois sentidos da palavra "relativismo" (como respeito à perspectiva alheia e como relação). A segunda diz respeito às duas qualidades de relativismo. Essa última se dilui ao longo do texto, com o "relativismo bom" sendo referido em vários momentos, e o "relativismo ruim", especificamente no quarto parágrafo.

Do ponto de vista da sua manifestação na superfície textual, a grande diferença entre essas duas distinções é a seguinte: a primeira é claramente delimitada e explicitamente sinalizada, exatamente por meio da passagem que abre o segundo parágrafo; a segunda, por seu turno, embora possa ser reconstruída, não está limitada a um fragmento específico e não conta com sinalizadores explícitos. No primeiro caso, é como se o autor informasse, metalinguisticamente: "vou estabelecer agora uma distinção". No segundo caso, a distinção é estabelecida, mas não é explicitamente enquadrada como tal. Ora, para um leitor à procura de marcas formais que lhe informem em que o ponto o "escaneamento" deve ser interrompido, a primeira distinção é infinitamente mais atraente.

 

3. Palavras finais

Em suma, apresentamos acima duas hipóteses para explicar o elevado índice de erros na questão 1 da prova de Língua Portuguesa Instrumental do Vestibular Uerj 2009. Cada hipótese busca explicar um padrão diferente de respostas erradas. Para o padrão 1, sugerimos que os candidatos confiaram excessivamente em seu conhecimento acumulado, deixando de absorver algumas informações trazidas pelo texto devido à dificuldade (própria dos leitores pouco proficientes) de flexibilizar suas expectativas. Para o padrão 2, sugerimos que os candidatos procederam a uma operação formal que, embora bastante incentivada pela escola, transforma a leitura em uma atividade desvinculada da produção de sentidos - o que os levou a optar, dentre as duas distinções estabelecidas pelo autor, por aquela explicitamente sinalizada e claramente circunscrita a uma fragmento específico.

O ensino de "interpretação de texto" na educação básica ainda é uma caixa preta. De modo geral, os professores não têm consciência dos diferentes tipos de habilidades envolvidos no processamento de leitura. Por isso, quando um aluno tem dificuldade com alguma questão, não podem ir além de conselhos excessivamente vagos, e nem sempre úteis, como "leia o texto com atenção", "procure palavras-chave", etc. Para efetivamente solucionar um problema, é preciso, antes de mais nada, que se tenha clareza quanto ao tipo de problema que se está enfrentando. As hipóteses acima sugerem dois problemas bastante específicos: a dificuldade em abrir mão das assunções prévias (falta de flexibilidade metacognitiva) e leitura como operação formal de detecção de marcas textuais.

 

Referências bibliográficas

FULGÊNCIO, L.; LIBERATO, Y. É possível facilitar a leitura. São Paulo: Contexto, 2007.

KATO, M. A. O aprendizado da leitura. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 6. ed. Campinas: Pontes, 1999.

___. Oficina de leitura: teoria e prática. 7. ed. São Paulo: Pontes, 2000.

MARCUSCHI, L. A. Compreensão de texto: algumas reflexões. In: O livro didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001.

SOLÉ, I. Estrategias de lectura. 16. ed. Barcelona: Graó, 2006.

 

Notas

1 A referida prova, padrão de respostas e demais informações estão disponíveis em http://www.vestibular.uerj.br/portal_vestibular_uerj/index_portal.php. Acesso em 22/05/2010.

2 Embora, como já ficou dito, não tenhamos analisado sistematicamente as justificativas oferecidas pelos candidatos, mesmo uma observação preliminar de algumas delas aponta precisamente nessa direção: "Ele é contra a intolerância"; "Porque o autor quer passar para os leitores a ideia de que devemos receber inúmeras opiniões".

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Tue, 22 Feb 2011 12:05:13 -0300 http://www.revista.vestibular.uerj.br/artigo/artigo.php?seqArtigo=14

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